Cinema: “Ruído Branco”, de Noah Baumbach, é interessante, exorbitante e entediante… e merece ser visto de maneira despreocupada

texto de Marcelo Costa

Jack Gladney é um professor estrela (surrealidade já na primeira linha) da College-on-the-Hill, em Ohio. Sua especialidade são os “Estudos de Hitler”, curso que ele mesmo criou, e o fato de um de seus filhos se chamar Heinrich – Heinrich Luitpold Himmler foi um dos principais líderes do Partido Nazista, nomeado comandante do Exército de Reserva e General por Adolf Hitler – provavelmente não passaria batido por carniceiros culturais do novo século, viciados em guerrilha virtual e cancelamento, mas Gladney “vive” nos anos 80, uma época, nas palavras de Jerry Senfield, sem limites, afinal, crianças não apenas não usavam cintos de segurança como também eram transportadas na caçamba dos carros (ou na área aberta dos porta-malas) sentindo o vento nos cabelos – e, bem, grande parte delas se transformou em um adulto supercuidadoso com os próprios filhos (quem sabe, até o Heinrich filho de Gladney).

Gladney é um dos personagens de “White Noise”, clássico romance pós-moderno de Don DeLillo lançado em 1985 (e editado no Brasil como “Ruido Branco” pela primeira vez em 1987), vencedor do National Book Award for Fiction e presente numa lista da revista Time dos melhores romances em língua inglesa escritos entre 1923 e 2005. Livro histórico da literatura made in USA, “Ruido Branco” nunca tinha ganhado uma versão cinematográfica porque 10 entre 10 pessoas acreditavam que a história era “infilmável”, mas bastava encontrar um doido para tocar o projeto em frente (ok, na verdade alguns doidos), e Noah Baumbach assumiu o risco – mais ou menos, afinal, após dois projetos elogiados para a Netflix – os excelentes “Os Meyerowitz”, de 2017, e “História de um Casamento”, de 2019 –, entregar um terceiro sem compromisso com bilheteria alivia o peso de, se tudo der errado, ter que hipotecar a vida para pagar os prejuízos de um fracasso.

A problemática da adaptação é bastante correlacionada com a verborragia clássica do texto de DeLillo, em que cada personagem é um grande filósofo conversando animadamente em alto tom de voz consigo mesmo sobre as coisas mais importantes da natureza humana, e as mais mundanas e tacanhas também, sem nenhuma menção de equilíbrio de importância, uma farra deliciosa que vertida em palavras soa absolutamente vibrante devido à ironia exacerbada (Oscar Wilde, o rei do cinismo, talvez ficasse chocado) que aquela década new wave merecia (na expectativa de uma Guerra Nuclear e com um ator de Hollywood se elegendo presidente dos Estados Unidos da América), e que tanto antecipava Chernobyl quanto soa, 38 anos depois, um discurso atualíssimo sobre o medo da morte após uma pandemia global – Noah não escolheu esse desafio a toa, pode ter certeza.

A questão central, então, seria como transpor esse universo surrealisticamente dondelillesco para o mundo da realidade dos 24 quadros por segundo sem soar excessivamente caricato e/ou vazio, e Noah Baumbach optou pela saída mais fácil abraçando a caricatura de uma maneira tão intensa quanto esvaziante, o que não faz de “Ruido Branco”, o filme, um completo desperdício, mas o coloca na estante das obras a serem vistas com curiosidade desleixada – se você levar muito a sério talvez largue a trama antes da primeira meia hora… – para que ele seja deliciado a contento. Em sua fábula caricatural pretensamente derivativa, Baumbach clona as cores fortes de Wes Anderson, o cinema pop de Steven Spielberg, o mundo dos sonhos de David Lynch, a adaptação pynchontesca de PTA, o atropelo de conversas de Woody Allen (que, tudo bem, Noah já incorporou como seu faz tempo) e o pós-surrealismo de Spike Jonze (e Charlie Kaufman.. e Cameron Diaz) buscando soar o mais fiel possível ao livro – e, em algumas passagens, indigesto, delirante e confuso ao espectador (cuidado com as bad trips se for ver chapado).

A história, dividida em três atos, flagra o professor Jack Gladney (Adam Driver excelente), sua esposa Babette (uma espirituosa Greta Gerwig) e seus quatro filhos (três de outros casamentos) vivendo em uma bucólica casa estadunidense dos anos 80, com a televisão ligada o tempo todo (entre séries e programas de acidentes aéreos) e discussões paródicas se atropelando acerca de tudo e nada. O cinismo escorre da tela com críticas vorazes ao hiper capitalismo (“Você quer morrer por excesso de açúcar e corantes ou por algo que causou câncer em ratos no laboratório?”, pergunta a enteada após Babette pegar um tablete de chiclete no supermercado, o reino da ilusão, e ela responde: “Ou eu masco chiclete com açucar e corantes, ou sem açucar que faz mal aos ratos. Ou fumo”. A filha menor provoca: “Pare de mascar. Todos fazemos o que queremos, não? Já pensou nisso?”. Já pensou, leitor?). Jack é um pai fofo que, no colégio, se transforma em um professor magnético atraindo para si os mesmos holofotes que seu objeto de estudo atraia – um outro professor, Murray Siskind (Don Cheadle contagiante), quer criar um curso sobre Elvis Presley, e uma aula simultânea de Gladney e Siskind falando ao mesmo tempo sobre o culto a personalidade de Hitler e Elvis é um dos momentos mais impactantes da história.

No segundo ato, um acidente com material tóxico libera uma imensa nuvem escura no ar, e o ambiente da casa será trocado pela insegurança da vida em sociedade, com congestionamentos, acidentes, conversas sobre a vida alheia e tudo mais encharcado com momentos nonsense – a fuga de um acampamento, no melhor estilo “perseguição” dos filmes de ação, é hilária. Para o ato final, tanto Gladney e a esposa confrontam o medo da morte, a confusão do relacionamento, a oferta de novas drogas, a violência do armamentismo, a negação da fé e, enquanto DeLillo afunda seus personagens em suas neuroses até a última linha do livro, Baumbach opta por um fechamento falsamente feliz e hollywoodiano – ao som da primeira música do LCD Soundsystem em quatro anos (ainda que seja imperdoável a falta de “Lost in The Supermarket”, do Clash, na trilha, por mais óbvio que soasse). Ok, se o filme já não dependia de bilheteria, o ego não ia recusar a tentativa de brilhar na premiação da Academia, né mesmo (ainda que não vá).

A sensação após 2 horas e 16 minutos de projeção vista do sofá (no cinema, provavelmente, seria outra coisa) é a de que, realmente, “White Noise” era mesmo “infilmável”, e ainda assim Noah Baumbach conseguiu tatear a ironia descarada presente no livro com certo tom poético – mesmo que dirigindo com a pata de um elefante (haveria outra maneira? Eis a questão). Ao mesmo tempo interessante, exorbitante e entediante, “Ruído Branco” é um típico filme que você pode amar e seu amor odiar (e vice-versa), o que dirá, provavelmente, mais sobre vocês mesmos do que sobre o filme. Uma pena que Noah tenha deixado de fora do roteiro uma das passagens históricas do livro – tão… Instagram: a do celeiro mais fotografado da América, que critica a mercantilização da realidade, afinal não se olha o celeiro pelo que é, mas como ele foi fotografado (sente certo deja-vu, caro leitor?) – adaptando o tema ao próprio filme: esqueça as alegorias e concentre-se no que ele é, um retrato do mal-estar que tudo que criamos causa em nós mesmos, de redes sociais a doenças, de políticos de extrema direita a gente que não deveria ser famosa, mas é, de violência e obstáculos e comida ultraprocessada a, paradoxalmente, o medo da morte. Como diria o sábio e cancelado Woody Allen, de maneira explicita, “a vida é cheia de solidão, miséria, sofrimento e tristeza, e acaba rápido demais”. Nos cada vez mais distantes anos 80, no século passado, tudo que precisávamos, fora alimento e amor, poderia ser encontrado em um jornaleco na fila do supermercado. Hoje está tudo aqui… na internet. E é tudo tão ruído branco… tão black mirror… tão… Taylor Swift (!?). Mudou o mundo? Mudamos nós? Realmente mudamos?

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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