Ao vivo: Histórico e inesquecível, Milton Nascimento recebe amigos e encanta em último show da carreira em Belo Horizonte

texto e fotos por Alexandre Biciati

NOS BAILES DA VIDA
Faltavam vinte e quatro horas para o derradeiro show da turnê “A Última Sessão de Música” de Milton Nascimento em Belo Horizonte e o bairro de Santa Tereza pulsava diferente do convencional. Os bares estavam cheios de turistas de toda parte do país em busca da legítima boemia no bairro histórico que germinou o Clube da Esquina.

No bar do Colombo, esquina oposta ao Bolão, uma roda de violão e pandeiro entoava clássicos da MPB. Perto da porta, uma turma de amigos curtia com ar de exclusividade: “Viemos do Paraná pra ver o show do Milton. E estamos adorando isso aqui”, revelou André Thomazoni. “No nosso voo, todo mundo estava vindo pro show”, completou Maíra Melhado.

O Bar do Museu Clube da Esquina já não comportava mais ninguém na noite do esquenta. Reduto dos fãs daquela safra de compositores que exportaram a música de Minas Gerais para o mundo, o Bar do Museu providenciou uma jardineira que, durante o dia, levou turistas para visitar os pontos turísticos da carreira de Milton Nascimento. Uma espécie de Magical Mystery Tour das montanhas.

De outro bar, o Vento Leste, vinham as notícias mais quentes. Acontecia uma reunião improvável, mas que ficou restrita a um seleto público. Beto Guedes, Wagner Tiso e Toninho Horta se encontraram para uma jam, o que ventilou os primeiros boatos de uma possível aparição no grande show da noite seguinte.

BOLA DE MEIA, BOLA DE GUDE
Milton escolheu a capital mineira, onde tudo começou, para se despedir dos palcos. O artista, cuja trajetória se confunde com a própria história da música popular brasileira, no auge dos seus recém-completados 80 anos, reuniu um time de músicos e profissionais que viabilizou uma verdadeira viagem pelos trilhos dos seus 60 anos de carreira. Uma história invejável que rendeu ao cantor 43 discos gravados, 5 prêmios Grammy, o título de Doutor Honoris Causa em música pela Universidade de Berklee, em Boston, e muitos tributos.

O Mineirão foi o local escolhido e não poderia ser diferente, dadas as demandas da festa e audiência esperada. O estádio, inclusive, foi alvo de recente decisão do Ministério Público que proibiu o recebimento de shows acatando reclamação dos moradores da região. Pelo menos, o horário do show garantiu encerramento antes das 22h. O show de Milton começou às 19h, com pontualidade garantida pela transmissão ao vivo, inclusive para não-assinantes, pela Globoplay.

Era de se esperar que, num evento dessa magnitude, muitas pessoas – físicas e jurídicas – prestariam homenagens. Até uma curiosa versão temática do Ferrorama da Estrela foi anunciada por ocasião da turnê de despedida. O brinquedo, clássico dos anos 80, está à venda com caixa personalizada pela bagatela de 700 reais. Nos bastidores, o Cruzeiro enviou uma camisa personalizada do clube, que foi entregue por Samuel Rosa, outro notório torcedor celeste cotado para participar do show. Mas o presente que agradou a todos veio mesmo de São Pedro (ou seria Tupã?) que garantiu um clima agradável contrariando a previsão de chuva na capital.

Às 15h os portões abriram para receber um público que totalizou, aproximadamente, 60 mil pessoas. Quem chegou cedo garantiu lugar perto do palco e não arredou pé. Como era de se esperar, o perfil etário era bastante diversificado dada a longevidade e a atemporalidade da música de Bituca. Em comum, a ansiedade em ver e ouvir o cantor ao vivo misturada ao pesar de ser pela última vez. Nos telões laterais, uma foto singela do abraço de Milton e Gal entregava a homenagem da noite.

Zé Ibarra

Uma hora antes do show principal, foi anunciado ao palco Zé Ibarra, músico, compositor e integrante da banda Bala Desejo (que acaba de ganhar um Grammy Latino), que fez a abertura e acompanhou Milton nos shows da última turnê. Com voz doce e segura e nitidamente emocionado, o músico iniciou sua apresentação com a intensa “Dos Cruces”, gravada por Milton no álbum “Clube da Esquina”. O público respondeu das arquibancadas pedindo que aumentassem o som. Ibarra chamou ao palco o baixista Frederico Heliodoro para tocarem “Baile de Máscaras”, do Bala Desejo. O grand finale foi uma homenagem a Gal Costa com a interpretação de “Minha Voz, Minha Vida” (Caetano Veloso) onde Zé Ibarra mostrou toda a potência e extensão aguda de sua voz, arrancando efusivos aplausos.

TRAVESSIA
Depois de passar por sete capitais brasileiras e cinco países, o trem da última sessão de música finalmente havia chegado à estação de Minas. Infladas pelo vento, as cortinas do palco pareciam querer antecipar a abertura enquanto o vídeo da turnê narrado pelo próprio Milton era exibido nos telões, provocando as primeiras lágrimas. A plateia, devidamente adereçada com cartazes e bastões neon, gritava o nome de Bituca.

Recebido com euforia e emoção, Milton Nascimento surgiu sentado no centro do palco e rodeado pela percussão de “Tambores de Minas”. Com sanfoninha no colo, referenciando o início de carreira, e trajando o exuberante “manto da anunciação”, confeccionado por Ronaldo Fraga, Milton deu início ao show com “Ponta de Areia” (Milton e Brant, 1975).

Com direção musical de Wilson Lopes (violão e guitarra), parceiro de longa data, a banda era formada por Lincoln Cheib (bateria), Ademir Fox (piano), Widor Santiago (metais), Ronaldo Silva e Vanderlei Silva (percussão), Alexandre Primo Ito (baixo acústico), além de Zé Ibarra (vocal e violão) e Fred Heliodoro (vocal e baixo elétrico) que abriram o show.

Recheado de homenagens aos parceiros e muita participação de peso, o show foi dedicado à Gal Costa logo na primeira fala de Milton que embargou a voz ao citar a amiga que gravou, pelo menos, uma dezena de suas canções. Por sua vez, as músicas seguintes “Catavento” e “Canção do Sal”, em medley, e “Morro Velho”, todas composições de Milton do disco “Travessia” de 1967, foram também gravadas por Elis Regina: “O grande amor da minha vida!”, ressaltou Milton.

Na troca de figurino, Milton abandonou o manto e adotou a “farda do imortal”, outra peça de Ronaldo Fraga, mas, desta vez, usando a tradicional boina e Ray-Ban, ao que o cantor reagiu sem cerimônia: “Agora sou eu!”. A essa altura já era visível o belíssimo painel de fundo, obra dos artistas plásticos Os Gêmeos. O público empolgou com os clássicos “Outubro” (Milton e Brant) e “Amor de índio” (Beto Guedes) – que não estava no repertório dos shows anteriores. “Vera Cruz” (Márcio e Milton) foi interpretada por Zé Ibarra que ainda fez introdução na flauta para “Pai Grande” cantada por Milton na íntegra.

CLUBE DA ESQUINA
Ao final de “Que bom, amigo”, Milton receberia no palco então a grande participação da noite. A música, cuja letra fala em reencontro, ainda carrega o tema de base dissonante que atravessa os dois discos “Clube da Esquina” (1972 e 1978). Era como se tivessem aberto um portal no palco por onde passaram Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e Wagner Tiso para abrirem um grande bloco em homenagem à obra-prima do grupo. A rara cena dos músicos perfilados durou poucos instantes, mas certamente está eternizada na memória dos presentes que aplaudiram aos gritos de “Clube da Esquina! Clube da Esquina!”.

Lô Borges

“Esse ano o ‘Clube da Esquina’ foi considerado o melhor disco da música brasileira e a gente não pode deixar de celebrar isso neste show.”, enalteceu Bituca. “Para Lennon e McCartney” (1970), clássico absoluto e peça fundamental da música mineira, foi a primeira escolhida para celebrar a épica reunião. Seguiram com “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo” com Lô Borges soltando a voz, protagonizando um dos momentos mais animados do show.

Toninho Horta

Antes de deixar o palco, Lô fez questão de beijar a mão do amigo: “Te amo!”, foi possível entender em leitura labial. Provando que “Clube da Esquina” é sem dúvida um disco para se ouvir na íntegra, ainda vieram mais seis hits. E foram muitas lágrimas e muitos sorrisos e muitos abraços trocados ao som de “Cais” (Milton e Bastos), que teve pausa dramática para entrada da melodia final, “Tudo que Você Podia Ser” (Lô e Márcio) e “San Vicente” (Milton e Brant), cantada por Zé Ibarra. “Viver esse momento é a prova de que meus sonhos jamais envelheceram”, introduziu Milton para dar voz a “Clube da Esquina n º 2” (Milton, Lô e Márcio), outro clássico incontestável. “Lília”, música instrumental que Milton compôs para sua mãe, e “Nada Será Como Antes” (Milton e Bastos) encerraram o bloco.

Beto Guedes

ENCONTROS E DESPEDIDAS
Ademir Fox fez número solo ao piano interpretando com intensidade a música que dá nome ao show, “A Última Sessão de Música”. Embalado pelas vozes de Bituca e Zé Ibarra, o coro geral surgiu novamente em “Fé Cega, Faca Amolada”. De Caetano e Milton, “Paula e Bebeto” encantou pelo refrão sempre muito bem-vindo: “Qualquer maneira de amor vale a pena”. A homenagem seguinte foi a Mercedes Sosa que foi lembrada com “Volver a los 17” também cantada com muito talento e sensibilidade por Zé Ibarra ao violão.

Samuel Rosa

Samuel Rosa foi convidado ao palco para cantar “Trem Azul”, com direito a solo de Wilson Lopes, mas não começou sem antes homenagear o ídolo ao microfone: “Já achava um privilégio habitar a terra com esse gênio! Sua música é pra sempre, sua música transforma as pessoas e o país”. A fala de Samuel provocou a plateia que gritou novamente “Bituca, eu te amo”, levando Milton mais uma vez a se emocionar. Para além do carisma, Samuel Rosa estava muito à vontade e fez uma das melhores participações da noite.

O próximo bloco foi especial, principalmente para os mineiros. Um medley de canções populares do interior de Minas Gerais com a sequência “Cálix Bento”, “Peixinhos do Mar” e “Cuitelinho” (Paulo Vanzolini e Antônio Carlos Xandó). O repertório tradicional preparou terreno para “O Cio da Terra” (Chico e Milton) cantada em bom som pelos 60 mil presentes como um hino.

Milton Nascimento dedicou “Canção da América”, uma das mais aguardadas, indiscriminadamente a todos os presentes que “estão guardados do lado esquerdo do meu peito”, disse. Do disco “Caçador de Mim” (1981) vieram duas músicas: a faixa-título, composição de Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá e “Nos Bailes da Vida” (MIlton e Brant) que fala das origens do artista que tocava em bares antes da fama. Milton dedicou a todos os músicos que estão na mesma lida, “Essa música é para homenagear esses artistas tão especiais”. A instrumental “Tema de Tostão” abriu caminho para a participação de Nelson Ângelo que cantou, de sua autoria, “Fazenda” do disco “Geraes” (1976).

Aproximando-se do encerramento, a banda fez a arena dançar ao som da alegre “Bola de Meia, Bola de Gude”. Milton então apresentou o grupoe foi devidamente apresentado para ovação geral. Por pelo menos um minuto a plateia gritou o nome de Bituca que era exibido em close no telão. Milton e plateia se emocionaram mutuamente com o momento. O clima só mudou com os primeiros acordes de “Maria Maria” (Brant e Milton) que colocou o Mineirão para pular novamente e cantar junto.

Ao final da canção, fogos de artifício iluminaram a noite, celebrando o encontro de Milton com os milhares de fãs que assistiam in loco e pela transmissão simultânea, proporcionando um efeito apoteótico ao espetáculo. Em tempo, a produção teve a preocupação de usar fogos silenciosos que em nada afetaram a intensidade do momento.

Wagner Tiso

Para o bis, voltou ao palco Wagner Tiso que protagonizou ao lado de Milton outro ponto alto do repertório interpretando “Coração de Estudante” ao piano. A otimista canção, que embalou uma geração inteira nos anos 80, levou Milton a se manifestar – coisa que muito músico de sua geração evitou fazer recentemente. “Viva a democracia!”, bradou. Ao que foi prontamente respondido por gritos de “Lula” e um mar mãos erguidas sinalizando o “L”.

Com a volta de Toninho Horta na semiacústica, o show caminhou para o encerramento. Zé Ibarra foi quem puxou os primeiros versos de “Travessia” (Milton e Brant) e provocou o coro. Milton assumiu o refrão como se não tivesse encarado 2 horas de show. Toninho Horta, além de debulhar as cordas, assumiu os rumos nos versos finais. Para fechar o show nenhuma música poderia ser mais adequada que “Encontros e Despedidas” (Milton e Brant). Milton ainda homenageou o parceiro de vida e composição “Fernando Brant, onde você estiver, eu te amo!”.

De forma mais que justa, Milton convidou ao palco toda a equipe do evento nominalmente ao palco. Augusto Nascimento, foi quem se encarregou de colocar o pai de pé para receber uma verdadeira chuva de carinho ao som de “Canción por la Unidad Latinoamericana”. O cantor se emocionou pela última vez naquele palco diante de um Mineirão lotado de corações que nunca esquecerão sua importância para a música brasileira e mundial.

NADA SERÁ COMO ANTES
A música de Milton Nascimento ecoa das montanhas de Minas ao coração do povo brasileiro. Reconhecemos algo de íntimo e particular a cada melodia de suas canções. O talento de Milton não pode ser mensurado pela extensão de sua discografia, é preciso mergulhar na diversidade e na densidade de suas composições. Estamos nos referindo à voz que encantou toda e qualquer outra voz que ocorra comparar. Um artista que é em si um movimento musical.

Sabíamos que o encerramento da carreira de Bituca em Belo Horizonte seria um evento memorável. O que aconteceu nesse dia 13 de novembro, entretanto, supera toda e qualquer expectativa pela relevância. Não seria excessivo dizer que os fãs da boa música agora se dividem em quem assistiu e quem ainda assistirá ao registro desse show. Milton realizou uma façanha que poucos artistas hão de conseguir: encerrar a carreira nos palcos com tamanho profissionalismo e respeito à própria trajetória.

É difícil transmitir textualmente quão emocionante foi o encontro e a despedida de Milton Nascimento dos palcos em Belo Horizonte. Ocorre que não importa, na verdade, o volume das lágrimas, mas a qualidade dessa emoção. Parafraseando a “voz de Deus”, nunca será exagero repetir: Obrigado, Bituca! Por tornar nossa vida tão linda!

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