entrevista de João Paulo Barreto
Parte da equipe de roteiristas da série “Floradas – Na Trilha da Agroecologia” (2023), Vitor Sousa passou por uma sensação de surpresa ao perceber que uma ideia de futuro distópico trazida por ele, ao lado de Anderson Soares, Luiz Chaves e Jarbas Essi, na qual o uso de máscaras de proteção contra uma possibilidade de contágio, se tornou uma realidade poucos meses depois de lançada na sala de desenvolvimento de roteiro da série.
“Foi curioso porque, em 2020, vivenciamos as inusitadas coisas da realidade que nós, de alguma forma, já tínhamos previsto ou antecipado na própria ficção. Na ficção, imaginamos um mundo onde as pessoas precisariam caminhar usando máscaras o tempo inteiro ou com o rosto coberto de alguma forma. Mas isso pensando muito na possibilidade de tempestade de areia, qualidade do ar. E isso era impensável para a gente”, relembra Vitor.
No roteiro, a possibilidade de extinção das abelhas, um tema real, já norteava a história, lançando o foco nas pesquisas de campo entre personagens reais de pessoas ligadas à preservação. Aqui, neste papo com o Scream & Yell, Vitor aprofunda as questões trazidas nessas discussões e fala sobre como foi o processo de adaptar a proposta temática a uma realidade que acabou por se tornar concreta. Confira!
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Vitor, no papo com Anderson Sousa, ele falou sobre o embrião do roteiro da série ter surgido do contato com pesquisadoras que lhe apresentaram a ideia. Como um dos roteiristas, como foi o processo de trazer esse formato híbrido de ficção e documentário? A abordagem relacionada ao (des)equilíbrio da natureza com uma possibilidade de extinção das abelhas sempre foi uma premissa básica?
O argumento do projeto parte desse trio de pesquisadoras, que já tinha um trabalho acadêmico sobre os biomas na Bahia. Há muita diversidade desses biomas no estado. E cada um deles dá visibilidade a projetos agroecológicos que são de grande representatividade dentro desse sistema. Então, essa proposta era de ser um documentário mais formal. Quase que institucional. Era mais uma proposta seguindo essa linha. Dentre esses projetos, um deles tinha uma questão voltada para a criação de abelhas. E isso me chamou a atenção. A primeira providência de Anderson, sempre que a gente inicia um projeto, é montar uma sala de roteiro. Então, a gente já sentou com os primeiros roteiristas. Acredito que Luiz (Chaves, co-roteirista) ainda não estava, mas ele chega no projeto pouco depois disso. Quando nos sentamos nas primeiras reuniões de sala de roteiro, começamos a debater como seriam os caminhos para fazermos esse documentário. E uma das primeiras coisas que chamou atenção foi essa questão das abelhas. Na época, eu lembro que tinha assistido há bem pouco tempo um episódio de “Black Mirror” (“Hated in the Nation” S03 E06) que mencionava essa questão das abelhas, a possibilidade de sua extinção e como elas fariam falta para todo o ecossistema. E aí o projeto não era necessariamente sobre as abelhas em si. Mas isso foi uma coisa que ficou destacada. Dentro da própria sala de roteiro, começamos a debater essa possibilidade, ventilando ideias. E isso acabou ficando em vários processos da sala de roteiro. Então, quando começamos, de fato, a imaginar que seria interessante propor uma narrativa ficcional aliada a essa história do documental, começamos a pensar nesse formato híbrido. Por isso, de alguma maneira, a questão das abelhas estava presente desde o início, sim, mas não com esse impacto, como essa proposta que a gente foi trabalhando depois ao longo da escrita do projeto ficcional.
A união narrativa entre documentário e ficção foi o ponto inicial da proposta de escrita desde a sala de roteiro, então?
Isso, a decisão de unir as duas narrativas saiu da primeira reunião de sala de roteiro. A gente imaginou que para contar essa história de uma forma mais interessante, unir com o ficcional seria um caminho legal, um caminho bacana da gente fazer isso no sentido de propor um modelo. A ideia era propor um modelo híbrido onde a ficção funcionasse como uma ligação entre todos os biomas. A gente precisaria visitar os lugares onde os projetos acontecem, mas a gente precisava de uma ligação entre eles. E essa ligação foi essa personagem ficcional que, logo, a gente batizou de Flora (interpretada por Carluce Couto). E a gente sabia que ela viajaria em um carro. Inicialmente, a ideia era até uma coisa meio “hipponga” dela viajando em uma Kombi. Já havia ali uma possibilidade de que ela tivesse uma relação abusiva com o personagem masculino e ela faria essa viagem dentro desses biomas em busca da própria cura. A princípio seria isso. Ela em busca da própria cura. Essa ficção foi proposta nesse modelo. Então, quando se começou a desenhar o projeto para submeter aos editais, ele já saiu com esse formato. Já saiu com a adição do ficcional e do documentário.
Uma vez decidida essa estrutura híbrida, como foi o desenvolvimento da escrita a quatro mãos?
Logo depois que o projeto foi aprovado nós começamos, de fato, a trabalhar nele, com os quatro roteirista estavam já definidos. Luiz (Chaves) entrou antes da aprovação do projeto e ele ajudou a pensar esse universo pós apocalíptico. Porque isso tinha uma força interessante para ajudar a contar dessa emergência da gente repensar a maneira como a gente lida com a agroecologia, com a própria relação com a natureza, e essa urgência das temáticas que estão muito relacionadas com os projetos agroecológicos. Então, esse pensamento pós apocalíptico já foi na proposta original de ficção, misturada com documentário do projeto. Então, no momento de desenvolvimento, retornamos para esse universo para repensar e recriar essa jornada de Flora. É aí que a gente pensa toda parte documental do projeto como um flashback, uma lembrança, uma memória de Flora, que visitou aqueles lugares todos como uma busca pela cura da doença que ela tinha. E logo depois desse sumiço dela, desse hiato, ela retorna para seu lugar original onde ela reencontra esse ex-noivo que conviveu com ela durante um tempo e que ela, durante muito tempo, abandonou tanto o lugar quanto o noivo. Esse seu retorno era para implementar a tecnologia que ela aprendeu ao longo da caminhada, tudo que ela guardou, e diante da emergência desse mundo pós apocalíptico, a possibilidade dela de fazer uma espécie de bunker, um… (pausa) um bunker de esperança. Você tem um lugar onde as coisas funcionam em um modelo diferente, e acabam funcionando muito bem ali e que são marcas de que é possível realizar da forma como eles realizam dentro daquele espaço menor. Então, a ideia de salvar o planeta inteiro passou longe da nossa cabeça, mas não tão longe porque, se você salva o particular, de alguma maneira você está salvando geral. Nesse recomeço, a gente traz a história das abelhas. Esse recomeço precisaria partir da criação das próprias abelhas, de polinizar. Tem a ver com a polinização. As últimas abelhas possíveis de serem resgatadas. E isso passava ali dentro dessa reconstrução que Flora queria propor. A temática da cura, que era uma temática que já estava no início, que era a cura da própria Flora, se torna a cura da terra em si. Então, a partir dessa temática da cura, dessa busca pela cura, a gente vai trabalhando o ficcional para dar esse apoio e essa ligação com o documental.
Como se deu a pesquisa de campo diante de um tema tão vasto?
Uma parte dela veio com a proposta das pesquisadoras, quando a produção vai definir os lugares que seriam visitados, personagens que seriam ouvidos. Havia uma gama muito grande de personagens, entre 15 e 20 pessoas, e isso falando somente dos especialistas, daqueles que representam de forma ampla aqueles biomas, aqueles projetos. Mas foram muitas pessoas envolvidas. Então, esses personagens principais, vamos chamar assim, do documental, a produção começou já a visitá-los durante o projeto de desenvolvimento. A produção estava na estrada enquanto estávamos na sala de roteiro e eles retornavam com as informações sobre quem eram esses personagens, sobre o que eles faziam dentro de seus projetos agroecológicos. A gente parte para fazer essa costura dos roteiros ficcionais a partir do que já se sabia que encontraríamos nas visitas documentais. O que a gente decide depois é que Flora iria, futuramente, depois do roteiro pronto, visitar esses personagens reais. Iria conversar com eles, provocá-los, e as respostas dos personagens reais seriam, de alguma forma, respostas às perguntas que Flora levaria. Então, essa foi a ligação que a gente conseguiu fazer. Então, enquanto roteirista, também tive a oportunidade de viajar a alguns municípios do sul da Bahia. E dessa visita, deu para a gente perceber algumas necessidades que precisariam ser abordadas no documental. E as perguntas que tínhamos curiosidade enquanto roteiristas, essa oportunidade de visitar uma pesquisa de campo, esses lugares, fizeram muito mais sentido quando retornamos para finalizar os roteiros.
As viagens às locações foram feitas ainda em 2020, antes da pandemia começar. Como foi desenvolver as ideias do roteiro em uma realidade que passamos a encarar?
Foi entre fevereiro e março de 2020 que fizemos as viagens, antes da pandemia. Quando retornamos já começamos a fechar os roteiros de ficção e os episódios junto a todo o arco da temporada. As ideias principais dos roteiros já estavam definidas. E, realmente, algumas dessas ideias que colocamos na época pareciam muito alarmantes, ou muito ficcionais com aquela coisa de exagero da ficção. Mas no início de 2020, elas já estavam definidas. Os roteiros ficcionais já tinham sido finalizados. Pelo menos o primeiro tratamento deles. E a ideia era filmarmos em 2020 a parte documental e a parte ficcional. Só que aí veio a pandemia e o projeto precisou ser parado e as filmagens não vieram. Isso foi curioso porque, em 2020, vivenciamos as inusitadas coisas da realidade que nós, de alguma forma, já tínhamos previsto ou antecipado na própria ficção. Na ficção, a gente imaginou um mundo onde as pessoas precisariam caminhar usando máscaras o tempo inteiro ou com o rosto coberto de alguma forma. Mas isso pensando muito na possibilidade de tempestade de areia, qualidade do ar. E isso era impensável para a gente. Todo mundo andando com máscara. Mas aí estoura a pandemia e a gente foi forçado, a humanidade foi forçada a caminhar com máscaras por conta de uma doença que, até então, ninguém sabia direito como ela se proliferava com tanta rapidez. Sabia-se que era através do contágio pelas vias aéreas. E ainda em 2020 tivemos uma tempestade de areia no Brasil, o que era uma coisa que a gente imaginava que só seria possível em um futuro muito distante, tivemos contato com essa realidade muito antes do que a gente pensava. Então, isso só reforçava para a gente, enquanto roteiristas, enquanto idealizadores do projeto, o quanto o que estávamos desenhando ali naquele universo de fato é urgente, é de fato emergencial que a gente retorne os olhos para essa realidade e uma forma de repensar a forma como a gente lida enquanto humanidade com a própria natureza.
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– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.