Entrevista: Post-rock? Psych-rock? Nada disso? Tudo? Ouça “Dose”, a nova expiação sonora do Morning Scales the Mountain

entrevista por Alexandre Lopes

“Barulho e dissonância extremos podem ser algo incrivelmente purificante”, já dizia Kim Gordon em seu livro de memórias “A Garota da Banda”. Se o alto volume de apresentações ao vivo pode propiciar um ambiente sonoro imersivo, esse efeito pode ser ainda mais catártico se a música em questão for improvisada livremente, seguindo o fluxo emocional dos artistas e expressões por meio de seus instrumentos. E esta é justamente a receita do que o Morning Scales the Mountain faz em seu novo álbum, “Dose” (2023): uma expiação sonora.

“Tudo no Morning Scales the Mountain é livre e o caminho é construído ao longo da sessão”, afirma o guitarrista e baixista André Ramiro (conhecido pela sua participação na célebre banda curitibana de post-rock ruído/mm, além de outros projetos como Índios Eletrônicos, Spectral Noise e Ramiro Matéria). “Não há repetições ou registros extras, então as faixas aparecem de acordo com o estado mental de cada um ali participando”, pontua o músico. A descrição pode soar semelhante a antigas jam sessions de músicos de jazz; porém neste caso a sessão é amplificada por riffs e drones dissonantes.

O MStM tomou forma em Houston, Texas (EUA), quando o guitarrista Tom Carter (influente na cena experimental norte-americana por conta de sua banda Charalambides), convidou o amigo baterista e percussionista John Alan Kennedy (ex-Cyclope Joint) para tocar com ele e Ramiro, um brasileiro que se mudou para sua cidade a trabalho e com quem mantinha contato pela internet. O resultado do ensaio descompromissado foi tão inspirador que o trio um tempo depois divulgou seu primeiro álbum, “Morning Scales the Mountain” – uma frase retirada do poema “Ephemeris”, de Philip Lamantia.

Lançado em setembro de 2018, o disco trazia quatro faixas que passeiam por longas paisagens com ecos de post-rock e improvisações instrumentais longas e viajantes, como o single “The Stars Sit On High”, que beira os vinte minutos. A “banda imaginária de rock” – como Tom Carter gosta de se referir ao grupo – ocasionalmente conta também com o reforço do ex-moscovita Misha Tsypin (poeta e artista performático) em vocais itinerantes e efeitos eletrônicos nas apresentações ao vivo.

Agora o trio principal do MStM finalmente retorna com seu segundo álbum, lançado pelo selo Sinewave. Gravado em Houston entre 2019 e 2020 por Ryan Edwards e Shannon Smith, o material apresenta cinco composições com a dinâmica de música livre já característica do grupo; só que desta vez a guitarra embebida de fuzz e wah de Tom Carter soa um pouco mais agressiva, mas sem abrir mão de uma linguagem minimalista. Pode-se dizer que “Dose” é a faceta mais roqueira da banda até o momento, alternando-se entre dedilhados sublimes e peças de bateria que oscilam entre participações corpulentas e marcações tímidas, construindo mais pulso do que ritmo, desdobrando-se em texturas e fluxos intensos.

Atualmente residente em Paris (França), André Ramiro conversou rapidamente por e-mail com o Scream & Yell para dar mais detalhes sobre a nova obra do MStM, explicar como funciona a dinâmica do grupo e também fazer um certo mistério sobre seus outros projetos.

Em comparação ao álbum anterior, “Dose” tem uma sonoridade mais pesada, utilizando mais guitarras com fuzz e wah wah e a bateria está mais presente e pulsante. Falando em rótulos, é como se o primeiro disco fosse mais para post-rock e o novo para psych-rock. Ao que a banda acha que se deve essa mudança?
Acredito que seja difícil rotularmos alguns álbuns ou determinadas bandas. O próprio termo post-rock é uma caixa bagunçada repleta de grupos indefinidos, né? Porém, a comparação que você fez entre o disco anterior e “Dose” é verdadeira. Pode-se dizer que a sonoridade final ficou mais pesada. Desta vez incluímos o contrabaixo em algumas gravações (no outro disco eram apenas guitarras) e talvez seja este o fator de maior acento e peso nas faixas.

Como aconteceu o processo de composição do álbum?
Tudo no Morning Scales the Mountain é livre e o caminho é construído ao longo da sessão. Ficamos no estúdio por volta de três a quatro horas e existe apenas um take para cada momento. Assim, alguns ficam legais, outros nem tanto, mas procuramos utilizar o máximo possível. Não há repetições ou registros extras, então as faixas aparecem de acordo com o estado mental de cada um ali participando.

“Dose” deve sair em formato físico também?
A Sinewave vai distribuir nos streamings e é nosso selo principal. Há interesse de selos europeus para uma tiragem pequena em vinil (CD nem vale a pena hoje em dia), mas vamos ver. Nada certo ainda.

Vocês pretendem tocar o álbum ao vivo, fazer shows para divulgá-lo?
Sim, sempre que nos encontrarmos iremos tocar. Há boa chance de eu ir visitar o Tom e o John no Texas ainda este ano, e alguns shows na Europa poderão também acontecer, já que estou por aqui [na França]. Queríamos muito tocar no Brasil um dia, vamos ver se rola. Porém, sobre divulgar o álbum ao vivo: como disse antes, o show pode até ter uns elementos que aparecem no disco, mas a viagem é livre e normalmente bem diferente.

Reparei que John Alan Kennedy assinou a arte da capa dos dois álbuns da banda. Existe um conceito específico ou ideia principal que o artista/baterista quis transmitir nas capas?
O John é um artista único, uma das pessoas mais talentosas que conheci no Texas. A arte do nosso primeiro disco ele fez à caneta e a quantidade de detalhes é surreal. Ele fez este desenho novo para “Dose” que também achamos muito bacana e decidimos utilizar. Não posso falar por ele, mas me parece que a ilustração do John transmite os mesmos dualismos do nosso som: luz e sombra, amor e ódio, vida e morte, e outros tantos.

Tempos atrás morar em cidades ou estados diferentes eram razão suficiente para que bandas chegassem ao fim de suas atividades, mas o MStM possui integrantes em continentes separados. Como vocês enxergam isso e o quanto isso atrapalha ou beneficia o grupo?
O MStM é um grupo que não executa faixa de disco ao vivo, então não há necessidade de ensaio. Na verdade, todo encontro com instrumentos vira uma gravação, o que para mim é o lado positivo do grupo. O problema de não estarmos juntos na mesma cidade ou país é que não iremos gravar usando computadores à distância. Precisamos estar na mesma sala, ouvindo uns aos outros e por vezes não ouvindo nada de tão alto (risos), mas a presença física é obrigatória.

Em 2021 vocês participaram do “Love You”, um álbum tributo duplo em homenagem ao Syd Barrett, juntamente com bandas de diversos países como Itália, México, França, Irlanda, Reino Unido, EUA, etc. Vocês gravaram uma versão de um outtake instrumental obscuro chamado “Rhamadan”. Como isso aconteceu?
Que legal que você achou isso, estou preparando um post para colocar esta track no bandcamp! Este convite veio pelo Tom Carter, que tem muita história na música experimental dos EUA e do mundo, e com isso muitos contatos de gravadoras e produtores. Fizemos esta gravação ao vivo no Khon’s, um bar em Houston aberto a experimentações e que ajuda muito a cena de improvisação. Lembro que ouvimos juntos a track original para delinearmos algo, mas no final trocamos umas palavras de como íamos começar, alguma ideia de meio e algo para o final; ou seja, não definimos quase nada (risos). No final das contas gravamos um encontro sonoro dentro do nosso ambiente espacial.

O seu último show com o ruído/mm aconteceu em 2016 no South by Southwest e os outros membros estão envolvidos em projetos distintos. Mas recentemente o perfil da banda no instagram postou imagens de vocês juntos e em um estúdio. Podemos esperar por novidades?
Acho que tiveram outros shows [do ruído/mm] depois do SXSW, porém foi realmente meu último com a banda. Como estou morando fora [do Brasil], tento ajudar como posso em composições e gravações, mas não é a mesma coisa; a presença faz uma grande diferença. Diria assim: o ruído/mm está hibernando pós-covid, que não foi fácil para ninguém. Então vejo o grupo quieto, sem muitas palavras, porém com seus integrantes estudando, gravando e trabalhando em diferentes projetos. Ou seja, o vulcão ainda está ativo.

Além do Morning Scales the Mountain, quais são seus próximos planos? Você pretende voltar a lançar mais material pelo seu projeto solo, o Ramiro Matéria?
Meus planos mudam o tempo todo. Tem dias que quero lançar um monte de estudos do Ramiro Matéria (tem muita coisa para sair), porém no dia seguinte quero vender tudo e ficar só com um violão e nunca mais gravar (risos). O certo é que em Paris ainda não achei meu “Morning Scales por milímetro” e fazer as coisas sozinho é muito chato. Ter uma banda é uma das melhores experiências da vida, então espero achar as pessoas certas aqui para a adrenalina voltar a correr.

– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br



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