Entrevista: Cineasta Bernard Attal fala sobre o documentário “Sem Descanso”

entrevista por João Paulo Barreto

Em 02 de agosto de 2014, Geovane Mascarenhas de Santana, de 22 anos, foi abordado por uma viatura policial enquanto pilotava sua moto no bairro da Calçada, em Salvador. Rendido, mão na cabeça, de costas para um deles, já foi covardemente agredido fisicamente pelo primeiro policial que se aproximou. Colocado em seguida de joelhos, foi revistado e teve seus documentos verificados. Após longos minutos, foi colocado na viatura, enquanto um dos oficiais pilotava sua moto. Toda a ação à luz do dia, em um dos locais de maior movimento da capital baiana, passou como rotineira pelos transeuntes e motoristas. A certeza da impunidade diante de mais um ato de truculência e abuso de poder era certa para aqueles homens fardados diante de mais um jovem negro. Porém, uma câmera estava lá para registrar a última vez que Geovane foi visto com vida.

22 dias depois, o corpo do jovem seria sepultado na cidade de Serra Preta, interior do estado. O intervalo de tempo entre a gravação daquele vídeo no qual Geovane encontrara seus juízes e carrascos, junto a uma reflexão urgente e um anseio de mudança quanto a barbárie da violência policial, é o que propõe apresentar “Sem Descanso” (2020), documentário do cineasta Bernard Attal, que narra a busca angustiante de Jurandy, pai de Geovane, pelo seu filho durante as duas semanas que se seguiram à abordagem no bairro da Calçada. Jurandy passou por delegacias, batalhões, hospitais, instituto médico legal, e, como o próprio nome do filme diz, não descansou até ter notícias de seu filho. A confirmação do assassinato surgiu após partes do corpo decapitado de Geovane terem sido encontradas em dois pontos distintos do subúrbio de Salvador, em uma tentativa covarde e monstruosa de acobertar as atrocidades cometidas dentro do batalhão da polícia, um órgão do Estado que deveria proteger sua população, mas a assassina abusando do poder que esse mesmo omisso Estado lhe concede.

“Várias vezes tentamos conversar com o governo, com os órgãos públicos e com a corregedoria da polícia. Chegamos até a marcar encontros, mas eles desistiam de última hora ou negavam esse encontro. Realmente, é uma pena porque eu não queria fazer um filme contra a polícia”, explica Bernard Attal acerca das motivações de investigar para o documentário o caso Geovane. Porém, o cineasta deixa claro que a busca pelo diálogo foi primordial na construção de seu filme. É o diálogo que impede a barbárie. É o diálogo que fortalece democracias e impede a ascensão de uma violência fascista oriunda daqueles que deveriam proteger, mas ameaçam a sociedade. “A violência policial é uma tragédia da sociedade toda. A sociedade toda é responsável. Tanto a Polícia, quanto o Estado, quanto a Justiça, quanto nós, como cidadãos, somos responsáveis. Eu não queria apontar especialmente a polícia nesse caso. Eu queria conversar com as autoridades públicas para entender se eles iam tomar providências para reduzir esses casos. E eles se negaram completamente ao diálogo. Isso foi realmente uma pena porque achei que seria uma dimensão do filme que eu teria gostado de ter, mas, no final, não temos. A postura desse governo é de simplesmente não tratar o problema da violência policial”, afirma Bernard.

Com seu assassinato, Geovane deixou para trás mulher e filha, pessoas que foram privadas do convívio com ele. Deixou para trás avós e amigos. Deixou para trás seu pai, Jurandy, que não descansou até o momento em que pôde perceber, vendo o caixão do seu filho, a dimensão da tragédia que sua vida teve. Esse descanso, aliás, nunca virá. Como “Antígona” (442 a.C), da obra de Sófocles, Jurandy exigiu o direito de enterrar seus mortos. “É um tema muito grave quando se trata da violência policial. A polícia faz de tudo para que não sejam descobertos os corpos. Porque, se o corpo não for descoberto, não tem caso na Justiça. E isso vem já da ditadura militar e de antes. É por isso que se pode negar crimes políticos e crimes não políticos. Sem corpo, não há caso”, pontua Bernard, e salienta a referência que seu filme faz a Antígona e ao risco sofrido por Jurandy. “Esse é o nível de barbaridade. Não se sabe em que circunstâncias essas pessoas foram levadas. Isso é totalmente coerente com a história de Antígona. Mas Antígona tem uma outra dimensão, também, pois ela desafia as autoridades. Ela aceita o risco pelo direito de enterrar seu irmão. No caso de Jurandy, foi exatamente isso. Ele sabia que estava correndo um risco grande na busca do corpo do filho”, compara Bernard.

Iniciada a produção em 2015 e lançado em festivais em 2018, o filme estreia comercialmente em um 2020 marcado por mais exemplos de violência policial. E a indignação só aumenta. “A dimensão de indignação não foi diminuindo ao longo do tempo. Eu não costumo assistir aos meus filmes depois. Eu tento me distanciar do filme, mas, cada vez que eu escuto mais uma história de uma pessoa agredida pela polícia, minha indignação só faz aumentar. Realmente, esse filme nasceu dessa indignação”, finaliza o cineasta. Nessa entrevista ao Scream & Yell, Bernard aborda a construção do seu filme, o contato com Jurandy e sua família, bem como embasa a discussão da necessidade urgente de se desvincular a competência de uma força policial ao seu alto nível de violência. Confira!

O Caso Geovane aconteceu em 2014 e chocou a população baiana (ao menos, as pessoas conscientes do genocídio da população negra). Seis anos depois, vemos esse mesmo caos se ampliar, com o assassinato das crianças Agatha e João Pedro no sudeste; com o assassinato de Michael Brown, de Breonna Taylor e de George Floyd nos Estados Unidos. No seu acompanhar da família de Geovane durante os últimos anos, como você observou a ampliação deste problema gravíssimo que é a violência policial?
Acho que a dimensão do tempo sempre será importante no filme. Desde o que aconteceu em 2014, eu queria realmente acompanhar a jornada da família de Geovane ao longo dos anos. Muitas vezes, nesses casos, se fala do que aconteceu na hora, mas depois todo mundo esquece. Não continuam a acompanhar o que aconteceu com os familiares que buscaram na Justiça uma forma de reparação. A dimensão temporal sempre foi muito importante na construção da narrativa. Além disso, acontece que a problemática da violência policial foi piorando ao longo dos anos. Tem um mapa no filme que mostra que, na época, era 4 mil o número de mortes decorrentes de intervenção policial. Hoje em dia, estamos chegando perto de 7 mil. Estamos diante de uma tragédia que vai piorando, porque não se dá atenção para esse problema, para essa tragédia. E a sociedade parece estar se afastando cada vez mais. Tem uma conscientização ocasional quando acontece, por exemplo, uma tragédia como a morte da menina Agatha ou, recentemente, nos Estados Unidos, o caso do George Floyd. Mas o problema não sendo resolvido. Não estão tratando por onde. Nos Estados Unidos, estão agora falando um pouco porque pensam em reduzir o orçamento dos departamentos de polícia. Fala-se de alterar as modalidades de gestão dos departamentos de polícia. Mas, no Brasil, absolutamente nada. O que está acontecendo aqui é o contrário. Dar mais poder, mais impunidade aos policiais. Apesar do fato de que o Brasil foi condenado pelos excessos da polícia. Mas apesar dessa condenação, o assunto fica cada vez mais grave. Então, realmente, parece que estamos correndo atrás dessa problemática. Há esses casos que são conhecidos, mas não parece ter nenhuma vontade política, vontade da sociedade de acatar essas soluções. No caso de Michael Brown, o pai dele recebeu uma indenização menos de um ano depois da morte do filho. No caso de Geovane, da indenização nem se fala mais. O caso nem entrou na Justiça ainda. São vários recursos que foram solicitados pelos policiais e, até hoje, (a possibilidade de indenização) não está na Justiça. Então, você vê que a dimensão do tempo é completamente diferente e faz muito parte desse drama no caso de Jurandy, pai de Geovane. É um componente social da dor da família e do drama desse pai.

Após todo esse período acompanhando tanto o desenrolar na Justiça do Caso Geovane, quanto um considerável aumento da violência policial no Brasil e no mundo, bem como a ascensão do ódio e da intolerância ao presidência do Brasil, você se demonstra pessimista em relação ao que o futuro nos reserva?
Acho que não dá para parecer nem otimista e nem pessimista. Tem uma evolução negativa que claramente está na postura do (atual) presidente. Sua postura consiste em dar cada vez mais carta branca aos policiais e proteger a impunidade deles. Isso é uma postura clara. Até o ponto em que o objetivo seja alcançado e que eles não sejam julgados pela justiça civil, mas pela justiça militar, o que, de fato, vai aumentar a impunidade deles. Mas do outro lado, tem organizações no terreno que estão se formando para lutar contra a violência do Estado. Especialmente no Rio, onde se conseguiu várias coisas. Tem o movimento das mães que conseguiu do governo federal a suspensão da intervenção da polícia. Isso foi suspenso, mesmo. Tem, também, o movimento das mães de São Paulo, que realizaram uma conscientização para as vitimas do Estado que ocorreram em maio de 2006 (Mães de Maio). Então, tem uma mobilização das vitimas que está acontecendo e que é realmente uma forma nova de lutar contra o problema da violência policial. Acho que de um lado tem razões de ser pessimista por conta do Poder Executivo, mas do outro lado, tem uma conscientização que eu não diria da sociedade de uma forma geral, mas uma organização do campo, mesmo. Pessoas que estão usando os exemplos do que está acontecendo, por exemplo, nos Estados Unidos, para propor medidas para se organizar, para se coordenar e achar maneiras de reduzir a violência policial. Chegamos a um nível intolerável. Tem estados onde 30% dos homicídios totais vêm de ações da polícia. Então, eu acho que nesse ponto de vista da conscientização da população, da para ser otimista. Tem uma coisa que eu sempre lembro. Nós fomos gravar nos Estados Unidos, em 2017, três anos depois do assassinato do Michael Brown. Quando chegamos lá, foi bem difícil entrevistar as pessoas. Elas estavam muito desanimadas. Trump tinha chegado ao poder. O movimento Black Lives Matter enfrentou vários problemas. Vários deles acabaram perdendo os seus empregos. Acho que dois ativistas se suicidaram. Então, a gente tinha bastante dificuldade em entrevistar pessoas que não queriam mais falar do assunto. Achavam que não tinha mais motivo de ser otimista na luta. E veja o que está acontecendo três anos depois. O Black Lives Matter agora é uma força política, mesmo. Eles estão conseguindo reformar a política em vários estados. Às vezes, quando você tem um (poder) executivo polarizado demais, você consegue juntar as pessoas e avançar a sua causa. Espero que, nesse caso, estejamos nesse contexto. Que os excessos do governo federal vão fazer as pessoas se darem conta de que não dá para ficar desse jeito. Que temos que reformar o funcionamento da polícia e do Estado de uma forma geral.

É perceptível, de fato, um aumento no número de mortos por ações policiais nos últimos anos. Basta pesquisar os dados disponibilizados publicamente.
Sim. Se você tem 100 homicídios no local, se considerar 10 homicídios por intervenção policial, isso é considerado uma taxa razoável. É meio absurdo, mas é assim. Somente quando você passa de 10%, é que se entra em uma situação de violência policial preocupante. Em 10 estados, incluindo SP, o número de mortos que vem de intervenção policial chega a 25%.  E tem outros estados, como o Ceará, por exemplo, que não passa de 5%. Então, você vê que a situação é muito diferente em função do estado e em função da política de segurança pública. Mas cada vez que passa de 10%, você já sabe que está em uma situação extremamente preocupante. Há países que não tem uma morte sequer por violência policial. Os Estados Unidos tem muitas mortes, sabemos que é uma questão lá, mas não passa de 1500 mortes anuais. No Brasil, todos os anos com os números crescendo, vamos chegar em 2020 passando de 7000 mortos. A gente achava que a pandemia ia reduzir essa taxa, porque teriam menos pessoas na rua, mas, não. Fica aumentando sempre. Há 10 anos, o número não passava de dois mil. Então, você vê o crescimento do problema. Passamos de 2 mil para 7 mil em 10 anos.

Como se deu sua aproximação da família de Geovane?
Eu e minha esposa (Gel Santana), que é produtora do filme, fomos no enterro de Geovane. O enterro aconteceu no interior da Bahia, na cidade de Serra Preta, que é também a terra da família da minha esposa. Lá, nós ficamos muito chocados pelo fato de que não tinha nenhum representante do Estado presente. Só estavam presentes amigos, parentes e dois ou três jornalistas. Não tinha nenhum artista ou formador de opinião. E isso apesar do fato do caso ter conseguido muita notoriedade. Era um fato muito público. Isso foi completamente em contraste ao que aconteceu nos Estados Unidos no enterro de Michael Brown, na semana anterior. Lá tinham centenas de pessoas. Houve manifestações. Spike Lee compareceu, outros artistas negros foram também. E não só artistas negros. O Obama fez um discurso em Washington. O Estado do Missouri apresentou suas desculpas aos familiares. Eu vi essa posição e falei: “temos que continuar a falar desse caso, porque, senão, amanhã ninguém mais vai lembrar.” Então, me aproximei do Jurandy (N.E. Pai de Giovani) logo depois do enterro, e perguntei se ele topava conversar. Nessa época, nós não falávamos do filme. Só queria conversar com ele para entender melhor a sua jornada. Ele se mostrou imediatamente muito aberto. Mas eu sempre tive essa preocupação de não banalizar a dor de pessoas que passam por uma tragédia tão profunda. É muito fácil se aproveitar dessa dor. Tem um roteirista francês que fala uma coisa muito bonita. Ele fala que não basta retratar a dor dos outros, tem que também entregar a sua própria dor para conseguir realmente uma conexão com as pessoas que passam por isso. Então, a gente sempre ficou com essa preocupação de, como eu falei, acompanhá-los. De fazê-los perceber que não íamos apenas fazer o filme e depois largá-los lá depois. Nós os acompanhamos durante três a quatro anos. Eles moram perto daqui. Nós nos se vemos de uma forma regular. O Jurandy sempre ia participar dos debates que tínhamos nos festivais. Ele me acompanhou em vários festivais. Depois do lançamento comercial (N.E. O filme estreou no dia 05/11/2020), nós vamos fazer o que se chama de lançamento de impacto. Levar o filme para as comunidades, para as escolas, para as ONGs. E eu convidei o Jurandy para participar desse lançamento, para dividir, compartilhar com as pessoas, a sua vida e a sua experiência. Compartilhar o fracasso dele, também, porque ele aprendeu muitas coisas pelo fato de ter ficado duas semanas procurando o filho e não ter encontrado. Agora, ele sabe onde ir, mas, naquela época, não sabia. Ficamos muito próximos. Tanto do Jurandy quanto da família dele. Para nós, era muito importante ficar ao lado deles, porque, senão, era como se aproveitar da dor de um pai. No caso da perda de um filho, é uma dor extremamente profunda. Uma dor que nunca se resolve. Então, não dá para chegar lá, filmar, e ir embora.

Existe em “Sem Descanso” uma imprescindível denúncia contra a ação da polícia em algo que, no Brasil e na América Latina, reverbera por todo o século XX e esse começo do XXI que é a questão da sombra das ditaduras. Da busca de pessoas pelo direito de enterrar seus mortos (algo que o filme salienta ao citar Sófocles e sua tragédia “Antígona”. E isso é algo que angustia ainda mais, pois vemos os anos passarem e poucos horizontes positivos surgem.
É um tema muito grave quando se trata da violência policial. A polícia faz de tudo para que não sejam descobertos os corpos. Porque, se o corpo não for descoberto, não tem caso na Justiça. Tem um fator jurídico que a polícia está muito ciente. E isso, como você falou, vem já da ditadura militar e de antes. É por isso que se pode negar crimes políticos e crimes não políticos. Sem corpo, não há caso. É isso que está acontecendo muito com as mães que aparecem no final do filme. Várias delas fazem parte do movimento Mães de Maio. Estamos falando de um caso que tem quase 15 anos e, até hoje, não descobriram o corpo do filho de uma delas. Hoje, tem esse conceito que chama dos “Desaparecidos Forçados”, que são, geralmente, meninos, às vezes meninas, que a polícia levou e não se sabe o que aconteceu. Não se sabe. Esse é o nível de barbaridade. Não se sabe em que circunstâncias essas pessoas foram levadas. Isso é totalmente coerente com a história de Antígona. Mas Antígona tem outra dimensão, também, pois ela desafia as autoridades. Ela aceita a pena de morte pelo direito de enterrar seu irmão. No caso de Jurandy, foi exatamente isso. Ele sabia que estava correndo um risco grande na busca do corpo do filho. Até os jornais contaram essa história. Ele ficou sozinho por duas semanas buscando o corpo do filho. E durante todo esse período, ele sabia que as circunstâncias dele de descobrir poderia resultar na sua morte. Porque todas as provas, na verdade, estavam na existência do corpo do filho. E finalmente, claro, tem essa terceira dimensão que é o fato de que sua dor não vai cessar até você descobrir o corpo do seu parente. Essas mães que mencionei, muitas delas têm problemas psicológicos por conta disso, dificuldades para dormir há 15 anos, porque não sabem o que aconteceu com seus filhos. Ainda possuem, às vezes, essa esperança irracional de que, talvez, vai aparecer o filho. Aparecer o corpo e que elas vão descobrir coisas horrorosas. Então, essas três dimensões de Antígona estão completamente orgânicas com a história de Jurandy. Ele mesmo não se deu conta de que estava seguindo essa jornada. Mas é uma coisa absolutamente crucial, ainda mais em relação ao que você falou, ainda mais pertinente quando se fala da América Latina, porque tem uma história extremamente contundente com esse ponto de vista.

Em algum momento durante a construção do filme, na apuração, na busca por informações em órgãos públicos, você se sentiu inseguro ou temeroso por conta de qualquer ameaça?
Não. Só teve um ou dois acontecimentos durante as gravações de pessoas que ficaram nos provocando, mas eram casos isolados. Mas o que aconteceu é que fiquei lá montando o filme e, durante esse período, várias vezes tentamos conversar com o governo e com os órgãos públicos, com a corregedoria da polícia. Chegamos até a marcar encontros. E a cada vez, eles desistiam de última hora ou negavam esse encontro. Realmente, é uma pena porque, primeiro, eu não queria fazer um filme contra a polícia. A violência policial é uma tragédia da sociedade toda. A sociedade toda é responsável. Tanto a Polícia, quanto o Estado, quando a Justiça, quanto nós, como cidadãos, somos responsáveis. Então, eu não queria apontar especialmente a polícia nesse caso. Eu queria conversar com as autoridades públicas para entender se eles iam tomar providências para reduzir esses casos. E eles se negaram completamente ao diálogo. Isso foi realmente uma pena porque achei que seria uma dimensão do filme que eu teria gostado de ter, mas, no final, não temos. Mas não fomos ameaçados. A postura desse governo é de simplesmente não tratar o problema da violência policial. E isso se vê na fala do governador. O que eu entendo é que o governo anterior, o do Jacques Wagner, foi bastante traumatizado pelas greves da polícia. Houve duas greves da polícia e eles não querem que aconteça de novo. Então, eles fazem de tudo para não irritar a polícia de uma forma ainda maior. Aquela foi uma fala muito infeliz. Acho que também não se resolve o problema da segurança pública aceitando tudo o que a polícia pretende fazer. As estatísticas recentes mostram claramente que não tem relação entre o crime de uma forma geral e a violência policial. Do outro lado, tem estados que têm uma redução do crime com a redução da violência policial. E tem estatísticas que vão de um lado e outras que vão do outro lado. A esperança mostra que a população tem que confiar na polícia. Temos que ter uma relação de confiança com a polícia. E não uma relação de medo. Isso é o que a gente queria ter conversado com as autoridades públicas neste filme. E nós não conseguimos. Esperamos poder ter esse debate quando lançarmos no cinema. Vamos buscar condições. Sei que existem movimentos antifascistas na polícia. Movimentos que se criaram nos últimos anos. Então, pelo menos, vamos tentar essa conversa com eles. Mas, o ambiente atual não favorece a isso.

Você optou por usar um modo de documentário performático em alguns momentos, com as imagens dos âncoras de TV e a reconstrução da trajetória de Jurandy. Como se deu essa opção?
Estávamos querendo usar arquivos da TV Globo, mas eles não liberaram. Então, tivemos que usar esse recurso. Também tem toda a dimensão de reencenar algumas cenas, porque reencenamos a jornada do Jurandy. Como filmamos um ano depois do acontecimento, usamos desse recurso. Tentei não exagerar nesse ponto de vista, porque Jurandy não é um ator. Mas, do ponto de vista da dramaturgia, foi a maneira mais eficiente para entender o que o ele estava passando. Era melhor do que simplesmente entrevistá-lo e escutar a sua narrativa. No caso do jornal, foi realmente porque a Globo não liberou. O Jornal Correio nos ajudou. Tentamos várias indicações, mas não deu certo. A Globo não libera mais os arquivos de imagens deles.

O Jornal Correio, através do repórter Bruno Wendel, foi quem trouxe à tona todo o caso na época. Além disso, houve uma forte cobertura dos veículos de imprensa daqui acerca da denúncia. Como você avaliou esse suporte dos jornais e sites para toda a situação?
Fiquei muito impressionado pela presença da imprensa no caso todo. E agora também, sobre a questão da violência policial. Porque, se você prestar atenção, a imprensa nunca foi tão atacada como hoje em dia. Por parte da população e, principalmente, pelos governantes. A imprensa, seja de direita ou de esquerda, seja lá o que for, para muitos se tornou o inimigo do povo. Mas o que estamos vendo é que o espaço democrático, hoje, está na imprensa. A rede social, para mim, é uma mídia completamente ineficaz e que ajuda as pessoas a se esconderem ainda mais. A imprensa, pelo contrário, hoje em dia, é o espaço que mais denuncia a violência policial. Até a revista Veja fez matéria sobre a violência policial. Então, o Jornal Correio, na época, cumpriu o seu papel investigativo. Na realidade, hoje em dia, a maioria dos jornais não tem os recursos para fazer isso. Mas todos os jornais acompanharam o caso Geovane. E hoje em dia vejo que todos os jornais, seja o A Tarde, o Correio, a Carta Capital, o El País, a Veja, a Istoé, publicações que você não poderia antecipar que iam se interessar pelo caso, estão tratando disso. Esse desprezo que se construiu em cima da imprensa ao longo dos anos, achando que a imprensa não representava mais um quarto poder, algo que era a vocação dela, agora mesmo ela está assumindo esse papel. E acho, realmente, que seja uma coisa muito feliz. Isso foi, realmente, uma das coisas positivas que saiu dessa experiência.

Você tem tido contato frequente com Jurandy sobre todo o desenrolar do caso. Como está o caso no momento e como Jurandy e sua família têm lidado com essa lentidão pela justiça após seis anos do assassinato de Geovane, após a decisão em primeira instância do caso ser levado a júri popular?
Antes, havia 11 policiais indiciados Hoje, são 7. Eles entraram com recursos até no STJ, em Brasília. E todos os recursos foram negados. Então, o caso vai mesmo a júri popular. Falei com o Jurandy a semana passada. Mas não tem prazo ainda. A esperança era que iria a júri popular esse ano, mas com a pandemia não ocorreu. Então, a esperança é que aconteça ano que vem. Mas sabemos que eles vão entrar de novo com recursos depois. A expectativa de Jurandy e do advogado dele é que esse caso não será resolvido em menos de 5 anos. Estamos falando de um processo que vai durar entre 10 e 15 anos. Como você vai conseguir resolver a sua dor? Como você vai conseguir se reconciliar com o setor da Justiça quando você tem que carregar esse processo durante 15 anos? É muito difícil. Jurandy continua acreditando. É uma coisa milagrosa. Ele não perde a fé. Ele acredita que em algum momento vai conseguir a justiça. Mas, realmente, tem que ter muita fé. Não sei se você acompanhou o caso do Amarildo, no Rio. No Rio, a Justiça votou pela indenização da família. O assassinato do Amarildo foi em 2014. A Justiça concedeu uma indenização em 2018. Até hoje a família não recebeu, porque o Estado entrou com vários recursos. Então, mesmo quando a Justiça se pronuncia, os casos não se resolvem.

Lembro-me de assistir ao seu filme no Panorama Internacional Coisa de Cinema em 2018 e sair com um aperto no peito por conta da indignação que toda aquela violência me causou. Revê-lo agora, com todo o contexto de 2020, só fez tal indignação aumentar.
Acho que a dimensão de indignação não foi diminuindo ao longo do tempo. Eu não costumo assistir aos meus filmes depois. Tento me distanciar do filme, mas, cada vez que escuto mais uma história de uma pessoa agredida pela polícia, minha indignação só faz aumentar. Realmente, esse filme nasceu dessa indignação. Claro, a família da minha esposa é do mesmo bairro de Jurandy, e a gente sabe que para os irmãos dela, para os seus primos, eles correm o mesmo perigo ao voltar à noite para casa. Eles têm medo de voltar para casa, porque não sabem se vão encontrar uma viatura. Não sabem se não vão se encontrar no lugar errado, na hora errada. Então, eles ficam completamente à mercê do que a polícia pode fazer a qualquer momento. A dimensão de indignação é muito forte. Foi uma grande motivação nesse filme. Outra dimensão que vem complementar essa indignação é que foi bastante difícil divulgar esse filme no Brasil. A gente teve mais facilidade de entrar nos festivais fora do Brasil do que aqui. Em Salvador, o Cláudio (Marques, diretor e curador do Panorama Internacional Coisa de Cinema) logo selecionou o filme e abraçou a causa. Porque ele mesmo estava muito indignado com essa situação. O Festival do Rio selecionou o filme um ano depois. Mas, fora isso, foi muito difícil. Parecia que os curadores não se interessaram pelo assunto. Hoje em dia, vejo bastante pessoas que não estão querendo tratar o assunto. Não estão querendo abordar de uma forma precisa o assunto. O que o filme está mostrando é que somos todos responsáveis. Não só a polícia, mas, também, os vários segmentos da sociedade. O que esse filme realmente quer apontar é que todos nós temos que nos mobilizar para reduzir a violência policial. A indignação faz parte e é o primeiro passo dessa mobilização. Mas vejo essa dificuldade de mobilizar as pessoas, de mobilizar os curadores em cima do assunto. Nós mobilizamos alguns artistas como Wagner Moura e Vladimir Brichta para gravar vídeos sobre o filme. E os dois imediatamente toparam e gravaram para nós. Mas, da mesma forma, é bastante difícil fazer com que as pessoas assistissem, se mobilizem e topem contribuir de alguma forma. É algo que não vai se resolver tão logo. Vamos ver o que o filme fará agora depois do lançamento comercial, mas, realmente, a minha indignação está aqui. Acho que a sociedade não se mobilizou quanto à gravidade do problema. Como falei várias vezes, gostaríamos de salientar que vidas negras importam, mas enquanto se mobilizam nos Estados Unidos, no Brasil não é assim.

É a prova de que perde-se qualquer traço de humanidade quando o absurdo vira o comum.
Sim. Sabemos que a violência policial não é uma solução para se reduzir o crime de forma nenhuma. Já foi comprovado pelos dados de várias maneiras. Mas continuam a pensar que o Brasil é uma situação particular e que a violência policial é intimamente ligada ao nível de violência do crime de uma forma geral. Então, tem essa dimensão trazida pelo filme que o professor João Reis aborda na fala dele. É algo que já vem da escravidão. A classe média branca, há séculos, delegou para a polícia a questão de se resolver o crime. Na época da escravidão, quando um escravo tentava fugir, o castigo era feito pela guarda, pelos policiais, pelos capitães do mato. A classe branca não queria sujar as mãos ou se envolver com a questão da violência policial. Nessa época, não era polícia, mas era o mesmo tipo de atribuição. Ainda estamos no mesmo esquema. A classe branca não quer se envolver nessa problemática. A classe branca do Brasil não quer se aproximar disso.

Levando em consideração as medidas sanitárias por conta da pandemia, um número reduzido de pessoas nas salas, bem como os cuidados no acesso aos cinemas, como você avalia essa opção em lançar “Sem Descanso” nas salas, ao invés do streaming ou VOD?
Como você sabe, tem muitos documentários que são lançados diretamente em plataformas on line. Realmente é uma maneira mais fácil e também mais barata de se lançar o filme. Mas, por conta do tema, por conta do contexto, fizemos questão de fazer esse lançamento nas salas de cinema. As salas de cinema são o lugar da resistência. O lugar do debate. Muito mais do que as redes sociais. Nas redes sociais, geralmente, os debates se esgotam logo. Claro, a gente não sabe qual vai ser o público e a bilheteria. Talvez vá ser complicado porque o contexto é difícil. Mas não importa. Acho que, simbolicamente, se você faz um filme que tenha uma dimensão política, que tenha uma dimensão social, você precisa levar esse filme para as salas de cinema. Porque não há lugar melhor para criar a resistência e para debater de uma forma produtiva. Então, apesar das dificuldades de fazer isso, do fato de que muitas salas ainda estão fechadas, nós mantivemos esse objetivo. Em princípio, vamos lançar o filme em dez cidades, se as salas se confirmarem. A gente tem que reconhecer o papel dos exibidores, apesar do fato de que eu acredito que a sala de cinema é um lugar seguro. Muito mais seguro do que ir no supermercado, do que ficar duas horas na fila do banco. As salas de cinema ficaram muito prejudicadas pelo confinamento. Na França, está se fazendo uma revolução em torno disso, porque não se entende porque você poderia ir ao supermercado, mas não se poderia ir a uma sala de cinema. Os exibidores foram muito corajosos mantendo as salas abertas e se organizando para continuar a estrear filmes com segurança ao seu público. Se a gente não levar filmes para eles, é realmente desrespeitar todos os esforços que eles estão tendo.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.

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