Cinema: “Halloween Kills” e o mal como essência da natureza humana

texto por João Paulo Barreto

Desde seu primeiro longa de 2018, a nova trilogia “Halloween” joga com as rimas visuais e temáticas oriundas de seu original, o homônimo sucesso dirigido por John Carpenter em 1978. São enquadramentos perceptíveis em sua relação com o filme que consolidou a carreira do diretor de “Eles Vivem”, como aquele em que vemos alguém observando de longe, do lado de fora de uma escola, uma aluna em sua sala de aula, ou modo como as calmas ruas da fictícia Haddonfield, Illinois, são retratadas em oposição à bizarra presença de um brutamontes usando um macacão imundo e uma máscara aterrorizante.

Mas para além disso, essa revisitação ao universo “carpenterniano” proposta pelo cineasta David Gordon Green não fica somente nesse aspecto de homenagem e gracejos visuais direcionados aos fãs atentos, mas, sim, consegue trazer elementos inovadores para uma já combalida proposta de cinema de horror e suspense com assassinos em séries. Nessa continuação, apropriadamente batizada de “Kills” (do inglês, “matar”), Green abraça o estilo slasher de cinema (termo que define filmes com muita sanguinolência e ferocidade). Trata-se de um trabalho brutal, sim, que agrada a um público restrito. Mas a discussão antropológica oferecida aqui avança mais profundamente do que apenas ao espetáculo de violência visual dentro dessa proposta de cinema.

Desconsiderando as várias (e infelizes) continuações, a nova trilogia (sim, há outro filme em produção previsto para 2022) iniciada há três anos centrou sua ação exatamente quatro décadas depois dos acontecimentos trágicos daquela noite de Dia das Bruxas em 1978. O serial killer Michael Myers está encarcerado e tem sua transferência para outra instituição agendada. Um casal de documentaristas visita o lugar para uma entrevista, o que, claro, funcionará como o gatilho para despertar aquele monstro.

Na outra extremidade daquele espectro, Laura Stroode (Jamie Lee Curtis) ainda carrega os traumas daquele dia no final da década de 70. Reclusa, antissocial e paranoica (com razão, claro), Laura vive em uma fortaleza na qual se prepara para o dia em que o mal a visitará de novo. Solitária, perdeu a guarda da filha, pois o serviço social a julgou incapaz de criá-la. Claro que os estafantes treinamentos de autodefesa aos quais fez a criança passar não a ajudaram nesse sentido. É neste ponto que o filme de 2018 começa, sendo que o reencontro entre Laura e Michael não será surpresa para ninguém.

Ainda em relação ao modo como a violência nesse novo “Halloween” é inserida de maneira mais brutal do que se tornou comum em filmes com propostas de horror que em tempos recentes chegaram aos cinemas, a percepção é de que a simples história criada por John Carpenter há mais de 40 anos alcançou um patamar superior neste imaginário. Claro que houve releituras sofríveis da história de Michael Myers no decorrer dessas quatro décadas, mas a presença daquela máscara de expressão nula do assassino, cujo olhar frio (propositalmente, creio) se assemelha um pouco ao modo como a idosa Laura Strode parece avaliar seus arredores, permite uma abordagem mais profunda do que se passa na mente daquele assassino precoce.

Claro que é necessário levar em consideração aspectos relacionados ao investimento que o filme possui e a busca por classificações indicativas menores que permitam uma maior bilheteria. Aqui, a faixa etária de 16 anos a limitar a entrada no cinema já garante que parte da brutalidade vista na tela seja mais esperada. Mas no caso do imaginário proposto pela obra original de John Carpenter e Debra Hill, que co-escreveu o filme original ao seu lado, é algo que vai além. O mal presente dentro da sociedade que neste novo filme se apresenta tão evidente surgia de maneira subliminar nas páginas originais da dupla de roteiristas originais. Myers surgia mascarado, à luz do dia, entre arbustos de uma cidade supostamente calma e pacata. Mais do que isso, ele era a personificação de algo que existe nas entrelinhas daquele lugar. Nesta nova leitura, desde o momento no filme de 2018 em que o psiquiatra se revela também um psicopata curioso pela sensação de se tornar um assassino serial, até o ponto em que a sociedade local decide tomar para si o status de júri, juiz e carrasco, notamos como o lema “Evil Dies Tonight” (o mal morre hoje à noite), desde sua concepção, não se aplica de modo concreto. Ao contrário. O mal apenas muda de personificação.

Utilizando como um dos seus cenários o hospital para onde as vítimas de Michael Myers são levadas ao final do primeiro filme, “Halloween Kills” aproveita para criar a mesma rima narrativa proposta em suas imagens a emular os filmes da série original. Apesar do filme de 1981, “Halloween 2 – O Pesadelo Continua”, e o roteiro de John Carpenter, terem sido desconsiderados no aspecto narrativo do mais novo longa, é curioso observar que o mesmo hospital onde se passava a ação no fraco longa sequência do hit de 1978 volta a ser um dos cenários principais aqui.

E é justamente lá que a citada proposta de estudo da natureza humana ganha corpo no roteiro do filme dirigido por David Gordon Green. As cenas nas quais vemos uma multidão perseguir alguém pelos corredores e escadas do hospital, dispondo de armas em punho, aos gritos insanos de morte e sem qualquer certeza de se tratar do real serial killer a solta na cidade, descreve bem o que acontece com uma sociedade que idolatra armas e a ideia de se fazer justiça com as próprias mãos. A tragicidade e simbolismo na reflexão que toda aquela sequência traz para “Halloween Kills” aprofunda a experiência de um filme assumidamente “gore” levando-a para algo ainda mais rico: quem são os reais psicopatas naquela cidade? Michael Myers, pelo visto, não está sozinho.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.



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