Cinema: “PJ Harvey – Um Cão Chamado Dinheiro”, de Seamus Murphy

por Marcelo Costa

A história toda você já deve conhecer, mas a gente resume / relembra rapidamente: entre 2011 e 2014, PJ Harvey acompanhou o cinegrafista, fotógrafo de guerra e parceiro de projeto Seamus Murphy em viagens por diversos lugares decadentes do mundo numa tour melancólica que resultou em um livro de poesias, “The Hollow of the Hand” (2015), e em um disco, “The Hope Six Demolition Project” (2016), cujo processo de gravação foi transformado em instalação artística.

Entre 16 de janeiro e 14 de fevereiro de 2015, “The Hope Six Demolition Project” foi composto e gravado em sessões abertas ao público no Somerset House, um palácio no centro de Londres transformado em espaço de artes. Durante 45 minutos por dia, o público acompanhava a gravação através de um vidro unilateral (em que a banda não via o que acontecia fora do “estúdio”) observando PJ, Flood e John Parish, além dos músicos convidados, trabalharem no que viria a ser o nono álbum da artista.

Encerrando o ciclo, Seamus Murphy lançou em 2019 “PJ Harvey – Um Cão Chamado Dinheiro” (“PJ Harvey – A Dog Called Money”), uma espécie de documentário poético que está em cartaz no Circuito Itaú Cinemas (Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo – confira horários) trazendo imagens das viagens que o cineasta fez com PJ intercalando com diversas cenas das gravações do álbum no Somerset House, com um número considerável de canções que acabou ficando de fora do disco.

Quem teve a oportunidade de assistir em 2017 a um dos shows que PJ fez em São Paulo, cortesia Popload Festival, pode perceber o tom lúgubre de velório do mundo que ressoava no ambiente. Vinda de outro álbum tenso, “Let England Shake” (2011), que debatia as investidas da Inglaterra em conflitos armados desde a Primeira Guerra Mundial (e todos os traumas resultantes ), PJ Harvey mergulhou ainda mais fundo nos dramas do mundo com “The Hope Six Demolition Project”, disco e show.

“No modelo fanfarra fúnebre, os 10 integrantes da banda adentram o palco marchando em fila indiana sobre escombros do mundo, todos de luto, todos sérios. Neste teatro trágico, Polly Jean interpreta a repórter que viajou para Kosovo, Afeganistão e Washington DC, e volta para nos contar o que viu”, contava a resenha neste site. “Ela surge como uma simples integrante de uma banda que pelos próximos 90 minutos irá entreter a audiência enquanto o navio afunda no meio do oceano”.

Dito tudo isso, a expectativa por “PJ Harvey – Um Cão Chamado Dinheiro” imaginava um objeto de arte ainda mais denso que disco, instalação artística e livro de poesia, pois agora o público poderia ver com seus próprios olhos as imagens daquilo que PJ relatava nas canções, mas Seamus Murphy parece ter optado por suavizar a narrativa, entregando um documentário mais humano, ainda que os flagrantes de desumanidade estejam soltos aqui e ali e acolá durante os 92 minutos de projeção.

A montagem segue um padrão bastante simples: trechos de viagem, cenas locais e, depois, o que aquela pesquisa irá resultar no estúdio, com os músicos experimentando arranjos e PJ comandando o ambiente com extrema leveza. Ela narra vários trechos em off, e aparece sorrindo em diversas passagens, como quando visita uma loja de instrumentos musicais no andar superior de uma casa no Afeganistão, ou assiste a um jovem negro rimar poesia das ruas no lado abandonado de Washington DC.

As cenas gravadas em estúdio acrescentam ainda mais leveza ao documentário, pelo clima harmônico que paira no ambiente. Logo no começo, com o “espaço de exposição” ainda sendo montado, Polly organiza “a casa” comentando com os músicos: “Quero deixar tudo limpo, ok. Nada de garrafas de água, nada de xicaras de café por ai. Fica um pouco desleixado, e quero tudo muito limpo”. Afinal, ela não vê e nem ouve o público, mas sabe que o público está lá.

A rigor, o filme amplia delicadamente o universo do disco, com diversas passagens que parecem não ter relação com o produto final “álbum”, mostrando que aquele mundo resumido por PJ em “The Hope Six Demolition Project” é muito maior do que os 41 minutos do álbum podem supor, e que, apesar de todos os pesares e dificuldades, também há alegria e esperança, o que talvez soe como uma defesa contra as criticas que diziam que o projeto estava mercantilizando a pobreza.

Em certo momento, Polly Jean está dentro de uma casa que foi bombardeada, abandonada e saqueada. Ela começa a falar sobre as coisas que vê no ambiente, pega um pedaço de porcelana e conta que sua avó também tinha uma peça daquela, e enquanto caminha sobre restos de roupas, revistas, fotos e memórias comenta: “Eram camponeses… e estou aqui pisando nas coisas deles com as minhas sandálias caras de couro”.

Alguns flashbacks do disco são inevitáveis, como quando a câmera foca um prédio totalmente bombardeado e o riff pesado de “The Ministry of Defence” se junta a imagem. De repente, com a câmera distante fixa na construção, um garotinho sai correndo dos escombros, e a cena toda ganha vida, algo ausente da canção mais barra pesada do disco, cuja letra enumera tudo que PJ vê no prédio abandonado: “grafites em árabe, merda humana, seringas, laminas de barbear, uma mandíbula, um fantasma de uma menina que corre e se esconde: É assim que o mundo vai acabar”.

Ou então quando dois garotinhos colam no vidro do carro pedindo dinheiro. O espectador não os ouve, mas entende rapidamente uma cena tristemente comum no Brasil, e PJ conta / canta: “Ele está dizendo ‘dólar, dólar’”. Ela até pensa em ajudar os garotos, mas o carro avança rápido, os meninos somem no retrovisor e ela fica perdida para, enfim, dizer: “Todas as minhas palavras foram engolidas”. Do mesmo jeito que termina o disco, com o clima desolador da canção “Dollar, Dollar”, Polly sai de cena num filme simples e delicado que não aprofunda sua persona artística, mas encerra de maneira poética um projeto que tomou 8 anos de sua vida.

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell desde 2000 e assina a Calmantes com Champagne

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