The Who ao vivo em São Paulo

texto por Marcelo Costa
fotos por Ricardo Matsukawa / Mercury Concerts

Uma das coisas bacanas do rock é seu caráter redentor. Senão, vejamos o episódio The Who em São Paulo. Ainda que seja uma das indiscutíveis maiores bandas da história, a vinda do The Who ao Brasil pela primeira vez, 53 anos após surgir no bairro londrino de Shepherd’s Bush, em Londres, gerava dúvidas da possibilidade dos dois setentões bisavós Roger Daltrey e Pete Townshend ainda causarem na plateia a mesma emoção da época em que faziam alguns dos melhores shows do mundo (escudados pelo grande baterista Keith Moon, falecido em 1978, e pelo mestre John Entwistle, no baixo, que morreu em 2002) enquanto deixavam para trás um rastro de guitarras quebradas. O que restou em 2017 daquela banda que gravou um dos melhores discos ao vivo da história, em 1970?

Cerca de 35 mil pessoas puderam presenciar a resposta na quinta feira que abriu o primeiro de quatro dias do São Paulo Trip (perna nacional do Desert Trip, que reuniu em 2016 em Indio, na Califórnia, Bob Dylan, Rolling Stones, Neil Young, Paul McCartney, Roger Waters e… The Who). Antes de Daltrey e Townshend entrarem em cena, porém, a paciência da plateia foi testada com os clichês do Alter Bridge e com uma primeira parte morna do Cult, que dividiu seu set de 12 músicas em duas faixas bocejantes do álbum de 2016, “Hidden City”, uma de “Beyond Good and Evil” (2001) e as outras nove da tríade de discos que consagraram o vocalista Ian Astbury e o guitarrista Billy Duffy no século passado: o gótico “Love” (1985) e o hard rock de arena de “Electric” (1987) e “Sonic Temple” (1989) – o trecho final com “Sweet Soul Sister”, “She Sells Sanctuary”, “Fire Woman” e “Love Removal Machine” foi bastante digno.

Pontualmente às 21h30, um recado no telão pedia: “Mantenha a calma, aí vem o The Who”. E a calma foi para o espaço assim que o riff marcante do hino “I Can’t Explain” ecoou no Allianz Parque. Dai em diante, uma aula de rock and roll. Muito menos falante do que se veria dois dias depois no palco Mundo do Rock in Rio, um Pete Townshend marcado pela idade, mas com uma vitalidade impressionante, limitou-se a gritar “São Paulo” no começo do show e dizer que estava muito feliz com a primeira vez do The Who no país. Com a guitarra em punho, porém, Pete mostrou com fúria e emoção porque ainda é uma das lendas vivas do rock mundial seja solando, seja girando o braço como um helicóptero, um gesto marca registrada que remonta ao início da banda, e que seria repetido (para delírio dos fãs) várias vezes durante a noite.

Aparentemente mais em forma, o vocalista Roger Daltrey fez todo o mise-en-scéne que se esperava dele. Cantou muito tanto quanto fez seu microfone voar para cá e para lá no palco. Após a abertura marcante, o show seguiu com uma versão poderosa de “The Seeker”, a cativante “Who Are You” e uma linear (mas ainda emocional) “The Kids Are Alright”. A pancada “I Can See for Miles” funcionou muito bem e no hino “My Generation” (acrescido de “Cry If You Want” no meio), Roger Daltrey perdeu a entrada, ficou aguardando a banda parar e começar de novo, mas o trem descarrilado seguiu em frente com o baixista Jon Button honrando a tarefa de estar na posição de John Entwistle. Na bateria, Zak Starkey, filho de Ringo Starr, que ganhou seu primeiro kit do padrinho Keith Moon em 1973, também cumpriu com galhardia a impossível missão de substituir o insubstituível “mad man”.

Após grandes versões de “Behind Blue Eyes” e “Join Together”, uma boa surpresa do miolo do show foi “You Better You Bet”, single do álbum “Face Dances”, de 1981, que funcionou muito bem ao vivo. Então um mergulho emocional nas óperas-rock “Quadrophenia” (1973), com “I’m One”, “The Rock” e “Love, Reign O’er Me”, e “Tommy” (1969), com “Amazing Journey”, “Sparks”, “Pinball Wizard” e “See Me, Feel Me”, e o show se encaminhou para o final com uma dobradinha do multi-platinado “Who’s Next”, de 1971: “Baba O’Riley” e “Won’t Get Fooled Again”. A rigor, o set list da turnê já tinha acabado, mas a banda quis presentear São Paulo e incluiu um bis especial, com “5:15” e “Substitute” encerrando uma noite histórica, finalizada com Townshend implorando aos presentes: “Go home, go home, go home!”. Quem esperava um bando de velhinhos de muletas se arrastando no palco foi surpreendido com um dos grandes shows do ano. Na enorme turba que saiu de alma lavada para fora do estádio, alguém filosofava: “Grande parte das letras do Pete Townshend são sobre redenção”. Perfeito final para uma noite redentora para o rock, para o Who e para o público.

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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