Inspirado, Caetano Veloso celebra o jovial e dissonante “Transa” sem saudosismos em show no Rio

texto de Marco Antonio Barbosa
fotos e vídeos de Bruno Capelas

“The age of gold, yes, the age of / The age of old / The age of gold / The age of music is past”. Pensei nesses versos ao ler, na manhã do ultimo domingo (12/11) este texto do jornalista e pesquisador Chris de La Riva – aliás, todo o Substack dele vale a pena. A reportagem aponta que um número desproporcional de ídolos pop (52%) atinge seu ápice comercial & artístico antes dos 30 anos de idade. Uma reflexão interessante, enquanto eu me preparava para assistir ao show-celebração que Caetano Veloso preparou em tributo a “Transa”, realizado na noite de domingo, na Arena Jockey (Rio de Janeiro). O baiano tinha 29 anos quando começou a trabalhar no álbum, hoje sua obra mais cultuada. Aos 81, Caetano já ultrapassou (ao menos aritmeticamente) seu zênite criativo. Mas nenhum outro nome de sua geração – no Brasil e no exterior – exibe tamanhos fôlego e inspiração, evidentes mesmo num momento explicitamente revisionista.

Sim, a nova/velha “Transa” de Caetano resgata o passado com um detalhismo que inclui os músicos da gravação original: Jards Macalé (violão, guitarra e vocal), Tutty Moreno (bateria) e Áureo de Souza (percussão), além de Ângela Ro Ro, revelada ao mundo no álbum de 1972. (Faltaram os finados Moacir Albuquerque e Gal Costa.) Só que a somatória vai além da recriação material do disco. As versões ao vivo soam muito fiéis às de estúdio; mas a principal presença no palco é o próprio espírito aventureiro do álbum, jovial, buliçoso e dissonante como nunca, a despeito das décadas acumuladas.

Professoral, Caetano faz questão de repassar o processo evolutivo que o levou à criação do álbum. Ou, como ele mesmo disse, “O que aconteceu comigo no pré-‘Transa’”, uma frase com duplos sentidos que certamente não escaparam ao baiano. O pré-“Transa” de Caetano foi uma foda mal-dada, que culminou com sua prisão em 1969 e o subsequente exílio em Londres. “Passei por xadrezes estranhos onde encontrei pessoas maravilhosas”, conta o cantor, introduzindo as cruciais “Irene” e “The Empty Boat” (1969) e “Maria Bethânia” e “London, London” (1971). O pré-show se encerra com “Araçá Azul”, do homônimo disco pós-“Transa” (1973), que em 2023 ganhou ares de post-rock, graças aos dedilhados de Lucas Nunes. É notável o empenho da banda ao recriar os arranjos (ainda que a falta da guitarra em “Irene” seja um pecado). Assim como na reinterpretação da trinca inicial de canções do disco de 1972, “Triste Bahia”, “Neolithic Man” e “It’s a Long Way”.

Ainda que as versões novas não difiram essencialmente das originais, é perceptível uma atmosfera de jam session, com os músicos tateando as harmonias e se divertindo. Caetano, quase imóvel no palco – mexe os braços e mais nada – aprova o clima com enormes sorrisos. Sem violão, sem coreografias, dedicado apenas ao microfone, o baiano ainda tem uma das gargantas mais precisas da MPB, dosando bem a voz para replicar as subidas e descidas de tom de cinco décadas atrás.

Quando a trupe do disco original se junta ao conjunto, o negócio pega fogo imediatamente, com “You Don’t Know Me” adornada pelos fraseados de blues que Jards trama no violão. Uma pequena digressão para que Macalé apresente seu clássico “Mal Secreto” (e duetos com Caetano em “Corcovado” e “Sem Samba não Dá”) não chega a diminuir a temperatura, que retorna à toda com “Mora na Filosofia” – o epicentro dramático de “Transa” – e “Nine out of Ten”, um dos manifestos definitivos da antropofagia tropicalista. Jards, já na guitarra, ajuda a banda na ponte entre o blues psicodélico e a polirritmia baiano-jamaicana.

Em uma segunda digressão, Caetano abre espaço para Ângela Ro Ro, que canta os hits “Escândalo” (composta pelo baiano) e “Amor Meu Grande Amor”. É a reparação definitiva do ato falho da edição original de “Transa”, que omitia em seus créditos o nome dos músicos participantes. Todos voltam para “Nostalgia”, com Ro Ro na gaita lutando contra uma breve falha técnica no microfone (“Gal abre essa faixa – no disco – imitando uma gaitinha de blues, e a gaitinha que ela faz com a boca soa melhor do que a minha (risos)”, contou Ro Ro no Scream & Yell) e mais uma vez “Nine out of Ten”, com Macalé mais uma vez endiabrado.

O banzo e a saudade manifestados no LP de 1972 se transformam, em 2023, num clima de festa, com a cariocada cantando todo o repertório de um disco que, a rigor, não tem hits. Ao fim da celebração, não são os versos da última canção que ecoam na mente, mas outros, tirados de “Araçá Azul”: “Com fé em Deus / Eu não vou morrer tão cedo”. Um artista que, aos 81 anos, consegue revisitar uma parte fundamental de sua história sem saudosismo, não vai morrer tão cedo.

– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br). 
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

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