Entrevista: Litera

por Marcos Paulino

Durante sete anos, o imperador Dom Pedro 1º manteve um romance com Domitila, a marquesa de Santos. Nesse período, os amantes trocaram pelo menos 94 cartas. Essas correspondências dariam origem, quase dois séculos depois, a um livro, que por sua vez inspiraria o projeto de uma banda gaúcha chamada Lítera.

Formado há 10 anos, o trio composto por André Neto (guitarra e voz), Rodrigo Bonjour (bateria) e James Pugens (baixo) criou dois EPs tendo a história como pano de fundo para seu rock enriquecido com nuances de música regional. Esses embriões geraram o álbum “Caso Real” (baixe gratuitamente), que, com suas 12 faixas, esmiúça o amor entre o imperador e a marquesa, que escandalizou a sociedade brasileira do século 19.

“Assim que li a primeira delas, já me encantei com o romance dos dois”, conta André Neto em entrevista ao Plug, parceiro do Scream & Yell. O guitarrista “encontrou” as cartas por acaso, no menu de um café. André foi atrás do livro “Titilia e Demonão”, do escritor Paulo Rezzutti, e a história real acabou rendendo para o trio. “É um disco com, no mínimo, 200 anos de fôlego”, ele avisa neste bate papo. Confira.

Você conta que a ideia pra fazer o projeto que resultaria em “Caso Real” surgiu por acaso. Como foi essa história?
Em 2012, fui a um lugar chamado Domitila, para tomar café. No menu, todos os pratos tinham o nome inspirado em personagens da época imperial e, entre as páginas, tinham as cartas trocadas entre Dom Pedro 1º e Domitila. Assim que li a primeira delas, já me encantei com o romance dos dois. Depois, em casa, pesquisei mais coisas e me deparei com o livro “Titilia e Demonão”, do escritor Paulo Rezzutti, que me inspirou pra compor o single “Domitila”. Conversando com a banda na época, vimos que uma música só não traduzia tudo que aquela história tinha pra dizer, então surgiram o EP1, “O Imperador”, e o EP2, “A Marquesa”, que com mais quatro músicas novas completaram o disco “Caso Real”, que lançamos no final do ano passado.

Há três anos vocês vêm trabalhando nesse projeto. O tema ainda tem fôlego?
Claro que sim. É um disco com, no mínimo, 200 anos de fôlego. E afirmo isso pelo fato de que falamos nele sobre uma mulher que foi esfaqueada pelo marido no século 19 e a sociedade questionou o que ela fez pra merecer isso e a condenou. Há poucos meses, uma menina foi estuprada por 33 homens e a sociedade a questionou e condenou da mesma forma. A Domitila foi vítima de uma sociedade machista e patriarcal; a menina de 16 anos também. Ou seja, contamos uma história antiga com um tema infelizmente atual. O dia em que acabar o fôlego pra esse assunto vai ser um dia feliz.

Vocês temem que a criatividade da banda fique limitada por trabalhar um tema tão específico?
Não, por que o tema não é específico. A gente se utiliza de uma determinada história para questionar diversos padrões, como quando falamos de amores impossíveis, que envolvem todo o preconceito social de gênero, classe, cor, credo que existe sobre os relacionamentos. Também quando falamos da Domitila, estamos abordando um assunto muito amplo, uma luta das mulheres. A Domitila ainda carrega o estigma de ser amante de Dom Pedro 1º, sendo que o período que ficaram juntos não representa nem 1/8 da vida dela e atualmente vemos as mulheres sendo julgadas e rotuladas socialmente. São infinitas as questões a serem trabalhadas com esse tema.

Além das letras, o clima de século 19 também está no figurino, nos clipes e na estética gráfica da Lítera. Vocês realmente se tornaram aficionados por esse período da história?
Aficionados não sei se é a palavra, mas gosto muito desse período. É uma fase muito interessante da sociedade, onde começa a era industrial, surgem muitos filósofos, muitos questionamentos, muitas descobertas, inclusive a do amor e como expressá-lo, e também muitas invenções. É uma divisão grande e bem próxima da gente. Pra mim, que amo história, é uma paixão. E pra mim, que sou ariano e odeio rotina, não dá pra dizer que é pra sempre.

Além do disco, o tema deu origem também a uma intervenção urbana em Porto Alegre, que buscou casos reais de amores impossíveis. Como foi essa experiência?
Os stickers espalhados com a frase “Vc já viveu um amor impossível?” fazem as pessoas saírem da zona de conforto, porque, ainda que cumpram todos os protocolos de relacionamento estabelecidos socialmente – hétero, rico, branco normativos –, dificilmente escaparam de um romance coibido. Todo mundo já viveu um amor impossível, por distância, um amor de criança, pelo namorado da amiga, pelo primo ou prima. Então, ao serem questionadas sobre isso, é um momento, ainda que pequeno e que não possa ser comparado, em que elas se inserem no contexto do outro e sentem um pouquinho da sensação que é amar e, de alguma forma, serem impedidas de amar. A gente sentia essa necessidade de conversar com a rua e começamos a sentir cada vez mais. Então colocamos uma cadeira no centro de Porto Alegre, ligamos a câmera e as pessoas vieram espontaneamente contar seus casos reais de amores impossíveis. Essa ação nos mostrou que temos uma enorme carência de contato humano, de encostar no outro, de dizer palavras, de desabafar. Foi uma experiência maravilhosa. Sorrimos e choramos junto com cada história, que podem ser vistas e ouvidas em www.youtube.com/literarock.

“Dramáticos, românticos, mas adoramos rock”. É assim que vocês se definem no site da banda. Explique esse “mas”.
Legal a pergunta. É que o drama e o romantismo não me parecem ter sido feitos para combinar com o rock. O rock tem muita atitude, é mais visceral, ele não veio para responder, veio para confundir. E é claro que a gente não inventou isso, mas é engraçado quando o lirismo e a poesia se misturam com ele, é quase um colapso. Acho que a Lítera é isso: uma banda dramática, romântica, mas que adora rock.

Vocês procuram acrescentar instrumentos não muito usuais no rock, como acordeão e cavaquinho, no som da banda. Essas escolhas são planejadas ou vão surgindo naturalmente?
Vão surgindo naturalmente, mas sempre houve um desejo de acrescentar outros instrumentos que harmonizassem e favorecessem mais a canção.

Você acredita que a sonoridade da Lítera pode alcançar um grande público?
Claro, lógico.

Hoje, a banda não é muito conhecida fora do Rio Grande do Sul. Como vem sendo o trabalho de vocês pra ultrapassar as fronteiras do Estado?
Não somos nem muito conhecidos no Rio Grande do Sul. É uma banda independente, que depende do púbico que a conhece para se divulgar e circular. Mas o processo é esse, a gente constrói nosso viés artístico e as pessoas determinam o caminho e onde vamos chegar com isso. Desde que a gente se jogou na estrada, sempre estivemos numa crescente, com respaldo do público que nos acompanha e nos reconhece.

Há um calendário de shows programados pra alcançar o público de outros Estados?
Sim. As datas já estão quase todas fechadas. Eu estou participando do reality show “Batalha dos Cozinheiros”, apresentado pelo Buddy Valastro, que está previsto para terminar no final de setembro. Depois disso, vamos começar a divulgar os próximos shows.

Vocês já pensam num projeto com outro tema?
Tem dois outros temas que estão na minha cabeça, mas quero deixar o tempo passar e essas ideias amadurecerem. Vamos ver o que o futuro vai dizer

Marcos Paulino é editor do caderno Plug (www.mundoplug.com), da Gazeta de Limeira.

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