Show: Carne Doce ao vivo no CCSP

Texto por Renan Guerra
Fotos por Filipa Andreia

Carne Doce é uma banda de nicho, ilustre desconhecida para muitos. Por outro lado, é dona de um séquito fiel de fãs, que sabe as complexas letras de cor e que se identifica de forma intensa com o universo criado pelos goianos. Nesse mês de julho, eles lançaram “Tônus” (2018), seu terceiro disco, produzido através da Natura Musical (ouça o disco).

A estreia da turnê de “Tônus” em São Paulo foi na arena da charmosa sala Adoniran Barbosa, no Centro Cultural São Paulo, como parte da mostra Centro do Rock, realizada com curadoria de Alexandre Matias, do Trabalho Sujo. O público esgotou rapidinho os ingressos gratuitos e fez uma longa fila pra entrar no local – inúmeros fãs que ficaram de fora, implorando entradas na porta e tentando ver alguma coisa através das paredes de vidro do espaço.

Antes de chegar à noite do show é preciso retornar no tempo. Carne Doce tem dois ótimos discos: o homônimo de estreia, de 2014, e “Princesa”, de 2016 (escolhido um dos 10 melhores discos daquele ano em votação aqui no Scream & Yell). O sucesso de “Princesa” colocou a banda num espaço político-feminista que criou certa aura em torno de Salma Jô, vocalista e letrista da banda. De lá pra cá, a expectativa era que tipo de universo e linguagem a banda traria em seu novo trabalho.

A primeira canção lançada, “Nova Nova”, dava a entender que a raiva e o voracidade dos trabalhos anteriores estavam mais contidos (alguns podem dizer que isso seria maturidade outros que seria apenas um novo caminho, com menos voracidade). Já o segundo single, “Amor Distrai (Durin)”, composto em parceria com João Victor e Fernando Almeida (do Boogarins), apresentava um universo bastante sexual, cantado de forma suave por Salma – num vibe meio chanson française meets lisergia.

Como um todo, “Tônus” expôs que esse era oficialmente um álbum mais “calmo”. Salma diminuiu os gritos e as canções parecem ter levado seu peso para um lado mais atmosférico. com as composições soando ainda mais dúbias e múltiplas: a poesia de Salma nunca foi direta, nem estava na cara, sempre foi mais complexa – talvez a recepção e os significados atribuídos pelo público ao “Princesa” dêem outra sensação, porém as canções do Carne Doce nunca foram preto no branco, sempre foram espaço de construção.

Esse caráter se apresenta ainda mais forte no novo disco, e faixas como “Irmã” ou “Golpista”, rendem leituras múltiplas, que caminham por cenários como a política, a arte, a liberdade feminina e as relações humanas – numa leitura pessoal que já traz esse viés politizado pré-concebido. “Comida Amarga” e a faixa titulo podem ser vistas como libidinosas por alguns tanto quanto podem ser assumidas como um olhar bastante pessoal sobre a aceitação do próprio corpo e da sua sexualidade. Questões múltiplas e que não são expostas de forma incisiva: é um ponto de vista extremamente pessoal de Salma, que serve como colcha de retalhos as nossas vivências e compreensões disso.

Como cama para isso tudo, a banda consegue manter seu peso em canções que parecem delicadas, mas que se mostram complexas em sua construção. Se muitas coisas parecem distintas ou novas em “Tônus”, por outro lado esse é um disco “muito Carne Doce”, com todos os significados que isso possa ter. Enquanto terceiro disco, ele serve como definidor de um universo da banda e consegue ser sólido em delinear a estética e as decisões artísticas do grupo, que parece mais solto e sem as pressões de “manter o hype” ou comprovar qualquer coisa a alguém.

Lançado na terça-feira (17/07), cinco dias depois as pessoas já sabiam de cor muitas das letras e esperavam ansiosas pelo show no CCSP (21/07). A noite contou com abertura da também goiana Bruna Mendez, que lançou seu disco de estreia, “O Mesmo Mar que Nega a Terra Cede à sua Calma”, em 2016. A abertura foi curtinha, menos de meia hora, e teve um caráter de quase apresentar sua obra ao público do Carne Doce, que em sua maioria, a desconhecia. A apresentação foi forte, mesmo com a figura fofa e doce de Bruna, que parece assumir um caráter místico em seu cantar.

Quandoo Carne Doce chegou ao centro do palco, o público já ficou em êxtase ao ver que Salma utilizava a meia arrastão que está presente nas artes gráficas de “Tônus”. O êxtase aumentou quando luzes neon deram as mesmas cores apresentadas nas fotos, em versão ao vivo, com Salma dançando libidinosamente no átrio da casa. As canções novas soaram ainda bastante cruas ao vivo – como é normal em quase toda estreia. Faltava certo calor e certa percepção que só a própria turnê pode dar. De todo modo, é bastante forte e simbólico que o público sabia a maioria dos versos complexos das canções, tanto que a própria Salma comentou seu encantamento e surpresa ao microfone.

Na hora de cantar “Falo”, do disco “Princesa”, Salma chamou as mulheres da plateia para o centro do palco: elas fizeram uma roda em torno da cantora, como num ritual, enquanto todas cantavam em uníssono os versos rápidos e incisivos da canção. Até que em determinado momento se vê Salma emergir do meio daquelas mulheres: erguida pelas garotas, a cantora foi carregada por entre mãos e certo nervosismo. Depois da experiência, Salma saiu com sua meia arrastão um tanto dilacerada e quase atordoada pelo que acabara de fazer e sentir. Emocionante.

Curtinho, com praticamente uma hora de duração, o show provou que o novo disco tem fôlego e já apresenta “Amor Distrai (Durin)” como um possível hit, cantado com tesão pelo público – a faixa aliás estava no top Viral 50 do Spotify. Além disso, o ao vivo mostrou que as canções ainda podem crescer muito e ganhar diferentes nuances no calor da hora.

Foi uma noite que comprovou que a Carne Doce está sem dúvida crescendo, que sua força parece mais sólida e que seu público parece ainda mais apaixonado e encantado por esse universo – para surpresa e incompreensão de muitos. Eles podem não ser a maior banda do país (ainda), pois caminham pelas beiradas de nicho, mas é certo que são um das bandas mais interessantes do cenário atual da música brasileira. E seu show é sempre uma experiência intensa, mostrando que Salma tem uma força que não pode ser ignorada. Fique de olho no Carne Doce e não os perca se tiver a oportunidade de vê-los no palco: a banda cresce muito ao vivo.

– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.
– Filipa Andreia é fotógrafa. Confira o seu trabalho no site: https://filipaandreia.pixieset.com/

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