Entrevista: The Courettes e a combinação rock, estrada, família e pandemia

por João Pedro Ramos

Desde que Flávia Couri e seu marido e dinamarquês Martin Couri se mudaram de mala e cuia para a Dinamarca, o pedal de distorção sempre esteve bem pisado com o seu projeto, The Courettes, que já conta com dois álbuns – “Here Are The Courettes” (2015) e “We Are The Courettes” (2018) -, um EP (“Too Late To Say I´m Sorry”, 2019) e um disco ao vivo em estúdio (todo material está disponível no Bandcamp).

O duo de guitarra e bateria banhado em fuzz lançou recentemente “Hop The Twig”, segundo single de seu novo disco, “Back In Mono” (2021), a ser lançado em outubro. A música ganhou também um clipe, dirigido por Morten Madsen, que traz toda a estética retrô e esfuziante da família Couri (que agora também conta com o pequeno Lennon, filho da dupla).

Conversei um pouco com Flávia sobre o single (“Que lançamos pela gravadora inglesa Damaged Goods Records – a mesma do Buzzcocks, Revillos, Captain Sensible, Billy Childish e outros heróis do punk rock”, lista Flávia), o novo álbum, a trajetória dos Courettes, a cena rock dinamarquesa, a infinita pandemia e os desafios de ter filhos no mundo da música:

Bom, primeiro, vamos falar do petardo novo, “Hop The Twig”! Me conta mais sobre essa música.
“Hop The Twig” é o segundo single que lançamos pela gravadora inglesa Damaged Goods Records – a mesma dos Buzzcocks, Revillos, Captain Sensible, Billy Childish e outros heróis do punk rock – depois de “Want You! Like a Cigarette”, de 2020. Os singles são um adiantamento do nosso terceiro álbum, “Back in Mono”, que vai ser lançado em outubro. É uma canção cheia de reverb e com influência da surf music dos anos 60. A gente brinca que é como se Duane Eddy e Link Wray convidassem os Ramones e as Ronettes pra uma festa louca na câmara de eco do Gold Star Studios! “Hop The Twig” é uma gíria muito antiga em inglês para morrer. Quando eu encontrei por acaso essa expressão, achei que, além de soar muito bem, era um título apropriado pros tempos que estamos vivendo. O tema da letra é um pouco sombrio, mas a canção é mais uma celebração de que estamos vivos – pelo menos por enquanto.

Como foi a gravação do clipe?
O clipe foi gravado, dirigido e editado por um homem só, o Morten Madsen, que dirigiu todos os nossos outros clipes. O Morten é muito talentoso e fácil de trabalhar, e gravamos tudo em um dia. Uma equipe enxuta (só a banda e o Morten no estúdio) é perfeita durante a pandemia, quando a aglomeração máxima permitida aqui na Dinamarca era de 5 pessoas, no momento que a gente gravou. O vídeo usa bastante um jogo de sombras e contraste, para expressar o texto e o período que estamos vivendo.

Como está sendo a produção durante a pandemia? Vocês sendo um casal e estando sempre juntos, devem voar ideias a todo momento, né?
A produção continua e vamos em frente. Mas é impossível não ser afetado pela pandemia, é um período muito triste com muita gente morrendo e muita gente passando dificuldades sem poder trabalhar. O meio musical foi muito afetado, são tempos muito incertos mesmo pra gente que está acostumado com a incerteza. Pra gente o ano de 2020 parecia que seria o nosso melhor em termos de agenda cheia, novas parcerias e lançamentos, e estávamos numa turnê na França em março quando tudo começou. Foi muito surreal, pegamos a estrada e estava tudo normal, dois dias depois a Dinamarca entrou em lockdown total e apesar de muita incerteza no território francês, conseguimos terminar a turnê. À meia-noite no mesmo dia do nosso último show, a França também entrou em lockdown. Foi uma noite intensa, o público realmente curtiu como se não houvesse amanhã, ninguém sabia o que ia acontecer no dia seguinte. No caminho de volta havia boatos que as fronteiras estavam fechadas, que havia médicos vestidos igual astronautas medindo a temperatura das pessoas, ninguém tinha informação direito. Chegamos em casa super doentes e não havia testes, ficamos em isolamento por 3 semanas passando muito mal e sem saber o que tínhamos. Então cada show nosso foi sendo cancelado, data após data. Mantivemos o lançamento de “Want You! Like a Cigarette” para abril e tivemos a sorte de fazer alguns alguns shows ao ar livre (com medidas de segurança) no verão dinamarquês e uma turnê na Alemanha em outubro. De novo, fizemos o último show num sábado e na segunda-feira a Alemanha entrou no segundo lockdown. Estamos agora desde novembro sem fazer show, o que afeta drasticamente nossa economia e as nossas cabeças, a gente ama estar na estrada e o sustento da nossa família vem basicamente dos shows. Mas sim, rolam ideias novas toda hora, e apesar de toda a barra a gente escreveu muitas músicas nesse período. Além de “Hop The Twig” e do novo álbum, vamos lançar mais dois singles esse ano, além do relançamento dos nossos dois primeiros álbums – “Here Are The Courettes” e “We Are The Courettes” – pela Damaged Goods, com capa nova e em vinil colorido, muitas novidades. Também criamos novos projetos, como terminar de construir o StarrSound Studio, nosso estúdio onde gravamos “Want You! Like a Cigarette”, “Hop The Twig” e “Back in Mono”.

O som do Courettes é ímpar, puxando influências de muitos lugares aí. Quais artistas vocês citariam como grandes ídolos de vocês?
Nossos maiores ídolos são John Lennon, Little Richard, Phil Spector, os girl groups dos anos 60, The Sonics, Chuck Berry, Kinks, Stones, Duane Eddy, Elvis, Poison Ivy e os grupos da Motown nos anos 60.

O formato duo se popularizou muito desde os White Stripes mostrando que não se precisa de três pra fazer um baita som. Como é este formato para vocês?
Na real a gente nunca planejou fazer um duo, tudo foi acontecendo naturalmente. O formato de duo é muito prático na parte da logística (um quarto de hotel, duas passagens de avião), mas musicalmente é um desafio enorme fazer um som “cheio” e prender o interesse do público durante um show inteiro, com apenas duas pessoas. A gente faz muita coisa pra encher o som: o Martin usa muita percussão junto com a bateria, o bumbo e o surdo são sempre bem altos na mix ao vivo e eu uso um fuzz que tem um som bem gordo e que substitui o baixo em algumas músicas. No nosso próximo álbum, desenvolvendo uma tendência que já vinha rolando no segundo álbum, a gente se permitiu usar mais overdubs no estúdio, ao contrário do primeiro disco que foi gravado quase todo ao vivo, cru e direto. Mas a gente sempre tem a preocupação que esses overdubs não se tornem uma parte indispensável da música, porque queremos poder tocar as canções ao vivo só com bateria, guitarra e vozes. As músicas têm que funcionar nesse formato. Alguns duos usam banda de apoio quando tocam ao vivo, mas a gente acha importante conseguir tocar as músicas só nós dois. Às vezes cansa a referência com o White Stripes que ouvimos por aí. Ninguém diz que se o formato de uma banda é trio, é porque os integrantes são fãs do Cream, do Jam ou do Jimi Hendrix Experience. Mas no caso do duo, como foram os White Stripes que popularizaram o formato, parece ser inevitável essa comparação. Apesar de gostarmos da banda, não acho que eles são de forma alguma uma influência no nosso som.

Vocês acabaram de lançar um single e ano passado também tivemos um. O formato álbum ainda é algo que vocês curtem? Vale a pena hoje em dia?
Sim, a gente adora álbuns! Nosso terceiro álbum chama-se “Back in Mono”, já está sendo prensado e vai ser lançado em outubro, também pela Damaged Goods Records. Na real era pro disco ter saído em 2020, foi nossa gravadora que achou melhor segurar o lançamento por causa da pandemia. O disco é todo inspirado nos girl groups dos anos 60 e no Wall of Sound do Phil Spector, então é um grande passo em termos de composição, arranjos, overdubs, gravei piano, backing vocals, várias faixas de guitarras, tem mellotron, percussão… Isso é uma das coisas que curto nos álbuns, você pode criar um conceito e escrever 12, 14 músicas e criar uma obra, não apenas uma canção. Eu sei que tem muita gente hoje em dia que prega que lançar álbuns não faz mais sentido, que o bom é ir lançando cada single digitalmente. Mas o som que a gente faz não é para um público mainstream, então essas fórmulas pop não funcionam pra gente. O nosso público curte comprar vinil. Nosso primeiro disco, por exemplo, vai ser re-prensado em junho pela quinta vez. Então pra gente o formato álbum continua super relevante e ainda vale a pena sim. Curto todas as formas de ouvir música, mas os servidores de streaming que focam apenas em singles acabam deixando os artistas mais descartáveis e anônimos – sem entrar na questão da remuneração extremamente baixa. Ter muitos streams ou estar numa playlist não significa necessariamente criar uma fan base, e o público muitas vezes tem uma visão superficial do artista, não tem acesso à ficha técnica de um disco ou ouve música como pano de fundo enquanto faz outras atividades diárias. Eu curto imergir num álbum, ler as letras, ver a ficha técnica, é um outro tipo de audição, acho que você cria uma relação mais profunda com a obra. E também acho muito bacana pensar que daqui a 20 anos, 30 anos, nossa música ainda vai estar por aí, em um disco de vinil. Não em alguma “nuvem” ou perdida em algum formato digital obsoleto.

Como as coisas mudaram para vocês depois de se tornarem pais? Isso com certeza acaba impactando em toda a vida.
Mudou tudo. Eu achava que era hardcore ficar sem dormir um mês numa turnê, eu achava que sabia o que era estar cansada, o que era estar ocupada. Mas não tem nada mais hardcore do que cuidar de um bebê! Foram dez meses sem dormir direito e continuamos tocando direto, durante a gravidez e depois que o Lennon nasceu. Aliás eu fiz um show no dia seguinte que ele nasceu. Foi uma experiência incrível e foi muito importante pra mim, porque de alguma forma ainda existe, por incrível que pareça, uma certa pressão social super machista, de que uma mulher tem que abdicar da sua carreira depois que vira mãe. Eu mesma ouvi alguns comentários do tipo “engravidou? vai parar de tocar, né?”. É muito importante que as mulheres tenham a possibilidade de ser mães e ao mesmo tempo terem suas carreiras, quaisquer que sejam, sem ter gente dando opinião sobre o que é melhor pra ela, ou pra criança. É também super importante pra uma criança ver que seus pais são felizes fazendo o que gostam. Ter uma rede de apoio, como avós pra ajudar, faz, claro, uma diferença enorme. Mas a real é que não é nada fácil conciliar a vida familiar com a vida na estrada, mas a gente achou uma solução pra continuar fazendo turnês. Fazemos no máximo 5 ou 6 shows de cada vez e voltamos pra casa antes de ir pra estrada de novo. A gente fica morrendo de saudades do Lennon, então mais que isso não rola, por enquanto. Aqui na Europa as distâncias são mais curtas, então a gente consegue fazer uns 70 shows por ano mesmo sem fazer turnês longas. Até pra compor é diferente, é difícil ter tempo para aquele ócio criativo quando se tem filhos. Mas também é muito inspirador, é uma experiência maravilhosa, a maior alegria e o maior amor do mundo. Eu escrevi sobre ser mãe em “Strawberry Boy”, do nosso segundo disco, canção inspirada por e escrita pro Lennon.

Como anda a cena rocker por aí? Que bandas vocês recomendariam que a gente aqui no Brasil déssemos uma ouvida?
As bandas que mais curto aqui na Dinamarca são Powersolo, Tremolo Beer Gutt e The Blue Van. Uma banda nova dinamarquesa muito boa é o Fox Paloma, que gravou seu disco de estreia agora no StarrSound Studio. Das europeias que a gente esbarra sempre no circuito 60s / garage as minhas preferidas são o King Khan & The Shrines (banda incrível de soul), The Jackets, Oh! Gunquit, Curlee Wurlee, The Devils, Trixie and the Trainwrecks, Monsieur Paul et Les Solutions, Lord Diabolik, JC Hawkings & His Model-A Playboys e Thee Girls Friday. Aqui na Dinamarca as bandas estão otimistas em poder voltar a fazer shows em breve, as medidas restritivas estão ficando mais leves depois de 5 meses de lockdown quase total, e as casas de show devem voltar a abrir em breve, com medidas de precauções, claro. Os números de contágio estão bem baixos no momento por aqui, graças à ação rápida e eficiente do governo, ao esforço de todos e o respeito da população às restrições.

Aliás, vocês têm ouvido algo brasileiro? Como tá a relação da banda com nosso país, estando tão longe?
Quando dá saudades do Brasil eu ouço os meus clássicos, Mutantes, Jovem Guarda, Júpiter Maçã, e tem muita banda brasileira boa na ativa. Curto muito o som do Boogarins, The Baggios, The Outs, Fuzzuês, Blastfemme, Beach Combers, Os Vulcânicos… The Courettes fez umas 3 mini turnês no Brasil, a última foi em 2019. Foi a última vez que fui ao Brasil e vi minha família. Tirando a música, as notícias vindas do Brasil são desoladoras, essa combinação de pandemia com um governo negacionista, anti-ciência, fascista e genocida é uma tragédia mundial. São muitas mortes que poderiam ter sido evitadas, é revoltante. Espero que essa loucura acabe logo, e que todo mundo tenha acesso à vacina em breve. Até lá, cuidem-se muito. Não vejo a hora de poder ir ao Brasil. De preferência pra celebrar o fim da pandemia e o fim desse pesadelo de governo.

– João Pedro Ramos é jornalista, redator, social media, colecionador de vinis, CDs e música em geral. E é um dos responsáveis pelo podcast Troca Fitas! Ouça aqui.

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