Entrevista: Renato Thibes fala sobre o livro “31 Filmes”

entrevista por Leonardo Vinhas 

Os blogs já foram “o futuro”, e hoje, salvo raras exceções, ou são parte da memória afetiva dos antigos leitores, ou sobrevivem como alternativa textual para aqueles que acham que canal de Youtube ou IGTV entregam muito pouco. Nessa época, muita gente lia o Registro Dissonante, blog onde o publicitário paulista Renato Thibes escrevia sobre cinema, ativo entre 2002 e 2015.

O Registro Dissonante se desdobrou em outro blog, 31 Filmes, que ficou no ar de 2008 a 2018. Desse último vem o material do livro “31 Filmes”. Lançado com capricho editorial pela Gauche Books em 2019, a obra compila uma seleção de filmes que ajudaram Thibes a definir seu amor pelo cinema e sua própria persona.

Numa era em que umbiguismo passa disfarçado de crítica cultural, Thibes consegue entregar um belo livro ao assumir tanto o seu lado “crítico de cinema frustrado” como a contemplação do próprio umbigo. O livro fala, sim, de seu universo pessoal, de moleque interiorano que tinha nas idas à videolocadora o ponto alto da semana. Fala de amores e frustrações sublinhados por filmes e trilhas sonoras, e de viagens organizadas a partir do que assistiu na tela.

Porém, “31 Filmes” tem muita informação sobre os filmes em si e sobre o contexto em que eles foram lançados. Não importa se você nunca assistiu – ou sequer ouviu falar de – filmes como “Um Corpo que Cai” (Alfred Hitchcok, 1958) ou “Conta Comigo” (Rob Reiner, 1986): o autor traz tudo que você precisa saber sobre esses filmes sem apelar ao didatismo ou subestimar o leitor. E consegue amarrá-los com sua história pessoal de um modo muito natural, em uma leitura fluida na qual o cinema, e não o autor, é sempre o protagonista.

“31 Filmes” é um livro raro, por conseguir trazer esse aspecto pessoal e simultaneamente entregar ao leitor uma razão real para se dedicar à obra. Porque “31 Filmes” é um livro muito bem escrito sobre como o cinema nos molda, como seu impacto vai além de “likes”, e pode tanto nos aproximar de outras pessoas como nos confortar em momentos de solidão.

Depois de uma malfadada entrevista presencial antes da pandemia, o Scream & Yell voltou à carga um ano depois, dessa vez por e-mail. E o resultado é tão envolvente quanto o livro em questão. Com a palavra, Renato Thibes.

“31 Filmes” diz respeito a uma era onde as opções do cinéfilo eram o cinema e, principalmente, as videolocadoras (e só mais tarde o DVD, mas a maior parte dos selecionados ainda pertence à era do VHS). Você acha que esse contexto traz alguma particularidade no modo de se relacionar com os filmes que não é possível nessa era de streaming?
O cinema e as locadoras me pegaram na minha faixa de idade mais impressionável, onde tudo era novidade pra mim, então é muito fácil cair na armadilha da nostalgia, de que na minha época era muito melhor, mas não era. Eu acredito sim que naquela época havia um compromisso maior do espectador com o filme, uma dedicação que não existe no streaming. É aquilo que o Scorsese disse sobre o problema do filme virar conteúdo. Ir ao cinema é, ou pelo menos era antes da pandemia, um evento, um programa. A locadora tinha aquele apelo do contato físico com a caixa do filme, como a capa de um LP pra quem coleciona discos. E também o apelo do garimpo, porque procurar um filme era como procurar um livro numa livraria. O streaming é mais um conteúdo disponível na internet, organizado por um algoritmo e com um sistema de busca. Você paga pelo pacote e pela comodidade, não pelo filme específico, e muitas vezes esse próprio conteúdo é tratado com descaso. Você tem ali um banner ou uma foto e uma sinopse mal escrita. No Prime Video eu sempre encontro filme interessante sem legenda, parece que largaram ele ali pra fazer volume, nunca imaginando que alguém realmente ia querer ver. Mesmo assim, as vantagens são óbvias, é tudo muito fácil, prático e em HD. Tenho certeza de que as pessoas vão continuar se envolvendo com seus filmes favoritos e vão encontrar alguma magia nisso, e daqui a alguns anos vai ter alguém dizendo que “bom mesmo era a Netflix de antigamente”. No final das contas, o que importa é ver filme. Cada serviço de streaming é uma espécie de Tinder, a relação é diferente, mas dá pra encontrar o amor da sua vida lá também.

O livro tem uma seleção assumidamente pessoal, mas você tenta, em cada crônica, trazer bastante informação sobre a época em que o filme foi feito, e até alguns aspectos técnicos. O quanto essa informação “jornalística” é importante para você na hora de organizar seus textos?
Eu vejo isso como cacoete de quem já tentou ser crítico de cinema na vida e desistiu no meio do caminho, essa necessidade de contextualizar a obra e trazer curiosidades sobre ela, além da visão pessoal. Nos primeiros textos que escrevi para a versão blog do “31 Filmes” isso era mais evidente ainda, com o tempo fui me policiando para deixar as impressões pessoais tomarem conta. Fiz um curso de crítica com o Inácio Araújo uns anos atrás e tomei coragem de mostrar pra ele o primeiro rascunho do texto sobre “RoboCop”. A reação dele foi ótima, me deu uma bronca: “quem é que quer saber disso tudo?”. Nas revisões do “31 Filmes” eu sempre tive isso em mente. Bronca do Inácio a gente tem que levar a sério.

Lendo o livro na sequência, é possível ver ali uma história sua, também. Uma espécie de “processo de maturação acompanhado pelo cinema”. O Marcelo Rubens Paiva já disse que, não fosse Hollywood, teríamos que inventar modelos de comportamento nos relacionamentos, de tanto que o cinema nos impacta. Você diria que sua vida foi, em maior parte, moldada pelo cinema?
Sem dúvida. Eu me lembro de querer ser arqueólogo, quando criança, por causa do Indiana Jones. Depois percebi que eu gostava era dos filmes, não da arqueologia. Acabei me tornando publicitário porque era uma forma de estar próximo desse meio, tentei trabalhar com produção, percebi que não tinha paciência, mas ainda me sinto próximo do cinema quando escrevo um roteiro, por mais banal que seja. Minha carreira profissional e até as viagens que fiz na vida foram direcionadas pelo cinema. Além, é claro, dos inúmeros aprendizados que qualquer história ensina. No capítulo sobre “Os Intocáveis” eu falo um pouco sobre a necessidade nesses modelos de caráter na vida, de saber diferenciar o certo do errado. Parece bobo, mas não deve ser coincidência que nos últimos anos, depois que os anti-heróis começaram a dominar os filmes e as séries, as pessoas perderam um pouco a referência e não conseguem mais identificar um vilão na vida real. Você sabe, as pessoas realmente se identificaram com o Coringa.

Os textos do livro já existiam online, mas ganharam essa edição impressa caprichada. Qual era o público que vocês miravam com a edição impressa? E como a divulgação do livro foi impactada pela pandemia?
O blog sempre proporcionou um retorno legal de pessoas apaixonadas por aqueles filmes ou que se identificavam com aqueles sentimentos, mesmo que atrelados a outros filmes. Minha maior alegria era um total desconhecido vir me contar espontaneamente qual o primeiro filme que ele viu no cinema ou o impacto que “Ruas de Fogo” teve sobre ele quando passou na Tela Quente. Achamos que esse perfil de cinéfilo nostálgico que tem saudade das locadoras ainda teria interesse em uma versão impressa, incrementada pelas artes lindas que o Marcelo Magalhães fez pra cada filme. A princípio, o público era esse. A pandemia colocou nossos planos em modo de espera. A Gauche Books é uma editora independente que valoriza a arte e a parte gráfica e por isso trata cada exemplar com um cuidado muito grande, fazendo contato pessoal com pequenas livrarias e expondo os trabalhos nas feiras de livros. Também tínhamos planos de realizar novos eventos e tardes de autógrafos pra reunir os amigos, tomar cerveja e falar de filmes, mas infelizmente tudo foi interrompido.

“Livros-lista” se tornaram uma constante no mercado editorial. Para não falar de listas em páginas web, sempre campeãs de clique. Além da curadoria em si, qual o apelo que você vê em listas – e o que faz dela um objeto realmente valioso para o leitor?
Quando eu era moleque, comprava aqueles Guias de Vídeo da Nova Cultural. Era um apanhado de filmes com sinopse, cotação, duração e um breve comentário do Rubens Ewald Filho, com seções divididas por gênero. Na capa de cada gênero tinha lá duas listas de filmes imperdíveis, um top 10 do Rubens e um top 10 dos maiores sucessos daquele gênero. Aquilo serviu como base pra mim, ver aqueles filmes era uma obrigação. Acho que as listas têm essa função, servem como guia. Todo mundo precisa de orientação e todo mundo tá cada vez mais perdido. Eu vejo pessoas pedindo dicas de filmes no Twitter aleatoriamente para desconhecidos e eu fico com pena. Não é assim que funciona. Listas de melhores filmes da década são importantes. Listas de críticos são importantes. Listas de filmes preferidos de cineastas relevantes são importantes. Esses livros do tipo “filmes para ver antes de morrer” têm um conteúdo bem interessante e poderiam desempenhar esse papel, mas desconfio que ninguém leia, me parece livro pra decorar estante. Na internet, a grande maioria das listas só serve pra gerar engajamento em canais de cultura pop que eu estou velho demais pra acompanhar. Torço pra que o letterboxd se popularize cada vez mais a ponto de formar influencers e de suas listas se tornarem relevantes, mas talvez eu esteja sonhando demais.

Alguns dos filmes listados foram feitos algumas décadas atrás. Há algum que você acredita que tenha envelhecido mal e que só permaneceu na tua seleção pela questão afetiva?
Tem alguns casos específicos. “O Feitiço de Áquila” tem uma trilha sonora horrível de rock progressivo na primeira metade, mas no geral seu conceito é tão poderoso que ainda vale a pena. “O Retorno de Jedi” nunca foi considerado grande coisa e ganhou a vaga pela questão afetiva, mas hoje eu trocaria por “Os Últimos Jedi”, que além de ser um filme muito melhor ainda levantou questões mais relevantes pro atual momento histórico, revelando o lado sombrio dos fãs. E por fim, devo confessar que revi “Alta Fidelidade” há pouco tempo e achei o protagonista, com quem me identifiquei durante muitas fases da vida, um grande babaca. Talvez a maturidade enfim tenha chegado.

Sei que a perspectiva do tempo é determinante para fazer esse tipo de avaliação, mas vamos lá: da década de 2010, quais filmes que você acha que caberiam no livro, pensando assim de bate-pronto?
Consigo pensar em três exemplos sobre o mesmo tema: “Mad Max – Estrada da Fúria”, “007 – Operação Skyfall” e o próprio “Os Últimos Jedi”. São três grandes filmes que conseguem dar uma boa renovada em assuntos velhos brincando, subvertendo e ao mesmo tempo homenageando ícones da minha infância. A indústria na última década não foi muito criativa com aquele monte de revival, remake e adaptação de quadrinho, então quando alguém consegue ser ousado em uma franquia estabelecida, com toda a pressão do blockbuster, a gente tem que aplaudir. Esses filmes falam sobre idade e obsolescência, sobre deixar o passado pra trás e destruir monstros sagrados. James Bond e Luke Skywalker, cada um a seu modo, tacam fogo no próprio passado. E o George Miller fez o maior filme de ação da história aos 70 anos jogando seu protagonista pra escanteio. Gênio demais. Seria como se cada um desses ícones da minha infância dissesse: “ok, já deu, hora de encerrar esse livro”.

Você pretende retomar a divulgação do livro?
Sim, assim que a vacina permitir!

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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