Entrevista – Gabriel Thomaz se lança solo no projeto Multi-Homem e avisa: “Estou fazendo as coisas sem medo de ser feliz”

entrevista por Bruno Lisboa

Falar sobre Gabriel Thomaz é falar sobre o cenário de rock independente em terras brasileiras. Desde o período em que capitaneou o essencial Little Quail and The Mad Birds nos anos 90, Gabriel estabeleceu uma relação intrínseca com o mercado independente, ajudando a formatar e consolidar fórmulas que hoje são comuns. Depois, tanto como guitarrista e vocalista do Autoramas (que celebra 25 anos de estrada em 2023!) quanto como coordenador / idealizador do selo Maxilar Records, o músico fez de sua carreira um instrumento de militância em defesa da música underground. Das mais variadas facetas que assumiu ao longo de mais de três décadas dedicadas à música, Gabriel decidiu (finalmente) se lançar me formato solo. O resultado pode ser conferido no álbum “Multi-Homem”, lançado em janeiro, em que ele opta por explorar texturas sonoras que, segundo o próprio, não cabiam na sua banda principal.

São letras minimalistas, simples e refrões pegajosos acamados por sonoridades dispares que vão desde os tradicionais punk e garage rock a cumbia peruana, o tecnobrega, frevo e o axé. Produzido no estúdio Vegetal, de Jairo Fajer (baixista do Autoramas), “Multi-Homem” conta com diversas participações especiais como Márcia Castro (no single “Caramabola”), Felipe Bueno (na nova versão para “A História da Vida de Cada Um”, do repertório do Autoramas) e o baterista Fernando Fonseca, músico que o tem acompanhado nas turnês. Na entrevista abaixo, Gabriel fala sobre a nova fase, referências, a música na era do streaming, seu lado curioso e a busca insaciável por novos sons, as nuances de se apresentar em formato solo, o modus operandi do selo Maxilar, o legado dos Autoramas, planos futuros e muito mais. Confira!

Há tempos muitos esperavam o lançamento de um disco solo seu e só agora em 2023 rolou de fato. Como se deu o processo de composição e gravação do álbum?
Estou fazendo finalmente o meu trabalho solo porque tem muitas coisas que eu já queria ter lançado, muitas músicas que estou gravando, e outras que eu já ofereci para outras pessoas, para outros artistas. Sempre tive essa coisa do compositor. Muita gente gravou música minha, algumas delas ficaram bem famosas nas vozes de outros artistas. Sempre fiquei muito feliz em entregar essas músicas. Mas tem coisas que eu realmente também gostaria de lançar. A “Carambola”, por exemplo, a Roberta de Razão já tinha gravado, mas tinha transformado num punk rock e eu sempre achei que ela tivesse uma coisa mais axé. Gravei ela com a Márcia Castro, e ficou bem legal, ficou um Garage Axé (risos). E é isso, eu sempre quis fazer determinadas coisas e não tinha oportunidade. Então com o projeto solo é uma mistura de várias coisas que eu não conseguia botar na rua e que está aí. Desde até mesmo regravações do Autoramas, coisas que era difícil colocar em show, que era difícil de tocar, ou que eu queria tocar de outro jeito. E tem as coisas novas, as versões de outros artistas também, coisas que eu sempre quis gravar, e não tinha tido oportunidade. Acho que é o momento certo. Gravei o disco todo sozinho. Noventa por cento das músicas eu gravei no estúdio do Jairo, o Vegetal, em Itatiba, interior de São Paulo. Morei lá com ele por um tempo, terminei os arranjos e gravei essas músicas todas. Eu não sei tocar bateria e para algumas delas eu chamei o Fernando Fonseca, que é quem toca a bateria comigo ao vivo, para gravar. São só umas três ou quatro músicas. E teve umas percussões que eu chamei a Bárbara Nega, de Jundiaí, que me ajudou principalmente em “Carambola” – em “Peru Pará” e “Que Delícia, Que Loucura” o Edu K fez as percussões eletrônicas. Ele é mestre nisso e me ajudou muito. Agora já estou já marcando data para começar o segundo (disco). Já tenho até repertório.

Em “Multi-homem” você promove uma aproximação com ritmos diversos, como o já citado axé, mas sem perder a sua identidade ligada ao punk/garage e adjacências. Como se deu a construção dessa miscelânea de sons?
A primeira referência, que acho que é mais básica, é a coisa da cumbia psicodélica peruana. Que também se chama Chicha. Sempre tive essa pilha de compor para outros artistas. Sempre pesquisei outros ritmos. As estruturas de outros estilos, outros gêneros. Então comecei a abrir a cabeça pra essas possibilidades até que as ideias foram pintando. Estou fazendo as coisas sem pudor e sem medo de ser feliz.

Quem te acompanhada pelas redes sociais e palcos da vida sabe dessa sua verve pesquisador e é interessante pensar como essa busca eterna acaba por refletir no seu fazer musical. Nesse sentido tem algum campo ou área que você, musicalmente, não tenha explorado e deseje fazê-lo?
Cara, eu não me considero um pesquisador. Eu me considero uma pessoa interessada, sabe? E em tudo que rola. Sonoridades tem muitas pelo mundo e é sempre um prazer ter descobertas sonoras. É um barato, cara. É uma delícia. E é difícil de falar alguma coisa que eu não tenha explorado. Talvez eu venha a descobrir. A Chicha peruana foi isso. Conheci o gênero quando fui fazer um show no Peru, e voltei com 110 discos na sacola, todos desse gênero. (Chicha) É uma loucura. Sem contar dentro do próprio rock and roll, sabe? Do próprio gênero que a gente está acostumado. Pô, tem tanta coisa que que eu gostaria de explorar que às vezes falta informação, falta dinheiro, falta recurso para ir atrás. Estou sempre atento às dicas dos amigos, das revistas, dos sites. Acho que a palavra mais certa não é pesquisador, acho que é curioso.

Curiosidade é algo que deveria mover todo e qualquer entusiasta da música, porém a maneira como o público lida com ela tem mudado drasticamente desde o advento do streaming. Como colecionista de discos físicos, como você vê essa mudança?
Eu vejo uma mudança que é incrível, que é uma loucura e que eu tento explorá-la de todas as maneiras: eu passei a minha vida inteira procurando por um determinado disco, anos, décadas, e agora em um clique eu acho. Sou do tipo que ainda festeja quando isso acontece, por estar lá no streaming para que eu possa ouvir no momento que eu quero. Por exemplo, tinha uma banda da antiga Iugoslávia que eu passei a vida inteira procurando. E aí eu esqueci dela. Um belo dia lembrei de simplesmente procurar no YouTube. E na hora que escrevi o nome dela na busca, ela estava lá. Olha que beleza! De graça, bicho. Pô, que maravilha. Mas cada pessoa é diferente. Acho que todas as engenhosidades foram engendradas para serem bem ou mal-usadas, sabe? Se a pessoa quer só usar as coisas pra ouvir a mesma coisa de sempre é ok. Mas eu gosto muito de acompanhar lançamentos, gosto muito de acompanhar coisas novas. E acho que nunca foi tão bom, tão prático, sabe? Sei lá, eu tenho o hábito de ouvir música, de ser curioso com a música desde que comecei a ouvir música. Não sei se isso (do streaming) está errado, sabe? Apenas são maneiras muito diferentes (de ouvir música). Cada um na sua.

Recentemente vi uma apresentação solo sua, junto ao baterista Fernando Fonseca na Audio Rebel (RJ). O formato mínimo da apresentação, o set diversificado (com material solo, repertório do Autoramas e covers) e a crueza impressa foram coisas que se destacaram. Como tem sido para você essas apresentações? Quais são os desafios de se “desnudar” ao vivo?
Na realidade, o show solo tem um aspecto bem mais complicado do que as coisas que eu já fiz anteriormente, mesmo com o Autoramas. Uso duas pedaleiras e muitos recursos eletrônicos, tanto pra guitarra quanto pra voz. E pra controlar tudo isso, tocar e estar ali, conversar e levar as coisas com naturalidade, é bem difícil e complicado. Para mim é uma evolução muito grande (tocar em formato solo). Comecei fazendo esse show só, mas aí veio a ideia de fazer um show solo e eu sentia falta da bateria. Então chamei o Fernando (Fonseca), que gravou comigo. Ele mora aqui em Jundiaí. Eu já tinha feito shows com ele e lancei a banda dele, o Velódicos, pelo Maxilar, nós ficamos muito amigos e rolou isso legal. Eu acho que tocar instrumentos não tem regra. Não existe uma maneira determinada de se tocar. É meio tipo Bombril. Existem mil e uma maneiras de usar os instrumentos e eu estou tentando inventar a minha maneira, como eu sempre fiz. O Autoramas tem uma fórmula que é muito particular, do baixo com distorção, a guitarra com muitos recursos, com efeitos bem diferentes, fora do comum, do padrão de que você vê os guitarristas usando. As baterias dançantes, (Autoramas) é um rock dançante. Agora estou buscando uma outra fórmula de fazer as coisas sozinho. Muitas vezes ao fazer um solo, que seria feito na guitarra, eu faço na voz enquanto a guitarra está fazendo um som de baixo ou de synth. E acho tem uma riqueza nisso. No meu álbum (solo) regravei músicas do Autoramas que eu não conseguia tocar ao vivo. Elas nunca entravam no repertório. Isso me deixava um pouco frustrado, porque filho a gente ama tudo com o mesmo amor. Então a música não entra no show e eu não me conformo e acabou que agora eu toco várias coisas que eu não conseguia tocar no show do Autoramas. Aproveito e também faço homenagens para alguns amigos como Erasmo Carlos, o Júpiter (Maçã)… músicas que também não estão sendo mais tocadas. Acho interessante fazer isso. Lancei o single de “Eu Tenho Febre” e o Leno faleceu uma semana depois. E é era uma música que eu queria tocar há muitos anos, desde que eu a ouvi a primeira vez, mas eu nunca conseguia ter espaço. O Autoramas é uma banda com nove álbuns então é difícil enfiar uma música num show de 22/23 músicas. E olha que a gente varia sempre. O projeto todo, o show, o álbum são todos calcados em coisas que eu tenho vontade de fazer, tocar, que eu quero botar na rua. É isso. Você me perguntou do desafio, e o desafio pra mim é exatamente controlar ainda mais coisas no palco sem errar. Sem perder a concentração, continuando ali, interagindo com a galera, conversando com as pessoas. O desafio é tornar tudo isso o mais natural possível.

Durante essa conversa você citou contribuições de diversos músicos. Queria que você falasse mais sobre isso, citando como se deu a seleção de quem iria somar e quais foram as contribuições que eles trouxeram pro disco.
O álbum foi feito de pouco a pouco. Música por música. Eu pedi ajuda do que eu precisava pra outros músicos. Não tem nenhum mistério. Tudo foi feito numa tranquilidade muito grande. O álbum foi gravado no estúdio do Jairo, que é baixista da Autoramas. Ele ajudou muito, sabe? Eu, Jairo e o Alê, que é o técnico de som do Autoramas, gravamos juntos as músicas. Ele (Alê) mixou e foi tudo muito tranquilo.

O selo Maxilar foi fundado a dois anos e é interessante e louvável observar o quão amplo é o catálogo de artistas lançados. Olhando em retrospecto, você está feliz com os resultados alcançados? E ainda: quais são os planos futuros para essa iniciativa?
Comecei o Maxilar um pouquinho antes da pandemia. Durante a pandemia, depois que eu fui internado, consegui organizar bastante coisa porque eu tinha tempo pra fazer isso. Rolou legal, cara. Realmente tem um espectro muito amplo de estilos. Mas ao mesmo tempo são todas coisas que eu tenho alguma familiaridade. Estou gostando muito de fazer. A gente está indo devagar porque a gente não tem bala na agulha pra fazer muito investimento. Mas a gente faz tudo direitinho e está rolando bem. Algumas das bandas estão começando a se destacar. A gente tem feito festa, tem feito festival, além dos lançamentos e está muito bom. Estou gostando. Sobre os planos futuros… eu gostaria muito de ter algum apoio. Acho que todo mundo tem esse objetivo. Mas enquanto isso seguimos fazendo. Sempre tive o sonho de fazer um selo e, finalmente, consegui. Eu já tinha tido um selo antes que era a Gravadora Discos, pra lançar coisas em formatos esquisitos. Na época os formatos esquisitos eram vinil e cassete. Hoje não são mais esquisitos e tem gente fazendo isso muito melhor do que eu (risos). O próprio conceito do selo ficou ultrapassado. Mas adoro fazer essas coisas, lançamentos. Gosto de ajudar as bandas e quero que elas se destaquem. Estou trabalhando pra isso.

Ainda falando do selo, como se dá o processo de seleção do que vocês vão lançar? Quais características o artista deve ter para fazer parte do Maxilar?
Cara, existem gêneros que a gente se identifica mais tipo surf (music), garage. Eu gosto muito de coisas assim, eletrônicas, sabe? Curto muito, e acho que tem muita gente boa fazendo isso. O critério, cara, é a gente gostar. A gente achar que rola. É principalmente isso, mas vou te falar, bandas que a gente vê que está tocando, trabalhando, que querem fazer o lance (também chamam a nossa atenção). É por esse caminho que a gente quer seguir.

Queria falar dos planos futuros é falar do Autoramas, que em 2023 celebra 25 anos de história! Qual o principal legado da banda que você percebe na cena atual?
Muita gente me fala que ouviu muito o Autoramas, gente de bandas mais novas, gente que veio depois, ou até mesmo gente da nossa geração, que curtiu muito, que entendeu muita coisa do funcionamento da música, com o jeito que a gente fazia as coisas. Toda a (parte) prática, as turnês, as gravações e a busca por uma identidade própria. E a própria influência musical… Já houve um tributo ao Autoramas que saiu há alguns anos. Por um outro aspecto é o lance da música independente. Quando a gente começou o independente era um sinônimo de amador, sabe? É claro que já existia o independente, mas eu acho que a nossa geração conseguiu transformar a música independente em algo que também dá pra ser profissional. Nem todos conseguiram, mas acho que a gente conseguiu fazer com que a música independente se tornasse profissional no Brasil. A gente e outros artistas. O Autoramas é um personagem muito importante nisso. Um dos mais importantes. A gente começou numa época que os festivais eram apenas de rock e hoje estão abrangendo outros estilos, artistas que são da nossa geração, são da parte da cena, daquilo que o Autoramas ajudou a construir. A gente tem uma história nesse sentido de não ter seguido determinadas regras que eram obrigatórias até isso acontecer, sabe? Fizemos de outro jeito e incrivelmente deu certo, com muito trabalho, com muita dedicação. A gente nunca quis esconder os contatos, pegar as coisas só para nós. A gente sempre deu dicas, sempre ajudou, sempre esteve aí, sempre foi parceiro. Até pela vontade de que a cena inteira crescesse. Com isso nós tivéssemos resultados e foi o que aconteceu. Hoje vejo que o cenário independente, que antes era um cenário de rock, hoje tem uma infinidade de gêneros. É natural que isso aconteça com um país como o Brasil, que é muito musical. Fico feliz com isso.

Apesar da longa trajetória marcada por turnês pelo mundo e grandes discos, há algo que o Autoramas ainda não fez, mas que você gostaria de fazer?
Muitas coisas! A gente nunca fez um disco ao vivo (nota: a banda tem um registro acústico chamado “MTV Apresenta Autoramas Desplugado”)! A gente nunca fez um disco infantil (Gabriel participa da versão de “1, 2, 3, 4”, do Little Quail, regravada para o projeto infantil Espoleta Blues, de Elder Effe). A gente nunca tocou na Oceania. A gente nunca tocou em Nova York. Tem muita coisa que eu quero fazer. Queria relançar toda a discografia do Autoramas em vinil. Queria lançar os b-sides e extras em algum formato físico. É tanta coisa…

Pra fechar: como ser inquieto que atua em várias linhas de frente, quais são as perspectivas para o ano de 2023? Após quatro anos de recessão maldita na área cultural, você acredita que é possível pensar num recrudescimento na área artística daqui pra frente?
Aposto nisso porque preciso disso. E espero mesmo que aconteça. A gente não conseguiu ainda retomar o pique que a gente tinha antes da pandemia. Estou considerando essa fase do ano como uma fase no sentido de plantar novamente. Vamos ver quando é que a gente vai colher. Enquanto tudo estava parado, coloquei todas as ideias que eu tinha em prática. Mas eu estava num pique muito grande. A gente ia fazer show, fazer turnês, gravar, eu voltava pra casa exausto, dormia e recomeçava. Espero que que as coisas venham novamente. E a vida do artista, da pessoa envolvida com isso, é assim: todo dia você tem que acelerar, tem que focar, se concentrar e mandar brasa. Vamos nessa.

Tem algum assunto que não tocamos e que você queria citar?
Ahhh, meu velho, tem muitos (risos). Se você deixar eu falar eu não paro mais!

–  Bruno Lisboa  escreve no Scream & Yell desde 2014. 

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