Caetano não acredita em lágrimas

Por Vladimir Cunha

– O senhor quer o quê?, perguntou o balconista da padaria pela quinta vez.
– Quero lirios plásticos do campo e do contracampo. Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso. Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido, respondeu Caetano Veloso.
– Como que é?
– Quero teu bom só para o oco, minha falta. Sou Gitá Gogóia.

Já estava juntando gente. E uns espertinhos começaram a perguntar qualquer coisa só para tirar onda.

– E aí?, gritou para Caetano um sujeito sentado no balcão, vai dá Framengo ou Fruminense?
– Vai dar coro de cor sombra de som de cor de mal me quer…
– Aê, o maluco tá boladão, respondeu, em meio a gargalhadas gerais, um técnico da Telerj que arrumava a fiação telefônica do local.

Foi quando Dona Alzira, a governanta, chegou apressada, enxugando as mãos no avental do uniforme.

– Seu Caetano, tá todo mundo preocupado lá em casa, por onde o senhor andou?
– Andei por mais distante que o errante navegante…
– Faz meia-hora que ele tá assim, explicou o balconista.
– Minha Nossa Senhora.
– Senhora de Santo Amaro da Purificação de verde ver pé de capim, bico de pena pio de bem te vi…

Tinha começado mês passado, quando o morador do 601 resolveu puxar conversa no elevador.

– Calor, hein? Será que vai chover?
– Se vai chover ou não é sonho-segredo. Não é segredo…
– Hã?
– O que?, retrucou Caetano assustado.
– Nada não…eu, hein.

Naquele dia Caetano não dormiu, preocupado. E foi piorando. Certa vez, jogando WAR, avisou que seu objetivo era “conquistar uma coisa qualquer em você”. Alguém perguntava se ele queria almoçar e a resposta podia ser tanto “sim” quanto “Eu quero um bife de Coração exposto como um nervo tenso retenso um renegro. Prego cego durando na palma polpa da mão ao sol”. A família decidiu levar no médico. Durante a consulta, Caetano reclamou da bexiga e disse que “estava travado a mente na ideologia”. Já não conseguia mais falar como gente. A imprensa publicava suas entrevistas bombásticas e incompreensíveis como se ele fosse Moisés descendo o Monte Sinai com as Tábuas da Lei. “Lula não diz o que junhos de fumaça e frio”, foi sua declaração definitiva sobre o escândalo do mensalão publicada em um jornal paulista. “Em que se passara passa passará o raro pesadelo”, apressou-se em declarar Caetano assim que o Rio de Janeiro foi escolhido como sede das Olimpíadas. Os jornalistas adoravam, os jornais repercutiam e a classe média fazia que entendia.

Só Dona Alzira, não se sabe como, conseguia decifrar o idioma caetânico inventado pelo patrão.

– O senhor quer o que?, perguntou Alzira, intermediando a conversa entre Caetano e o balconista.
– Quero me dedicar a criar confusões de prosódia. Quero que pinte um Amor Bethânia.
– Moço, ele quer um pastel de queijo e uma coxinha de galinha, explicou ela ao balconista.
– E pra beber?, perguntou o rapaz, já meio aliviado.
– Densa e negra como as águas do Abaeté, arrudiada de areia branca, arrudiada…
– Uma coca light, traduziu a governanta.

Caetano comeu e pagou no cartão. Mas ao invés de assinar seu nome escreveu no boleto um poema de 173 linhas sobre Joaquim Nabuco. O caixa reclamou. Pra evitar confusão, Dona Alzira tirou cinco reais do sutiã e pagou a conta.

Na saída, um rapaz passou por Caetano e lhe perguntou as horas.

– Hora da palavra. Quando não se…
– Bora embora, seu Caetano, bora embora, cortou Alzira empurrando o patrão de volta pra casa.

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