Ao vivo: Chvrches protagoniza uma das grandes noites da música pop no ano em SP mostrando sua fluência na arte do agridoce

texto e fotos por Fernando Yokota

Em noite solo e para o seu público, os escoceses do Chvrches trouxeram o show de divulgação de seu último trabalho, o excelente “Screen Violence” (2021), cujo ciclo provavelmente se encerra após o fim do atual giro brasileiro com o Coldplay. Com mais tempo de palco e sem a obrigação de “ganhar o rebanho” de outro artista, a banda pode apresentar canções que ficaram de fora do repertório dos shows que fazem parte do ato de abertura para o beemote inglês.

Abrindo a noite, “He Said She Said” é a epítome da banda. Em meio a um mil folhas de timbres empilhados pelo duo Iain Cook e Martin Doherty (acompanhados do baterista Jonny Scott), a voz da vocalista Lauren Mayberry é o veículo que externa a raiva de submeter a um atrasado ideário machista e de objetificação feminina entre compassos complexos curiosamente inspirados pelo metal sueco do Meshuggah que colidem com o aceno ao hyperpop no uso do autotune, mostrando o engenho por trás do que o ouvinte menos atento (ou mais esnobe) dispensaria à guisa de ser somente “música pop”.

Durante a uma hora e meia de apresentação, o Chvrches passa pelos seus maiores sucessos navegando por relacionamentos abusivos em “Leave A Trace”, a procura de um senso de pertencimento com “Miracle” (uma das mais aguardadas do repertório) e versos mais abertos à interpretação do ouvinte, como em “The Mother We Share” (mentes mais criativas chegaram a pensar que se tratava sobre incesto, fato negado pela banda ). Em outros momentos, canções como “Tether” – uma das favoritas do público na noite -, “Never Say Die” e a saideira “Clearest Blue” deram a chance dos fãs finalmente pularem e cantarem ao synth-electro-indie pop cirúrgica e impecavelmente construído pelo grupo em sua primeira visita ao país e, no caso, em seu primeiro concerto como ato principal em terra brasilis.

Vale, no entanto, destacar as canções de “Screen Violence”. Ao ser tocado junto ao resto do catálogo, fica evidente que o material mais recente mostra uma banda mais madura, com timbres, melodias e letras mais interessantes. Riffs hipnotizantes, stems de sintetizadores grudentos e refrões irresistíveis abundam em canções como “Good Girls”, “Violent Delights”, “Asking For A Friend” ou “Final Girl” (esta última, com o palco iluminado por centenas de luzes de celulares da plateia).

Mesmo números como “How Not To Drown”, que no disco conta com a voz e guitarra barítona de Robert Smith, não perdem em sua versão ao vivo ainda que sem a presença estelar do vocalista do The Cure. O veredito final, contudo, quem dá é o próprio público, que recebia cada música de “Screen Violence” com a mesma (ou mais) animação que os clássicos mais estabelecidos da discografia do grupo. Até o último single, “Over”, lançado há alguns dias e tocado pela primeira vez ao vivo na noite de abertura da turnê brasileira do Coldplay, era cantado pelo público que, sabe-se lá como, parecia saber todos os versos. Vox populi, vox Dei.

O bis, com Mayberry coberta em “sangue” (fato que se repetia em todos os shows da turnê da banda mas que nos shows de abertura do Coldplay não acontecia), é uma matadora sequência com “Asking For A Friend” (talvez a melhor da noite), “The Mother We Share” (a música que tirou a banda do anonimato há uma década), encerrando com “Clearest Blue”.

A fórmula do contraste “melodias grandiosas para versos soturnos” pode ser tão velha quanto a música popular que vai de “Eleanor Rigby” (cuja vida se resumia a ver a vida dos outros na igreja em que um dia morreu) a “Every Breath You Take” (o relato de um stalker em primeira pessoa), e foi honrando essa tradição que o Chvrches protagonizou uma das grandes noites da música pop no ano mostrando sua fluência na arte do agridoce. Semana que vem é no Rio. Divirtam-se, cariocas.

Setlist:
He Said She Said
Forever
Leave A Trace
Bury It
California
How Not To Drown
Violent Delights
Tether
Science/Visions
Good Girls
Over
Miracle
Death Stranding
Night Sky
Final Girl
Recover
Never Say Die

Asking For A Friend
The Mother We Share
Clearest Blue

– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/

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