Literatura: “Garota, interrompida”, de Susanna Kaysen, constrói um retrato das relações entre o feminino e a saúde mental

texto de Gabriel Pinheiro

No quadro “Garota Interrompida em sua Música”, que Johannes Vermeer pintou em 1658, estão em cena uma jovem e um homem, ambos segurando juntos uma partitura. Enquanto ela nos encara distraída, o homem parece querer mostrá-la algo naquela folha. Esta obra de Vermeer inspira “Garota, interrompida”, livro de memórias de Susanna Kaysen, onde a autora relembra os meses em que esteve internada em um hospital psiquiátrico em Massachusetts, EUA, no final da década de 1960. Naquele período de internação – 18 meses – algo foi interrompido, suspenso: a continuidade de uma vida, a linearidade do tempo. “Interrompida em sua música. Exatamente como minha vida, interrompida na música dos 17 anos, tal qual a vida dela – roubada e fixada em uma tela”. “Garota, interrompida” ganha nova edição pela Darkside Books, com tradução de Verena Cavalcanti.

“As pessoas sempre perguntam, ‘Como você foi parar lá?’, mas o que elas realmente querem saber é se existe a possibilidade de elas também acabarem em um lugar como aquele. Não sei responder à verdadeira pergunta. Tudo que posso dizer é isso: ‘É fácil’.” Publicado originalmente em 1993, “Garota, interrompida” é um relato em primeira pessoa, marcadamente não-linear. Construído a partir de pequenos capítulos, Susanna conta breves histórias, sobretudo acerca de seu período internada, mas também de alguns acontecimentos anteriores – que, num processo de acúmulo, a levaram em direção aquele momento, isolada do mundo ao lado de um conjunto diverso de mulheres, a maioria delas tão jovens quanto si mesma, então com 18 anos. Essa construção não-linear da narrativa reflete em texto a própria fragilidade da memória de Susanna e sua relação com o tempo – essa sensação do tempo suspenso, interrompido.

Susanna Kaysen constrói um retrato das relações entre o feminino e a saúde mental. Ou melhor, de como a sociedade da época via nas mulheres um grupo social mais propenso aos distúrbios psíquicos. “Muitos transtornos, de acordo com o pessoal do hospital, eram mais comumente diagnosticados em mulheres. Vamos falar, por exemplo, de ‘comportamento promíscuo’. Com quantas meninas você acha que um rapaz de 17 anos precisaria transar para receber o rótulo de ‘promiscuo compulsivo’.”

A autora teve o diagnóstico de transtorno de personalidade borderline. “Um padrão dominante de instabilidade relacionada à autoimagem, às relações interpessoais e ao humor”. Entre as características sinalizadas da doença – na época da internação de Susanna – eram destacados pontos como compras compulsivas, compulsão alimentar e a prática do sexo de maneira promíscua. Kaysen só teve acesso ao seu diagnóstico e aos prontuários e documentos relacionados à internação décadas após receber alta. Toda essa documentação é parte importante da narrativa desenvolvida pela autora, que insere essas fichas e relatórios médicos ao longo do texto. “O que é, de fato, o transtorno de personalidade borderline? Parece ser o meio do caminho entre a neurose e a psicose: uma psique fraturada, mas não desorganizada. Parafraseando Melvin, meu antigo psiquiatra: ‘É o nome que escolhem para dar as pessoas cujos estilos de vida incomodam os outros’.”

Enquanto confronta seus próprios medos e traumas, Susanna Kaysen é uma observadora atenta do ambiente e daquelas que o habitam ao seu lado. Conhecemos a autora também na relação que ela desenvolve com outras pacientes – Cynthia, Polly, Georgina e Lisa – cada uma convivendo com seus próprios fantasmas – a depressão, a esquizofrenia, a sociopatia. “Algumas de nós conseguiriam – outras não. Contudo, aos olhos do mundo, de qualquer forma, todas nós estávamos corrompidas”.

Levado ao cinema em 1999, “Garota, interrompida” é um daqueles casos de adaptações que se tornam mais conhecidas numa memória coletiva do que as obras que lhes deram origem. Escrito e dirigido por James Mangold, o longa é protagonizado pela atriz Winona Ryder, que interpreta Susanna, e co-estrelado por Angelina Jolie, no papel de Lisa, que lhe rendeu uma série de prêmios naquela temporada, incluindo o Oscar de Melhor atriz coadjuvante. A adaptação é interessante na medida em que se aprofunda e ficcionaliza – em maior ou menor medida – as histórias das demais companheiras de Kaysen no Hospital McLean, num elenco coadjuvante primoroso incluindo nomes como Clea DuVall, Brittany Murphy e Elisabeth Moss.

31 anos após seu lançamento original – e 57 anos após a internação de sua autora – “Garota, interrompida” segue sendo um relato marcante sobre transtornos mentais e o longo e doloroso processo de auto-aceitação. As memórias de Susanna, por vezes, parecem marcadamente atuais, na medida em que, mesmo após tantos anos, uma série de tabus seguem obliterando a relação e a percepção da sociedade contemporânea acerca da saúde mental.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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