Crítica: Inexpressivo, “As Marvels” é o diagnóstico definitivo da crise da MCU

texto de Davi Caro

Desde a estreia de “Capitã Marvel” nos cinemas, em 2018, a personagem vivida por Brie Larson vem ocupando um lugar bastante estranho no Universo Cinematográfico Marvel (MCU para os aficionados). A introdução de Carol Danvers, que aconteceu exatamente entre os dois últimos e gigantescos filmes dos Vingadores – “Guerra Infinita”, também de 2018, e “Ultimato”, de 2019 – foi cercada de expectativa e dúvidas: entre as dúvidas do massivo público, intrigado sobre como os heróis venceriam Thanos, seu maior adversário até então, também estava a própria possibilidade de um longa sustentado por uma protagonista feminina ser bem sucedido da mesma maneira que aqueles centrados no Homem de Ferro (de Robert Downey Jr.) ou no Capitão América (de Chris Evans). A resposta, enfim, foi mais positiva do que negativa: apesar do incessante grito de protesto por parte das camadas mais “conservadoras” (leia-se: “misóginas”) de sua fanbase, o universo interconectado tinha, agora, uma nova figura que podia, sim, atrair grandes multidões e trazer representatividade através de uma presença organicamente forte.

“As Marvels” (“The Marvels”, de Nia DaCosta, 2023) chega ao público num momento muito diferente para o MCU e para o cinema mainstream como um todo. Na esteira de produções que fracassaram junto ao público e a crítica, seja nas telas de cinema, como “Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania” (de Peyton Reed, também deste ano) ou “Thor: Amor e Trovão” (de Taika Waititi, 2022) ou de televisão (como a recente “Invasão Secreta”, lançada no Disney+), a Marvel vem sendo atrelada a uma crescente onda de insatisfação e fadiga para com filmes de super heróis. Ao passo que a rival DC procura, atualmente, revitalizar sua já desgastada folha corrida de filmes por meio do reboot capitaneado por James Gunn (anteriormente atrelado à franquia “Guardiões da Galáxia”), os estúdios chefiados por Kevin Feige se encontram em um dilema que só faz aumentar: o novo lançamento carrega consigo a tarefa de suceder não apenas o primeiro filme de sua heroína central, como também de dar seguimento à ótima série “Wandavision” (2021), responsável pela apresentação de Monica Rambeau (Teyonah Paris) e também de funcionar como sequência direta à subestimada “Ms. Marvel” (2022), com Iman Vellani no papel da protagonista Kamala Khan (e, de certo modo, também prosseguir com a narrativa da já citada “Invasão Secreta”, através da presença do Nick Fury de Samuel L. Jackson). Combinar as três personagens e trazê-las à frente de um novo blockbuster teria sido uma tarefa fácil em outros tempos; o mundo, porém, não é mais o mesmo, e “As Marvels” é, talvez, a mais precisa representação de uma narrativa interconectada que, cada vez mais, parece não ter certeza de seu próprio norte.

Partindo do cliffhanger que encerrou “Ms. Marvel” (com Kamala aparentemente trocando de lugar com Danvers de modo não explicado), as três heroínas titulares se deparam com um inimigo em comum: interligadas (de modo explicado de forma rasa) por meio de seus poderes, as protagonistas se envolvem em incidentes onde uma troca de lugar com a outra mediante à utilização simultânea de suas habilidades. Tal confusão, conforme explicado, é diretamente conectada às ações da vilã Dar-Benn (Zawe Ashton), que possui motivos pessoais para se opor à figura de Carol Danvers. Com os objetivos nefastos e destrutivos da antagonista tomando proporções cada vez maiores, cabe às três superpoderosas unirem forças e colocarem suas diferenças e ressalvas de lado, com o auxílio de Fury, agora no comando da agência interplanetária S.A.B.E.R. Travando uma luta contra o tempo, cada uma acaba se descobrindo individualmente, e tomando consciência de seu lugar junto às outras e ao universo no qual habitam.

O peso de continuar tantas linhas narrativas dentro de um mesmo enredo cobra seu preço em determinadas partes do filme – particularmente nos segmentos mais dramáticos. É como se a responsabilidade de desenvolver um trio de protagonistas tão distintas ao mesmo tempo fosse pesada demais para um simples filme abarcar. Não seria um feito impossível, mas é um ponto no qual “As Marvels” peca bastante: mesmo os momentos de maior tensão são sempre interrompidos por algum trocadilho, como a constante busca de Kamala por um nome para a “equipe” que forma com suas (a princípio) relutantes colegas e/ou inspirações. Um ponto positivo a ser lembrado é o fato de as três passarem longe de conflitos reais entre si, clichê visto em vários filmes que retratam salvadores mascarados colocados em grupos reticentes – o resto do argumento, infelizmente, não possui o mesmo frescor, algo que pode refletir a saída, no meio da produção, de DaCosta, que viajou para se dedicar a outro filme (vale lembrar que, de acordo com uma matéria publicada na revista Vanity Fair, a diretora teria supostamente expressado, em confidência, desconforto com o trabalho que estava realizando). Os bons resultados obtidos, por exemplo, com o subestimado “Candyman” (2021) não encontram eco aqui, infelizmente.

O elenco, obviamente, encontra seu foco nas três protagonistas: Paris se mostra à vontade no papel de Rambeau, que capturou a atenção de audiências em sua primeira aparição, ao lado da Feiticeira Escarlate de Elizabeth Olsen: seus momentos mais descontraídos não parecem deslocados, embora estejam longe de chamarem maior atenção. Vellani traz muito de sua irreverência, espinha dorsal de sua série solo, embora muitos dos momentos em que é o ponto focal destoem bastante – sua relação com seus pais e seu irmão, fundamentais para a construção de sua história de origem, é vítima das limitações de tempo com as quais um filme “regular” acaba tendo que trabalhar. O mesmo, por mais incrível que pareça, pode se dizer da antagonista principal. Mesmo flashbacks displicentes não são capazes de gerar muita empatia por Dar-Benn, e Zawe Ashton faz o que pode com um papel que a deve relegar ao mesmo posto de outros vilões interpretados por atores e atrizes talentosos, reduzidos a conclusões insignificantes em suas participações no MCU.

E Larson, apesar de ser quase uma “não-presença” na maioria das produções da Marvel desde seu debut (se limitando à aparições pontuais e cenas pós-créditos, além de ocasionais menções) faz bem o que se propõe a desempenhar, ainda que se mantenha um tanto inexpressiva em momentos que talvez demandassem maior envolvimento emocional, como a complicada relação com Monica e com a memória da mãe desta, Maria Rambeau, antiga parceira de Carol. Já Samuel L. Jackson, o longevo veterano, se mostra ser um personagem completamente diferente daquele visto em sua última aparição: o amargo agente secreto de “Invasão Secreta” parece ter deixado de lado qualquer ressalva no que faz, aparentando uma leveza pouco característica em seus momentos no holofote.

A cinematografia do longa passa longe de qualquer estranhamento, e, em se tratando de efeitos especiais, a grande maioria das passagens funciona bem (ao contrário, por exemplo, de “Mulher-Hulk”, de 2022), apesar de não contar com qualquer tomada memorável: a sequência no planeta Aladna, lar do povo presidido pelo príncipe Yan (Park Seo-joon) é exemplo inegável dessa inexpressividade – palavra essa capaz de resumir muito relacionado a este filme, onde a rapidez na realização das filmagens e no desenvolvimento de uma história parece ter tido preferência invés da qualidade. O clímax em si, embora realizado com alguma criatividade, possui resoluções rasteiras e pouco condizentes com a ameaça neutralizada, e suas consequências. Com uma agenda de filmes que, atualmente, se estende até 2027, é cabível se perguntar onde realmente estão as prioridades do estúdio na atual conjuntura.

É aí que fica escancarada a difícil realidade encarada por ambos, espectadores e produtores: anteriormente tido como um sinal de qualidade e (às vezes) unanimidade, o nome Marvel vem tomando uma conotação um pouco mais negativa – de instabilidade, de pecar pelo excesso ao invés de valorizar sua própria obra através da moderação em seus lançamentos, algo que impacta diretamente na manutenção de sua outrora impecável cronologia. O encerramento do filme, com indicações apressadas de tramas futuras e acenos agora típicos ao conceito de Multiverso, sofre ao tentar questionar muito em tão pouco tempo, embora deva empolgar aqueles que não desistiram de ver a Marvel se superar mais uma vez. Que este filme não seja o melhor indicativo do que está por vir: carismáticas e dedicadas como são, as três protagonistas não são capazes de mascarar o claro desgaste da Marvel Studios, numa falta de rumo resultante de linhas narrativas pouco conclusivas e díspares, e agravada por recentes escândalos envolvendo nomes de destaque em seus elencos. “As Marvels” pode estar distante dos piores filmes oriundos deste universo compartilhado, mas funciona como um diagnóstico, um demonstrativo inescapável do que acontece quando uma das maiores marcas da história do cinema contemporâneo não tem certeza do que é, e de para onde ir.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo

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