I’ll Be Your Mirror 2011, Asbury Park

Texto e fotos por Elson Barbosa

“Greetings From Asbury Park, NJ” é o primeiro disco de Bruce Springsteen, lançado em 1973. Nele, The Boss cantava a heartland do americano típico, membro da classe trabalhadora, frequentador de alguma igreja anglicana e ativista da busca eterna da proverbial american way of life. A Asbury Park do título é uma pequena cidade no litoral de Nova Jersey a menos de duas horas de trem de Nova York e que, segundo a Wikipedia, passou de 11 mil habitantes em 1910 para 16 mil em 2010 – 5 mil habitantes em um século. Foi nesse cenário parado no tempo e ligeiramente jeca que aconteceu mais uma edição do festival de música mais barulhento do planeta: o All Tomorrow’s Parties.

Para começar, não existe festival como o ATP. É possível definir como um evento para quem não tem mais idade de encarar o perrengue de um festival de grande porte, pois é montado sempre em lugares pequenos e inusitados como um resort de férias ou uma cidadezinha de praia. Mais do que a lama roquenrou e o clima de um evento corporativo bancado por cervejas ou celulares, a vibe do ATP é a de uma festa caseira com amigos.

O diferencial do ATP é ter as melhores pequenas bandas do planeta, sempre escolhidas a dedo por algum curador convidado. Artistas circulam normalmente entre o público. É comum esbarrar com Steve Albini, Geoff Barrow (Portishead) ou até em um senhor não identificado – mistura de Lou Reed e Rita Lee – que saiu literalmente tropeçando nas pessoas ao deixar o show do Swans com as mãos nos ouvidos. Citando o próprio Albini em uma entrevista do ano passado, publicada aqui mesmo no Scream & Yell: “É como sair de férias com seus amigos. E é essa atmosfera a razão do ATP dar tão certo”.

A edição 2011 do ATP EUA (há ainda uma versão britânica), rebatizada “I’ll Be Your Mirror” (lado B do single “All Tomorrow’s Parties”, do Velvet Underground), foi dividida em três palcos: Convention Hall, uma sala construída em 1930 com capacidade para 3600 pessoas, que em seus heydays recebia bandas como Doors, Led Zeppelin e Pink Floyd; Paramount Theatre, teatro de 1600 lugares construído na mesma época junto ao Convention Hall, com um perfil mais para musicais da Broadway do que para os ruídos do ATP; Asbury Lanes, um bar já bastante desgastado, a uns cinco minutos a pé do Convention Hall, com um pequeno palco montado entre duas pistas de boliche, o único local com certo ar roqueiro – na sua parede externa lateral, pinturas enormes de figuras como Joey Ramone e Johnny Rotten enfeitam o lugar.

Dia 01

A primeira banda a subir no palco do Convention Hall foi a norte-americana Chavez abrindo com o semi-hit underground “Break Up Your Band” (aquela do clipe dos strippers) e tocando faixas dos seus dois únicos álbuns lançados há mais de quinze anos num grande show para um público ainda pequeno e morno. Depois de uma corrida até o Asbury Lanes para ver um trecho do Thinking Fellers Union Local 282, foi hora de voltar ao Convention Hall para aguardar a grande atração da primeira noite – os veteranos do Shellac.

Veteranos porque praticamente todos os eventos envolvendo a marca ATP tem alguma participação da banda, seja integrando o line-up ou organizando a tradicional sessão de pôquer comandado pelo crupiê Steve Albini. O show foi o de sempre – uma sucessão de pedradas math-noise-hardcore com a banda se divertindo tanto quanto a plateia. Cada música parece ter uma piada ensaiada. Em “Steady As She Goes”, Albini e o baixista Bob Weston se escondem fora do palco durante um break instrumental, para voltarem correndo de forma desengonçada quando a música volta a pesar.

Já em “The End of Radio” é a vez do baterista Todd Trainer aparecer – munido apenas de uma caixa, Trainer passeia pelo palco tocando a caixa em qualquer ritmo enquanto Albini recita uma letra sem sentido sobre… Trainer tocando a caixa. Em “Spoke”, a última música, Albini e Weston desmontam todo o palco enquanto Trainer continua tocando, e ele só para quando a própria bateria é desmontada.

Além disso, parte do show é das já tradicionais sessões de Q&A’s – ou algo como “Respostas Idiotas para Perguntas Imbecis”. “De que ano é o seu baixo?” ganha um “E como caralhos vou saber?”. Em resposta a um “Qual é o seu instrumento favorito?”, Albini explana em detalhes impressionantes sobre um objeto de uso proibido para menores. São piadas nerds e sem sentido, mas que no contexto, e considerando o currículo dos envolvidos, se tornam bizarramente engraçadas. Depois do Shellac, a noite é encerrada pelo belo show intimista de Bonnie ‘Prince’ Billy.

Dia 02

Os shows no sábado começaram cedo. Às 14h30, o Beak>, projeto paralelo de Geoff Barrow (Portishead), sobe ao palco para um show sensacional de revisitação ao krautrock alemão dos anos 70. No Paramount Theater, Colin Stetson fazia noise com seu saxofone, enquanto no Asbury Lanes, o Oneida começava uma maratona de oito horas (!) de duração.

De volta ao Convention Hall, a desconhecida Foot Village fez um dos shows mais impressionantes do evento. Formada por quatro bateristas-vocalistas, a banda faz um som tribal absurdamente barulhento. Uma das bateristas é uma minúscula japonesinha que berrava como um animal no abate, fazendo umas danças ritualísticas como se recebesse alguma entidade do mal. No final, Matt Williams, guitarrista do Beak>, volta ao palco para uma participação de noise e ruídos junto às baterias desenfreadas do Foot Village. Show bizarro e sensacional.

Pausa para uma caminhada, dar uma espiada no The Horrors (um bom show indie-gótico-shoegazer cheio de efeitos e climas) e voltar ao Paramount para ver a dupla Silver-Qluster. A metade Silver é Simeon, do Silver Apples, lendária banda norte-americana de proto-eletrônica; A metade Qluster é Hans-Joachim Roedelius, ícone da cena krautrock nos anos 70, à frente do Cluster. O show foi uma sucessão de ruídos e drones, mais voltado à hipnose do Cluster do que à psicodelia do Silver Apples. Histórico.

De volta ao Convention Hall, o Battles fazia um bom espetáculo de pirotecnia instrumental que beirava (e muitas vezes transpassava) o exagero. Pausa para comer alguma coisa, antes de ver duas das principais bandas de todo o festival. No Paramount, o lendário Swans fez uma apresentação absolutamente ensurdecedora, sem tréguas: abriram com “No Words / No Thoughts”, do disco mais recente (My Father Will Guide Me Up A Rope To The Sky, 2010, em uma versão de uns 20 minutos, sendo metade só de noise. Trilha perfeita para o proverbial documentário sobre o fim do mundo.

Na plateia, os que não tiveram a feliz ideia de comprar protetores sofriam com os ouvidos quase sangrando (ou saiam tropeçando, com o Lou Lee do terceiro parágrafo). E a banda ainda foi a responsável pela cena mais enternecedora do festival. Algumas horas antes, no restaurante à beira da praia em frente ao Convention Hall, uma família formada por um avô, um casal e um bebê almoçava tranquilamente. O bebê vestia uma camisetinha do Swans. Mais tarde aparece o Michael Gira (líder do Swans), cumprimenta a família e brinca com o bebê, pegando-o no colo. Na hora do show, a surpresa: o avô era na verdade o baixista do Swans.

Vendo aquele pesadelo sonoro em cima do palco, é impossível não refletir em como um monte de bandinhas indie ainda tem muito que aprender com vovôs como os do Swans. Fechando a noite, os headliners e curadores do festival: o Portishead. Difícil colocar em palavras o que é um show deles. Toda a eletrônica experimental ganhava peso e corpo com uma grande banda ao vivo, completada com a espectral voz de Beth Gibbons. O show percorreu o material dos três discos, em uma sucessão de hits – “Glory Box”, “Over”, “Sour Times”, “Roads”, todos números de gelar a alma. Ao fim, a grande surpresa da noite – Gibbons, sempre tímida e reservada, fez um inacreditável stage diving sobre a plateia, antes de voltar e cumprimentar sorridente os fãs mais próximos ao palco. Show belíssimo e memorável.

Dia 03

De manhã chega à notícia via Twitter e Facebook: um show surpresa do Shellac iria rolar, programado para às 12h45. Ao meio-dia em ponto, a fila já se formava na entrada do Asbury Lanes. Não mais que duzentos felizardos viam Albini e cia comandar mais uma brutalidade atrás da outra, além das Q&A’s (“Qual é o seu jayhawk favorito?” – “Sei lá que porra é essa”). A banda ainda incluiu no set diversas faixas inéditas, provavelmente prestes a virar um novo álbum.

Pausa para o almoço, voltando a tempo de pegar um trecho do DD/MM/YYYY (uma bandinha indie histriônica anti-melodia), até voltar ao Paramount para ver Jeff Mangum. Em um set acústico voz-e-violão, Mangum tocou diversos não-hits de sua banda original, o Neutral Milk Hotel. O fato desse show ter sido fechado somente para quem tinha ingressos especiais quase estragou a apresentação – por sorte consegui a entrada minutos antes do espetáculo.

No Convention Hall, o Deerhoof mostrava um som caótico e estranhamente festeiro, meio que um “Cansei Math-Rock”. De volta ao Paramount, o Earth tocava o seu stoner rock lentíssimo e arrastado, longe dos drones doom metal dos anos 90. Baseado no último álbum, “Angels of Darkness, Demons of Light 1” (2011), o destaque ficou por conta da violoncelista Lori Goldston, cujo currículo inclui o histórico “MTV Unplugged do Nirvana “(Dylan Carlson, líder do Earth, era amigo pessoal de Kurt, e reza a lenda que foi ele quem vendeu a lendária arma para o músico).

Em seguida, J.G. Thirlwell, músico de diversos projetos pós-punk industriais dos anos 80 como o Foetus, regia o seu projeto Manorexia, formado por um quarteto de cordas, um pianista, um percussionista e o próprio Thirwell num MacBook. Uma belíssima trilha sonora de algum filme inexistente. Enquanto isso, no Convention Hall, o Public Enemy tocava o seu “Fear of a Black Planet” na íntegra.

De volta ao Paramount, a Thee Silver Mt. Zion Memorial Orchestra, de Efrim Menuck (também membro do Godspeed You! Black Emperor) mostrava seu post-rock-freak-folk torto e genial. Menuck, um vocalista sofrível, não consegue estragar as belíssimas composições do quinteto, que sabem passar de delicados trechos com violinos a partes pesadas e densas.

No Convention Hall, o Portishead fazia seu segundo show no festival, beirando tanto à perfeição quanto o primeiro. Dessa vez, com duas participações especiais: Chuck D, do Public Enemy, surgiu para criar um rap em cima da base de “Machine Gun”, e Simeon, do Silver Apples, participou fazendo noise em “We Carry On” (faixa que foi declaradamente inspirada na banda de Simeon). Mais um show memorável fechando oficialmente o ATP. Na prática, ainda deu tempo de correr até o Asbury Lanes e pegar o de fato último show – Thought Forms, uma desconhecida banda inglesa de post-rock-drone, ensurdecendo a pequena plateia que sobrou em pé no domingo de madrugada.

No final, os ouvidos zunindo são a constatação: não existe festival como o ATP.

Top 11 do ATP I’ll Be Your Mirror

01. Portishead
02. Swans
03. Thee Silver Mt. Zion Memorial Orchestra
04. Shellac
05. Foot Village
06. Thought Forms
07. J.G. Thirlwell’s Manorexia
08. Beak>
09. Earth
10. Silver-Qluster
11. Chavez

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– Elson Barbosa toca baixo no Herod Layne e é um dos capos do selo virtual Sinewave. Essa entrevista foi publicada originalmente no formato podcast no site da Sinewave. Ouça aqui.

Leia também:
– Entrevista: Steve Albini – “Como digo goodbye em português?”, por Elson Barbosa (aqui)
– Festival Transborda: o messianismo de Criolo e a música de puteiro do Vanguart (aqui)
– Conexão Vivo Salvador 2011: cinco grandes shows por cinco jornalistas (aqui)
– Barcelona não para, e o Primavera Sound 2011 segue o ritmo da cidade (aqui)
– Festival de Benicàssim 2011: Haja coração e pernas, por Marcelo Costa (aqui)
– Coachella 2011: “Hoje é o dia mais quente do ano em Palm Springs”, diz o taxista (aqui)

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