Entrevista: Plural, um trio gaúcho para se prestar atenção

entrevista por Homero Pivotto Jr.

Toda a banda tem suas singularidades, assim como cada indivíduo. Com a Plural não é diferente. O nome, na verdade, é uma afirmação de que o trio de Porto Alegre preza pelo respeito às individualidades que compõem a diversidade da vida. Além disso, claro, é um indicativo de que as fontes de inspiração são variadas. Na música, passeiam do rock à MPB, com elementos do reggae e do indie pop. Mas vão além, contemplando outros fazeres artísticos e o universo que nos cerca.

Essa olhar heterogêneo reflete-se nas composições. Na faixa que leva o nome do grupo (um dos três singles lançados pelo trio em 2020) e que ganhou videoclipe em 1º de setembro, vemos um analogia com o Brasil de hoje — polarizado, intolerante e com dificuldade para observar o que destoa. Como sugerem os versos: “De olhos que presumem muito ver / Sem enxergar / Não tem percepção do vazio / A se alastrar / Os semelhantes vão / Gritando apontar / Os diferentes que devem se ajustar ou se retirar”.

De forma simples, mas bem pensada, o vídeo apresenta um cenário no qual somos peças manipuláveis nesse infindável jogo de poder. “Essa música em específico foi tomando forma em meio às inúmeras declarações abomináveis e claras demonstrações de retrocesso ao longo da campanha e da consequente eleição deste que aí está. Além de também contemplar a polarização como uma estratégia de poderosos que se utilizam da flagrante vulnerabilidade das massas, principalmente em tempos de fake news e da banalização da informação”, afirma Lucas Bramont, guitarrista e autor da letra.

A visão da Plural é realista, não pessimista. Até porque, o conjunto — integrado ainda por Cássia Segal (voz, ex-Redoma) e Renato Siqueira (bateria, It’s All Red) — emana uma atmosfera leve, acolhedora. O peso fica para alguns momentos no instrumental. Na entrevista que segue, Cássia e Lucas falam sobre a trajetória da Plural, multiplicidade de pensamento, o novo trampo audiovisual e referências. Como a própria banda incita em suas redes: “Seja singular, pense Plural.”

Vivemos tempos em que parece haver o intuito de se padronizar comportamentos, de se aniquilar as individualidades para criar uma sociedade cada vez mais baseada num senso (nem tão) comum. Nesse sentido, um nome como Plural já seria uma afirmação política? Isso tem a ver com a alcunha da banda? Por favor, expliquem por que a escolha por um nome tão simples, mas tão cheio de significados, principalmente no contexto atual.
Cássia Segal — Plural é uma palavra ampla e de forma alguma queremos limitar a um cunho político. Tem a ver com liberdade, respeito e bem-estar. Ser o que se é e sentir-se bem com isso. A padronização dos comportamentos nada mais é do que a vontade de “pertencer” a algo, algum grupo ou algum lugar, e isso faz parte do ser humano. O que não dá é abrir mão de princípios ou ultrapassar os seus limites e/ou dos outros. Plural é o respeito às escolhas, individualidade e diversidade.

Quais as singularidades do som da Plural na opinião de vocês?
Cássia Segal — Somos apaixonados e nem um pouco preocupados em como vão nos descrever. As músicas são arranjadas e por vezes compostas em trio, então não há um produto final definido, para que se enquadre em um estilo musical, ele simplesmente acontece. Tem muita dinâmica, e não é polido para que soe perfeito. Nossa intenção é que soe real, de acordo com o que cada música pede.

Lucas Bramont — Há quase duas décadas, quando comecei a compor, eu escrevia sobre o que me gerava revolta e dor. Hoje eu continuo escrevendo sobre o que me gera revolta e dor com uma diferença crucial: a capacidade de transmutar o aversivo em algo que acolhe e abraça. A revolta que me dá vontade de explodir também pode me impulsionar em direção à reflexão, ao autoconhecimento e, talvez então, à mudança. Nossas músicas nada mais são do que convites a reflexões sobre o cotidiano, nos âmbitos individual e coletivo. Quem sabe um ponto de encontro para que outras pessoas possam se identificar e se aproximar. Por mais clichê que possa soar, podemos afirmar com bastante alegria que há muita verdade e entrega em cada acorde.

Os três integrantes têm trajetórias prévias no cenário independente. Como o trio se uniu sob o nome Plural? E como essas jornadas prévias se refletem agora (não apenas musicalmente, mas também no sentido da experiência)?
Cássia Segal — Eu e o Lucas já tínhamos uma admiração grande um pelo outro, como músicos. Tocávamos juntos em festivais há mais de 10 anos, e conhecemos a história um do outro. Sabemos que de todos com quem convivemos no meio musical por esses anos, somos as pessoas certas para este projeto. Eu e o Lucas voltamos a tocar juntos e o nome do Renato logo veio. Ele ter aceitado o convite foi muito positivo porque também tem referências diversas, além de muita atenção com a qualidade de tudo o que faz. Acredito que nós três juntos somamos muita criatividade, mas também temos os pés no chão que uma banda tem que ter.

Lucas Bramont — Eu e a Cássia éramos adolescentes quando nos juntamos para fazer música: eu tinha 14, e ela 15 anos. Então imaginem só! Poder reencontrá-la e retomar a música como nos velhos tempos, porém com maturidade e vivências, foi praticamente um sonho realizado. Saber que o Renato toparia abraçar a ideia tornou a experiência transcendental. Lembro-me de ter conhecido ele em 2008, num festival em que eu tocava com a Redoma e ele com a Wasabi. Fazemos um som que se assemelha a certas referências, mas, na prática, sinto que a Plural faz algo que nenhum de nós realizou antes. A química, a atmosfera, a harmonização das visões de mundo e da mensagem a ser passada, enfim, tudo contribuiu para que fortalecêssemos nosso vínculo, a nossa fome de música, o apetite pela Plural.

As letras são bem reflexivas e, ao mesmo tempo, têm certa mensagem positiva. É algo leve. Criar essa atmosfera mais amena é proposital?
Cássia Segal — A Plural nos permite falar sobre o que a gente quiser. Desde um posicionamento contrário a qualquer forma de discriminação ou injustiça, até ampliar o que é corriqueiro e belo. Tem a ver com nosso momento de vida. Os três são pessoas que têm muita bagagem na música e vários outros pontos de contato com arte. Além disso, conhecendo os trabalhos musicais anteriores de cada um, pode-se perceber um amadurecimento grande de ideias, gastando menos energia com problemas pequenos e tendo mais visão positiva sobre a vida. Isso, sem deixar de lado a inconformidade com o que fere os nossos princípios individuais e os princípios da Plural como grupo.

Como vocês trabalham a parte lírica? Parece sempre existir uma conexão emotiva nos temas. Por ex: “Maria” soa como uma celebração às mães; e “Nobre” é uma homenagem a um amigo que partiu. Existe essa preocupação de se trabalhar com sentimentos?
Cássia Segal — É uma característica dos compositores desde sempre trazer o amor (e não o amor romântico, é até curioso…) nos temas. Em algumas outras músicas há também pessoas como inspiração, mesmo que não de forma tão explicita como em “Nobre” e “Maria”. Tem frase de musica que surgiu pronta, de uma conversa, por exemplo. Afinal, escrevemos sobre o que enxergamos e sentimos porque nos faz bem, fica bonito e gera interação e identificação muito bacana com quem escuta o som.

Lucas Bramont — Sabe aquele conceito de comida que te transporta para algum ou momento da vida, geralmente a infância? O cheiro que te faz lembrar daquele lugar que tu nunca mais voltou ou daquela pessoa que tu nunca mais viu? Eu sou psicólogo e, por esse motivo, consigo analisar minha relação com a música com um olhar mais aguçado. A consequência disso é que descobri que a música desempenha um papel central na minha vida, mais por ser uma linguagem de total liberdade de expressão dos sentimentos do que por gostar de música ou amar o instrumento. A música é a ferramenta pela qual lidamos de maneira a transformar e ressignificar a dor, e de maneira a potencializar e multiplicar a felicidade. A música como uma parte das artes, e a arte como um todo, aceitam e permitem um ambiente de livre expressão. Isso por si só é terapêutico. Poder chegar até as pessoas e gerar identificação é a cereja do bolo. É uma experiência de construção que exige paciência, que pode cansar e esgotar, mas que é muito lindo de acompanhar e ver nascer. Não há como separar a emoção de palavras e melodias.

E sobre a letra específica de “Plural”, uma espécie de análise do momento em que estamos inseridos, como se desenvolveu?
Lucas Bramont — Comecei a escrever essa música em 2015. Complementando a questão anterior sobre as emoções: às vezes uma emoção não é facilmente compreendida e a consequência disso é que uma música, para tomar sua forma final, acompanha esse mesmo ritmo. Pode ficar pronta em 15 minutos e outra pode demorar três anos até florescer internamente para então ser traduzida de maneira mais assertiva por meio do processo criativo. Logo, essa música em específico foi tomando forma em meio às inúmeras declarações abomináveis e claras demonstrações de retrocesso ao longo da campanha e da consequente eleição deste que aí está. Além de também contemplar a polarização como uma estratégia de poderosos que se utilizam da flagrante vulnerabilidade das massas, principalmente em tempos de fake news e da banalização da informação. É correto afirmar que essa música nasceu em 2015 e ganhou sua forma atual entre 2018 e 2019, até porque a composição foi trazida à luz em forma acústica, sofrendo algumas alterações e contribuições importantes para a versão de estúdio.

O vídeo também é muito bacana, explorando a analogia de sermos peças manipuláveis em um tabuleiro. Como surgiu o conceito e como vocês o lapidaram para colocar a ideia em prática?
Lucas Bramont — O trecho da música que diz “e quem sou eu pra te mostrar que eles nos transformam em peças de um jogo entre rivais?” é o trecho que me fez visualizar mentalmente o tabuleiro no formato do Brasil, e as pessoas como peças de um jogo. Há também a sutil mensagem por meio das cores refletidas em nós enquanto tocamos. A cada ângulo diferente, há uma cor diferente, na intenção de ilustrar que temos representações diferentes dependendo do ângulo pelo qual conhecemos uma pessoa. Fiquei matutando essa ideia por uns dois anos, até que um dia compartilhei com meu compadre, tatuador e artesão Daniel Cruz, que na hora reagiu e disse “eu topo fazer esse tabuleiro”! Como esse era o item mais complexo para se ter acesso, a obra do acaso possibilitou que a ideia pudesse ser trazida à realidade. Sobre como apresentar as cenas e construir o clipe é algo sempre debatido e compartilhado com meu sócio Leandro Monks (num âmbito mais técnico e de fotografia), e também com a Cássia e com o Renato (pelo lado mais artístico e de conceito a ser transmitido).

A Plural faz uma releitura acústica bem bacana de “I Could Have Lied”, faixa talvez subestimada do clássico “Blood Sugar Sex Magic”, do Red Hot Chili Peppers. Por que um RHCP? E por que este som? Há uma identificação com o tema por alguma razão?
Lucas Bramont — Eu comecei a tocar guitarra depois de fritar o cérebro com o “Blood Sugar Sex Magik” (1991) e com o “Californication” (1999), e o John Frusciante é meu grande mentor. Lembro que eu gravei o show do RHCP no Rock in Rio de 2001 e muito toquei guitarra acompanhando essa gravação. Por algum motivo que ainda não sei explicar, essa melodia e esse riff me mobilizam e me tocam de uma maneira muito intensa. A atmosfera daquele show contribuiu muito para isso e, desde então, sempre tive um carinho grande e incondicional por essa que é a faixa seis do “Blood Sugar Sex Magik”. Para mim sempre habitou o imaginário, desde os tempos de Redoma, que uma versão com um dueto feminino/masculino poderia ser uma boa pedida pra agregar na intensidade emocional do som. Há inclusive uma história de que o Anthony Kiedis teria feito essa música para uma namorada que terminou a relação, e ela seria a Sinead O’Connor. De minha parte a identificação vem inicialmente pelo riff e pela melodia da música e, anos mais tarde, pela poesia.

Aliás, tenho impressão que há trechos de guitarras que remetem ao John Frusciante, do RHCP. Ele pode ser tido como uma referência?
Lucas Bramont — Definitiva e inevitavelmente. Isso fica evidente nas linhas deguitarra e nos backings de “Maria”.

Quais outras influências a Plural carrega? Musicais, claro, mas também de fora de música que acabam se refletindo de alguma forma no processo criativo?
Lucas Bramont — Ishhh… As influências musicais são tantas! Em sua grande maioria rock, mas também bebemos de outras fontes como a MPB e o reggae. Elementos que influenciam implicitamente: filmes e séries, pizza, café, Van Gogh, Dalí, chocolate, cores, texturas, a beleza ao redor, a estupidez ao redor, saúde mental, entre muitas outras coisas…

A banda tem elementos de estilos distintos, mas diria que se enquadra, essencialmente, na categoria rock. Como vocês percebem o cenário do gênero, seja local ou de forma mais ampla geograficamente, hoje em dia? Consideram que há diversidade?
Lucas Bramont — Essa é fácil e difícil de responder. Fácil porque sim, há uma infinidade de vertentes dentro do rock e, portanto, há diversidade e isso é um fato. E difícil porque, apesar de o rock ser um gênero indiscutivelmente importante, me parece que aqui no Brasil ele anda sem moral e explicitamente excluído. Parece-me que de uns tempos para cá ele foi sendo abafado, retirado de cena e sumiu para ficar restrito ao “te vira na internet!”. Algo como um vulcão enfraquecido, mas sempre na iminência de entrar em erupção novamente (só que não dá sinais concretos há um bom tempo).

A Plural tem três sons nas plataformas de áudio, mas bem mais vídeos (mesmo que para alguns sons repetidos) disponíveis. Esse cuidado com o audiovisual tem a ver com o trampo do Lucas na 18 Filmes, o que poderia até facilitar as produções?
Lucas Bramont — Definitivamente! É um facilitador extremo nesse quesito. A nossa produção audiovisual se deve quase que exclusivamente a esse detalhe. Não apenas por encurtar o caminho entre banda e produtora, mas também por eu carregar os papéis de guitarrista/ compositor/ roteirista/ editor/ diretor. Assim, acabo compreendendo/ traduzindo/ realizando as ideias de maneira mais efetiva e assertiva. Então, a facilidade não passa apenas por questões de equipamento e operação, mas também em relação à comunicação e organização do projeto a ser executado.

Vamos fazer uma brincadeira com os títulos de algumas faixas, não necessariamente envolvendo o contexto original das letras. Mas sim, pegando o nome e aplicando em alguma situação mais ampla. Tipo: O que proporciona ‘paz e harmonia’ para vocês?
Nossa independência. Também o luxo de se dar tempo para fazer música e o luxo de ter momentos de tranquilidade fazendo o que gostamos e estando com quem gostamos.

A ‘vida é curta’, então…
É preciso arriscar e não ter arrependimentos.

Ser Plural é?
Ser quem se é e valorizar a si mesmo, respeitando quem o outro é.

Quando ‘coisas tolas’ fazem bem e quando fazem mal?
Fazem mal quando se dá atenção e elas ganham força. A atenção funciona como lente de aumento. Nesse caso algo pequeno pode tornar-se maior do que realmente é. Essa música fala disso, para darmos menos força aquilo que não nos agrega e abraçar sem medo uma existência Plural e livre de fôrmas e fórmulas prontas.

– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.

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