Cinema: “Oppenheimer”, de Christopher Nolan, constrói um documento definitivo sobre a estupidez da guerra

texto de João Paulo Barreto

A noção da capacidade do poder da destruição pelo Homem através de sua genialidade é o ponto central da narrativa de “Oppenheimer” (2023), novo filme do cineasta britânico Christopher Nolan. Tal poder, que pode ser comparado ao de um deus, tem essa característica salientada logo em seu letreiro inicial, quando o mito grego de Prometheus é citado. Punido por Zeus, Prometheus é a divindade que entregou o fogo aos humanos, concedendo-lhes, assim, a sapiência.

Nolan, diretor e roteirista responsável por revitalizar a franquia “Batman” e a ousar desafiar narrativas cinematográficas com “A Origem” (2010), “Interestelar” (2014) e “Tenet” (2020), entendeu o ponto de equilíbrio em seu mais recente trabalho ao focar sua lente no ambicioso projeto biográfico do homem responsável por liderar o grupo de físicos que construiu, sob o suporte financeiro do governo dos Estados Unidos, as bombas atômicas que dizimaram as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, matando instantaneamente mais de 100 mil pessoas (e condenando outras centenas de milhares a morrer de modo excruciante nas semanas e meses seguintes) no evento conhecido por encerrar a Segunda Guerra Mundial.

Tal noção de poder é apresentada ao público durante as três horas de projeção através do peso que esse “dom” impõe sobre seu protagonista-título, Julius Robert Oppenheimer, vivido por um inspirado Cillian Murphy, e no embate consciente que ele trava com a percepção de que aquele poder precisa ser conquistado antes que o inimigo, os nazistas, o conquistem. Mas além desse embate particular do personagem central, antes de inserir o necessário julgamento moral que a obra precisa pesar sobre aquela figura histórica, o que o roteiro de Nolan traz, baseado no livro publicado em 2005 e escrito por Kai Bird e Martin J. Sherwin, é um vislumbre do que motivou a genial mente de Oppenheimer a seguir por aquele caminho. E isso é feito a partir de uma consciente escolha em desenvolver as motivações daquele homem dentro de uma ótica científica.

Ciente, obviamente, dos riscos que suas descobertas trariam para a humanidade, mas calcadas em um desejo de desvendar os desafios práticos que o campo teórico da Física, dentro do estudo da fissão do átomo, lhe apresentava, o cientista de origem judaica, financiador de revolucionários que o partido comunista mantinha na Guerra Civil espanhola, seguiu em frente na sua pesquisa alegando a convicção de que era preciso dominar aquele conhecimento antes que os alemães, os russos ou os japoneses o fizessem. Não por acaso e diante da consequência de tamanho poder desenvolvido por homens capazes de emular o poder de destruição dos deuses, o livro de Bird e Sherwin foi batizado como “American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer”. Nada mais adequado.

Nolan opta por desenvolver sua narrativa trazendo de modo cronológico toda a trajetória de seu personagem principal na pesquisa que o levou ao fatídico agosto de 1945. Mas para além do formato, traz para a trama acontecimentos futuros que desencadeiam as consequências políticas do pós-guerra para a vida de Oppenheimer. Acusado de não se manter fiel ao próprio país por demonstrar publicamente arrependimento e culpa nas mortes que as bombas causaram a partir de sua participação como chefe do Projeto Manhattan (programa de pesquisa e desenvolvimento que produziu as primeiras bombas atômicas durante a Segunda Guerra Mundial), o cientista passa a sofrer com o escrutínio investigativo tanto do Senado estadunidense quanto da cúpula das Forças Armadas durante os anos 1950, época em que a Guerra Fria e a caça às bruxas do comunismo se tornaram as principais sombras do genérico medo da população daquele país.

A montagem da britânica Jennifer Lame (também responsável pela trabalhosa e matemática estrutura de “Tenet”), constrói aquele emaranhado de acontecimentos de maneira a criar uma narrativa deveras informativa em que Nolan, acertadamente, busca não basear suas resoluções em banais momentos de climax para a audiência. Ciente da importância dos fatos apresentados em seu roteiro, o diretor opta por manter seu filme quase como um aspecto documental, sem a obrigatoriedade de ceder a qualquer espetáculo visual banal que o tema abordado aqui poderia sugerir como uma armadilha a um cineasta vaidoso. Sim, “Oppenheimer” possui sua cota de espetáculo visual para uma obra que aborda a história por trás da criação da bomba atômica, mas o modo como tais momentos surgem em tela é um resultado da preparação de um complexo terreno.

Além disso, e sem se render aos comuns maneirismos narrativos da construção de um personagem cuja genialidade pode flertar com a excentricidade, o roteiro de Nolan dá a Cillian Murphy uma oportunidade de construir a figura de Oppenheimer de maneira humana, repleta de inseguranças e falhas de caráter que acabam por refletir em seu trabalho. Mulherengo e bígamo, Oppie, como é chamado por quem lhe é íntimo, surge, em determinado momento, nu em tela. A cena, que acontece de modo alegórico durante uma audiência perante autoridades, fica no limiar de parecer gratuita, uma vez que serve, também, para expor à sua esposa Kitty (Emily Blunt) o caso que o marido teve com Jean Tatlock, fisicista filiada ao partido comunista que, aqui, é vivida por uma Florence Pugh despida de pudores ou vaidade. Porém, mesmo com tal risco, o momento consegue desenhar para o espectador uma eficiente metáfora para o que estava sendo feito de modo proposital e manipulador com a reputação do cientista naquele momento.

Trabalhando pela segunda vez com o compositor sueco Ludwig Göransson, e parecendo, assim, iniciar uma parceria que, antes, tinha Hans Zimmer como detentor de uma cadeira cativa ao seu lado, Christopher Nolan demonstra em “Oppenheimer” o mesmo maneirismo de guiar emoções através da tensão sonora aplicada nos diálogos que escreve para seus personagens. Incomoda em determinados momentos? Sim. Mas é compreensível que o diretor não queira trabalhar com o silêncio a pontuar as falas de seus atores. Mas esse silêncio, no entanto, surge em pontos cujo simbolismo de sua presença se fazem valer de maneira mais impactante, como quando o protagonista se encontra com Albert Einstein (vivido por Tom Conti) e um diálogo que denota de modo pungente a reflexão assustadora e apavorante para a humanidade que está por trás de “Oppenheimer” como uma obra cinematográfica e literária.

Naquele momento, o encontro de dois gênios, um ciente dos riscos que a ousadia de querer bancar deuses pode trazer ao mundo, e outro, mesmo ciente, se colocando disposto a corrê-los, descreve de maneira precisa o que Nolan quis trazer ao público com a sua referência a Prometheus e sua chama de conhecimento.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

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