Crítica: “Assassinos da Lua das Flores” e a denúncia de um genocídio indígena

por Otávio Augusto

Martin Scorsese é um dos maiores diretores da história da sétima arte e conquistou seu espaço pelo seu fascínio a respeito do poder e suas estruturas, luxos, excessos e contradições. Mas, ao contrário do que possa parecer, não são os indivíduos que estão no topo do poder que ganham destaque em seus filmes. Seus personagens mais complexos estão nas margens, como o ex combatente do Vietnã, Travis Birkcle, em “Taxi Driver” (1976), ou Henry Hill, em “GoodFellas” (1990). Depois de acertar as contas com os filmes de máfia em “O Irlandês” (2019), Scorsese mergulha no cinema denúncia em “Killers of the Flower Moon”, filme que lança luz sobre o massacre dos índios Osages em Oklahoma, na década de 1920. O roteiro é uma colaboração de Scorsese com o premiado Eric Roth, de filmes como “Forrest Gump” (1994), “O Informante” (1999), “Munique” (2005) e “O Curioso Caso de Benjamin Button” (2008), entre outros.

“Assassinos da Lua das Flores” (Killers of the Flower Moon; 2023) é baseado no best-seller de David Grann e se apresenta como um western como todos os clássicos do gênero. Trata da apropriação de terras e seus recursos e a disputa desumana por poder na construção dos Estados Unidos da América. Porém, o tom de denúncia do genocídio Osage é a veia condutora de um longa de mais de 3 horas de duração. Scorsese assume que seu cinema tem um compromisso em contar essa tragédia sem poupar nenhum detalhe do que a ganância e a crueldade são capazes de fazer. No início do século XX, o povo Osage não tinha a sua cidadania reconhecida pelo governo dos EUA. Em 1905, foi aprovada a Lei Burke, em referência a Charles Burke, que chamou Osages de “animais”. Essa lei determinava que um Osage não era suficientemente competente para cuidar da sua terra petrolífera e que, assim, era necessário um tutor branco.

A grande estrela do filme é Lily Gladstone. A atriz dá vida a Mollie, uma nativa Osage que – como todo o seu povo – passou a ser alvo da ganância por suas terras abastadas em petróleo. Sua família é acometida por uma série de adoecimentos misteriosos, além do brutal assassinato da sua irmã rebelde, Anna (Cara Jade Myers), com um tiro na cabeça. Mollie se envolve com Ernest Burkhart (DiCaprio), um ex combatente traumatizado pela primeira guerra, totalmente influenciável, confuso, cruel e dócil, que chega até a região dos Osage para trabalhar com seu tio inescrupuloso, William King Hale (Robert De Niro). Ernest parece sincero com seus sentimentos em relação à Mollie, mas, pouco a pouco, está cada vez mais evidente seu compromisso com o plano desumano do seu tio, que apesar de cruel, sabe trechos da Bíblia de cor e se considera o típico “cidadão de bem”. Hale presta assistências aos Osage enquanto cria uma rede de mortes, doenças misteriosas e depressão. Tudo pelo poder e pela riqueza do petróleo.

Lily Gladstone cria uma personagem carregada de ternura. Mollie sabe que Ernest não é um bom homem, mas está apaixonada e seduzida por ele a ponto de lhe confiar sua própria vida quando adoece com a mesma enfermidade misteriosa que tirou levou sua mãe. Quando Ernest não faz o que foi combinado, Hale – em um salão de maçonaria – lhe apresenta o castigo, mas diz que o ama e que ele precisa seguir o que foi estabelecido: se apropriar das terras Osage. Tudo começa a ruir quando o cerco se fecha contra Hale e Ernest, o que não quer dizer que os mesmos pagaram por seus crimes. Hale afirma até o fim que aquela tragédia é o destino que Deus quer e que nenhum milagre poderá parar o curso da história. Afinal, “depois todos esquecem, e será só mais uma tragédia cotidiana…”

É importante dizer que esse petróleo roubado com o sangue dos Osage criou a fortuna da Família Koch, umas das famílias mais ricas do mundo, grandes financiadores de diversos thinks thanks de extrema direita atualmente. No início dos anos 1990, Charles Koch afirmou ao National Journal que sua visão de vida é “minimizar o papel do governo e maximizar o papel da economia privada e das liberdades pessoais“, explicando sua ação direta e filantrópica em diversas instituições “sem fins lucrativos”, inclusive na América Latina, para impulsionar a economia de mercado e o ódio ao Estado para supervalorização do indivíduo e da economia privada, como ensinaram autores elogiosos do fascismo, como Von Mises…

O filme teve ampla participação de entidades indígenas e foi filmado em uma reserva Osage, com autorização dos mesmos e com o compromisso de demonstrar que a luta não tem fim quando o filme acaba. Os Osage lutam até hoje contra o governo dos EUA pela riqueza e pelas vidas que lhe foram tiradas. A trilha sonora fica a cargo do genial músico Robbie Robertson (1943-2023), ex-The Band, amigo de longa data e que trabalhou em diversos filmes do diretor. Scorsese usa o cinema para fazer um alerta importante sobre contra quem estamos lidando (ontem e hoje), sobre a história de sangue e morte que cria a nação estadunidense e sobre como a sede por poder e dinheiro não mede esforços para a destruição da humanidade.

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– Otávio Augusto é historiador e fã de cultura pop;

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