Entrevista: Andreas Kisser (Sepultura)

entrevista por Paulo Pontes

É inegável: o Sepultura é a maior banda de heavy metal do Brasil. E mais, é muito fácil colocá-la entre as maiores do mundo, por tudo aquilo que representou e ainda representa para a música pesada. Dúvida? Então ouça “Quadra”, 15º trabalho de inéditas da banda, lançado dia 7 de fevereiro de 2020 pela BMG, e surpreenda-se.

Repleto de elementos novos na sonoridade do grupo, mas também com as nuances presentes em seus primeiros trabalhos, “Quadra” traz um Sepultura mais solto, coeso e entrosado. Todos os integrantes mostram uma evolução incrível para uma banda com mais de 35 anos de carreira: “Estou tocando melhor do que nunca, eu me sinto melhor do que nunca como músico, como profissional”, declara o guitarrista Andreas Kisser, que nos atendeu por telefone para falar sobre o interessantíssimo conceito por trás de “Quadra” e também sobre coronavírus, política e a cultura no Brasil.

Andreas faz questão de salientar a importância de um conceito, uma mensagem para guiar o trabalho de um artista: “Se você não tem uma mensagem, você não tem arte”. E é isso que ele faz com sua banda, transmite uma mensagem clara, objetiva e que gera o questionamento: “Por que o ser humano é do jeito que é, acredita em tudo o que acredita e defende ideias que, muitas vezes, não sabe nem de onde vêm? Devemos jogar sempre com as regras que já nos são pré determinadas?”. Fala, Andreas!

A receptividade do “Quadra” foi extremamente positiva, tanto pela mídia quanto pelo público, poucos dias após o lançamento do disco. Praticamente de forma instantânea. Você se lembra de outro lançamento do Sepultura que obteve repercussão e resposta positiva assim tão rapidamente? A que você atribui isso?
Cara, não lembro, velho! É o que eu estava comentando aqui com todo mundo, que, realmente, nem com “Chaos A.D” (1993) ou “Roots” (1996) foi uma coisa tão forte, sabe? Talvez o “Chaos A.D”, porque foi um disco lançado pela Epic, Sony Music nos Estados Unidos, então foi um disco que conseguiu chegar em um público que até então a gente não tinha contato com o “Arise” (1991). Mas acho que foi a mesma coisa, porque, se você fizer um paralelo, o “Arise” colocou o Sepultura no mapa e o “Chaos A.D” veio e colocou o Sepultura no mapa realmente, como uma banda única, diferente. E eu acho que o “Machine Messiah” (2017) foi o que fez o “Quadra” (2020) acontecer, pois ele foi muito bem recebido. Fizemos quase três anos de turnê, tocamos em grandes shows, desenvolvemos as ideias, colocamos violão no palco, enfim. O “Machine Messiah” realmente abriu portas novas para o Sepultura. Então, musicalmente, muito veio do “Machine”, essa coisa de usar o thrash, essa coisa de disco em quatro partes, de usar elementos da história do Sepultura de uma maneira mais atual, mais moderna. Lógico que o conceito do “Quadra”, do número quatro, essa visão, veio um pouco depois e ajudou a gente a formatar o disco do jeito que está. Mas, realmente, o “Machine Messiah” foi o que possibilitou isso. Tanto é que repetimos produtor, o Jens Bogren (Opeth, Dimmu Borgir, Arch Enemy, entre outros), fomos pra Suécia, o mesmo estúdio, o mesmo processo, porque sabíamos que queríamos desenvolver mais do que fizemos no “Machine Messiah”.

E você acha que dá pra atribuir muito dessa receptividade à internet, à facilidade que as pessoas têm de acessar o disco?
Não, acho que não. Porque hoje tem internet, mas tem um milhão de discos saindo por dia. Todo dia tem seis, oito, dez lançamentos só no metal. Então, realmente fica muito mais confuso. É o disco mesmo, é o boca a boca. Não é questão de você colocar em um site, ou fazer um vídeo, é o cara: “oh, mano, você já escutou o disco novo do Sepultura?”. Acabou, já foi feito, entendeu? É um amigo que falou pra você, seu vizinho, seu irmão, seu tio, sei lá. O cara fala: “Puta, mano! Você ouviu o Sepultura novo? Caralho!”. Aí você vai lá e ouve. Então, acho que é realmente o disco em si e a situação, o momento, que fez a galera realmente fazer a própria propaganda do disco.

Você comentou das quatro partes; fale um pouco sobre o conceito e essa divisão do disco.
Comecei a pesquisar um objetivo, um conceito pro disco, um ano, um ano e pouco antes de irmos para o estúdio, que foi agosto do ano passado. Queria ter mais tempo. O “Machine Messiah” foi feito muito rapidamente, em pouco tempo, quatro, cinco meses a gente fez tudo. Então, eu queria ter esse espaço de escutar com mais calma, ter a certeza de que não ia ficar faltando nada. Comecei a fazer uma pesquisa e iniciei por números, numerologia, um assunto fascinante, principalmente por conta dos algoritmos, essa coisa da computação, do que você vê na internet, do tipo de propaganda, o que você compra, escolhe, enfim. Comecei aí. E, fazendo essa pesquisa, eu achei esse livro chamado “Quadrivium” (no original: “Quadrivium: The Four Classical Liberal Arts of Number, Geometry, Music, & Cosmology”), que fala das quatro artes liberais, que é a música, cosmologia, geometria e matemática. Um livro fantástico que trata desses aspectos e que todos eles têm uma coisa em comum, essa coisa do tempo, dos números, do espaço, e daí veio o conceito da quadra, esse espaço físico delimitado por linhas, onde você tem um conjunto de regras em que acontece o jogo. E a vida, né, o Brasil é uma quadra. A gente tem regras onde a gente joga o jogo da vida, de acordo com essas regras. Cresci no Brasil, de famílias europeias, tem um conjunto de regras que me foi dado através da escola, da religião, da cultura, do cinema, de livros. Se eu tivesse nascido na África do Sul teria outro conjunto de regras e estaria vendo o mundo de uma forma diferente. E ninguém está errado. O ponto é esse. Cada um é vítima daquilo a que foi exposto, através da cultura, da informação e da educação. Então a quadra vem com essa pergunta: “Por que que você acredita em tudo o que você acredita? Por que você acha que isso é a verdade absoluta, só porque você aprendeu numa certa escola ou leu num certo livro?”. É um ponto de vista, é um ponto da realidade, mas não é uma verdade absoluta. Ideologias, comunismo, capitalismo, religião, enfim, tudo conceito criado pela cabeça humana. E é um acordo entre as pessoas. O dinheiro, por exemplo, é um acordo. É preciso pelo menos duas pessoas para acreditarem, acordarem, que um pedaço de papel tem um determinado valor. O dinheiro nada mais é que isso, as pessoas acreditam em um conceito. Tanto é que estão falando agora que não pode usar dinheiro em papel. Então “Quadra” fala disso: “Por que você acredita no que você acredita?”. Não é uma pergunta que você faz para o seu vizinho, para o seu pai, é pra você mesmo: “Por que que eu sou assim? Por que que eu acredito nisso? Por que que uma coisa me irrita? Por que eu odeio certas coisas?” Você não sabe nem de onde vem isso. “Ah, odeio o comunismo!”. O que que é isso? “Ah, odeio o capitalismo! Odeio não sei o que!”. Acho que 80, 90% da informação, de conceitos que temos na nossa cabeça foram implantados através da educação. Então, de experiência própria, de botar o pé na água e sentir a água, ou o sol atingir a sua pele e você falar: “é quente”, você não tem um livro ou uma igreja pra falar: “Ó, o sol é quente”, não precisa disso, porque é uma experiência própria. Um toque da realidade. O disco “Quadra” fala sobre isso e sobre esse questionamento: “Por que você é desse jeito e por que você defende um monte de ideia que você não sabe nem de onde veio?”.

No caso do Sepultura, o conceito do disco vem sempre antes das músicas, das partes instrumentais?
Não só no Sepultura como em qualquer arte. Se você não tem um conceito, não tem nada. Vai ter só um monte de riff. Por exemplo, um cara quando vai pintar um quadro, ele vai colocar o quê? só um monte de cor ali? Até pode ser, mas esse é um conceito também. Vou ter o conceito de não ter conceito. Jogar um monte de cor no quadro e ver o que acontece. A partir daí eu vou criar um conceito, uma expressão, uma consequência. Mas tudo tem um conceito. se não fica um monte de riff aleatório, que não tem direção. Por que que uma música é rápida, por que ela é pesada, por que tem violão, por que o vocal é melódico? Você sempre tem um conceito. Tira a palavra “amor” dos Beatles e acabou a banda! Você tem um conceito por trás de alguma coisa, uma mensagem. Se você não tem uma mensagem, você não tem arte.

Então, a ideia de dividir o disco em quatro partes bem claras, como, por exemplo, três músicas mais thrash, três mais tribais, digamos assim, três mais técnicas e as últimas três mais melódicas, também foi pensada anteriormente, não foi uma divisão que aconteceu após as gravações?
Essa coisa da divisão já estava desde o começo. Foi a primeira vez que a gente fez um disco já sabendo a ordem. A gente já trabalhava, “ó, essa aqui é a música três do lado dois. Essa aqui é a música dois do lado um”. Desde o começo a gente sabia qual a característica de cada música. Isso ajudou muito a montar o disco dessa forma: mais thrash, depois mais percussivo, depois um pouco prog e no final, ali, a coisa mais melódica. O conceito, desde o início, já direcionou tudo.

O Sepultura tem um histórico excelente de bateristas e, assim como já vem acontecendo em toda a carreira da banda, sempre que um novo integrante entra percebemos mudanças na sonoridade, uma evolução. Isso não apenas com os bateristas, foi assim quando você entrou, quando o Derrick (Green) entrou também. Com a entrada do Eloy (Casagrande), especificamente, você acredita que a banda como um todo buscou um maior nível de evolução e possibilidades sonoras? Dá pra perceber uma pegada mais progressiva após a entrada do Eloy?
Acho que essa pegada progressiva a gente sempre teve, mano. Se você escuta o “Schizophrenia” (1987), por exemplo, é quase um álbum progressivo. A “Desperate Cry” (do “Arise”), por exemplo. Sempre gostei muito de Yes, de King Crimson, de Pink Floyd, de Genesis. Principalmente Yes. As peas de violão do “Schizophrenia”, a (faixa) “The Abyss”, a própria instrumental “Inquisition Symphony”, tem muito de Yes ali. Pode não parecer óbvio, mas tem. Coisas ali que sempre escutei e escuto até hoje. E essa possibilidade que o Eloy trouxe, de tocar do jeito que ele toca, obviamente abriu outras possibilidades. Estou tocando melhor do que nunca, eu me sinto melhor do que nunca como músico, como profissional. O Paulo (Xisto) está tocando melhor do que nunca, o Derrick está no seu melhor momento, cantando como nunca. Então nós crescemos juntos. E o Eloy cresceu com a gente também. Ele nunca tinha feito nada parecido em nenhum outro projeto ou banda que ele passou antes. Porque, você comentou de toda a entrada de membros diferentes, quem entrou nessa banda mudou a banda. É uma característica nova. Eu não entrei na banda pra copiar o Jairo (Guedes), o Derrick não entrou na banda pra copiar o Max e o Jean e o Eloy não entraram pra copiar um ao outro ou o Iggor. Eles respeitam muito, eu sempre respeitei muito e o Derrick respeita muito. A gente faz as coisas antigas e representa isso como Sepultura, mas a liberdade e viver o presente é fundamental. Não adianta a gente trabalhar uma música querendo fazer a voz do Max, porque (ele) não está lá. É patético isso. Então, quem está aqui agora? Ah, é o Derrick. Quais são suas características? Ah, são essas. Então esses são os elementos, esses são os ingredientes que vamos fazer um bolo diferente agora. E não vai ficar escravo de uma ideia, de um conceito, que não existe mais. A gente está aqui hoje por causa disso, porque a gente vive o presente, mano. É o que é hoje. A gente respeita o passado, mas estamos aqui hoje. Não adianta querer fazer o “Arise”, porque o “Arise” já foi feito. Aquilo foi feito, tem um contexto, tem a nossa idade, tudo, a política, está tudo diferente. É meio patético julgar: “Ah, por que não fazem mais aquilo?” Porque aquilo não existe mais, 1991, 1992 já passou. Eu queria ter 15 anos de novo, de vez em quando, sacou? Então é hoje. Hoje o que que a gente tem? É isso! “Vamo” em frente!

E quais foram as maiores dificuldades pra gravar o “Quadra”? Teve alguma música mais complicada no estúdio?
As dificuldades de sempre, as normais, sabe? As que fazem parte do jogo, de realmente se preparar, compor, pensar em letra, de estar pronto pra gravar um disco tão difícil de tocar. E a gente estava muito preparado. Como eu disse, o “Machine Messiah” preparou muito bem a gente pra fazer um disco como o “Quadra”. O “Machine Messiah” já foi difícil de fazer, de gravar e a gente cresceu na turnê, colocando ele no palco. A gente desenvolveu e cresceu como banda. E o “Quadra” foi consequência disso. A gente estava muito bem preparado pra isso e tudo foi positivo pra ter esse equilíbrio do bem e do mal, vamos dizer assim. Realmente, balancear tudo e fazer o que for melhor para o projeto. E realmente, trabalhamos muito unidos com o Jens, como banda pra que esse disco saísse do jeito que saiu.

E eu vi vocês falando que dessa vez não foram utilizados samplers na gravação de bateria. Qual a importância disso para você e a banda?
Isso foi uma coisa do produtor, porque ele usou demais no “Machine Messiah”. A gente nunca quer usar isso, a gente sempre quer o mais real possível. Tanto é que quando a gente vai pro estúdio, a gente quer fazer como fazemos no palco, ao vivo. Se você escutar o “Mediator” (“The Mediator Between Head and Hands Must Be the Heart”, de 2013), com o Ross Robinson (produtor), acho que nem tem samplers lá também. É outra coisa, um outro conceito. Tanto é que o Jens chegou no “Quadra” e falou: “Esse aqui estou muito mais relaxado, não vou fazer muita edição, sem samplers na bateria. Vamos começar do zero. O que a gente fez de errado no ‘Machine Messiah’ não vamos repetir”. Eu falei: “Pô, ainda bem que você ‘abrasileirou’ um pouco, saiu dessa coisa do sueco muito certinha e disciplinar”. E ele finalmente percebeu que o Sepultura não é isso. Se você escutar o “Machine Messiah” comparado com o “Quadra”, você sente que o “Quadra” é um disco muito mais solto, mais concentrado em outras coisas a não ser naquela coisa sonora. Porque é muito relativo. Em um dia você está no estúdio e tem uma relação com um som, no outro dia ele sai completamente diferente. Então você tem que dar ênfase à performance, àquilo que está acontecendo no momento. Então, o “Quadra” representa muito mais o que é o Sepultura “sonoricamente”, do que o “Machine Messiah”, e isso tem a ver com a conscientização do Jens, que realmente viu que o Sepultura não funciona bem daquela forma.

A faixa “Ali” é uma homenagem a Muhammad Ali. Como Ali se encaixa no conceito de Quadra e por que escolheram esse personagem?
Caralho, Muhammad Ali falou não pra “quadra” dele. Ele nasceu Cassius Clay… Tanto é que a música é dividida em três partes. Ela tem uma primeira parte, tem uma ponte, vai pra uma segunda parte completamente diferente, tem a mesma ponte e depois ela acaba de uma maneira diferente. Então, a primeira parte representa o Cassius Clay, o bicampeão olímpico. A segunda parte é década de 60, um negro, nos Estados Unidos, que mudou o nome e religião e falou não pra guerra do Vietnã. Ele foi forçado a seguir o conceito de uma quadra, um conjunto de regras: “Ah, você tem que defender… “, e ele: “Mano, eu não vou pra guerra”. Falou “não, não vou”. E a terceira parte é quando ele tem a doença, o Parkinson. Nessa parte a gente tem a participação do Babylons P, do Paulo Cyrino, que faz esse dub, esses sons extras, que meio que representam essa doença que vai tomando conta dele, e que no final ele tá eslá nas Olimpíadas de 1992 segurando a tocha olímpica, acendendo a pira olímpica, apesar da doença, com um olhar fixo, forte, firme. Um cara sensacional! Você vê as entrevistas, ou ouve as entrevistas de Muhammad Ali, um cara lúcido, um cara que sabia, com argumentos de respeito, sem nunca xingar ninguém, sem nunca falar palavrão, falar dos conceitos dele e questionar um monte de coisa: “Ah, por que que o preto é ruim e o branco é sempre bom?”. De criança ele já perguntava isso pra mãe dele: “Por que tudo de ruim é preto, negro, escuro?” Ele já tinha esses questionamentos. E foi um gênio. É um gênio. Não só no esporte, mas principalmente como cidadão, como ser humano. Questionar as regras: “Por que que eu vou brigar lá com um cara que eu nunca vi na vida? Não faz sentido nenhum isso”. Ele é um cara que representa essa quebra da quadra, das leis, do que é certo e o que é errado, de como a gente é obrigado a fazer coisas que não têm nenhum sentido. Então o Muhammad Ali representa isso, o questionamento, o porquê das coisas.

Você comentou do Paulo Cyrino, do Babylons P, como rolou a participação dele fazendo o Dubstep na música? Você já conhecia o trabalho dele?
Conhecia através de amigos. Já tinha passado alguns riffs que ele usou em umas músicas do próprio projeto dele. Pintou essa oportunidade nessa faixa e chamei-o pra fazer. A gente nunca tinha trabalhado com um artista desse estilo, de dub, foi a primeira vez que fizemos algo parecido com o que ele faz. E deu muito certo, cara! Tem tudo a ver com o que a faixa fala e sonoricamente também foi fantástico.

Outra coisa que vocês fizeram pela primeira vez foi colocar a participação de uma mulher no vocal, a Emmily Barreto, do Far From Alaska, participa do disco na faixa “Fear; Pain; Chaos; Suffering”. E você a conheceu no programa Rock Estúdio, do Jimmy e do China. E como rolou o convite depois? A música já foi feita pensando na participação da Emmily? Como foi esse processo?
Foi meio que no período da finalização da demo, e tinha essa música, estava meio no ar ainda, a gente ia trabalhar ela mais no estúdio, principalmente a parte vocal, e pintou essa oportunidade. Foi o próprio China que falou: “Ó, olha a Emmily aí, por que vocês não fazem um lance junto algum dia?”. E eu falei, “Pode ser hoje” (risos). Eu a chamei, e ela curtiu pra caralho. Mostrei a música, enfim, ela fez um trabalho fantástico. Uma artista muito única, uma expressão foda! E deu muito certo. Fiquei muito feliz de ter essa oportunidade de fazer junto com ela. E a música, porra, tem sido bem comentada. A galera realmente está escutando o disco inteiro, todas as nuances. E acho que é um grande fechamento, que deixa portas abertas para o futuro do Sepultura, de ideias, conceitos e elementos para um próximo disco.

Então não foi uma faixa feita pensando na participação da Emmily?
Não. Mas eu tenho que dizer que a partir do momento que ela colocou o voz, a música se achou. A gente organizou a música de uma maneira completamente diferente quando a voz dela fez sentido na música. Até jogamos alguns riffs fora e montamos a música com a direção da voz que ela colocou e achamos a música.

Vocês lançaram o clipe de “Means to an End”, com produção de Otavio Juliano e Luciana Ferraz, gravado em São Paulo e Jundiaí. Como rolou a produção do clipe? A banda deu as ideias, foi um trabalho conjunto?
Claro, com certeza! É uma conversa igual como fazemos com o produtor. Quando o diretor entra ele é o quinto membro da banda. Obviamente que o conceito do disco é importante. Acho que na “Means to an End” a gente mostrou um pouco de tudo que tem no disco. O conceito da morte, a moeda, Judas, o quanto é suficiente?, o cara vai lá guardar e de tanto dinheiro que ele tem, foi sufocado pela própria grana, enfim, limites, um monte de coisas que a gente fala no disco. E o Otávio trouxe essa referência do Ingmar Bergman, do “O Sétimo Selo” (1959), esse jogo de xadrez com a morte e toda aquela sequência fantástica. Foi muito inspirado nisso também, o conceito do disco e essa inspiração cinematográfica. O lance do elevador, do “Advogado do Diabo” (1998). Tem algumas referências do cinema, também, junto com essa coisa do conceito do disco, obviamente.

E no clipe aparece bastante a moeda que está na capa de Quadra, também. Qual é o conceito por trás da capa e por que a moeda?
Foi difícil encontrar um ícone que pudesse representar um ponto do conceito que a gente está falando. Chegamos à conclusão do dinheiro. A primeira regra fundamental de sobrevivência nesse mundo. Sem dinheiro você não nasce e não morre, você não vive, não paga casa, não paga comida, não paga um visto, não paga um passaporte, não se movimenta, não faz nada sem dinheiro. E é uma coisa completamente ilusória, uma ilusão que as pessoas acreditam e colocam toda a energia em uma coisa que não existe. A moeda representa isso, esse primeiro ponto de escravidão nosso, desde que a gente nasce até a gente morrer. E na moeda tem lá, como a gente chama, o senador, que é a caveira com a coroa de louros, que representa um conjunto de regras, de leis, o que é certo, o que é errado, quem vai pra cadeia, quem não vai, qual é o limite de cada um, enfim, e o mapa mundi, né, meio que dividem as pessoas por raça, por crença, por credo, um monte de coisa, também, conceitos completamente ilusórios, criados, imaginários. E as pessoas se matam por causa disso, por coisas que realmente são ilusões. A gente mexe nisso, nesses conceitos.

Falando especificamente de uma faixa, a “Raging Void”, muitas pessoas têm comentado sobre o Mastodon ao ouvir essa música, que é excelente, por sinal. Você busca inspiração nessas bandas mais contemporâneas, como é o caso da citada? De onde surgiu a inspiração para essa faixa?
Não, não busco, mas conheço. Escuto muito pouca música. Não sou um cara que fica com o headphone toda hora, no avião ou em qualquer lugar. Escuto o Spotify de consulta, quando tenho que tocar algum cover, vou lá e escuto pra tirar a música. Gosto mais de passar tempo fazendo música, estudando. Estudo muito violão, gosto de ler também, pegar influência musical fora da música, num livro, imaginar uma situação como uma trilha sonora de uma coisa muito única, muito sua. Cada um tem uma imaginação. A gente pode ler o mesmo livro e ter possibilidades e situações completamente diferentes. Acho isso muito mais criativo e instigante do que fazer uma música tipo Slayer, tipo U2 ou tipo seja lá quem for, entendeu? Que também é válido. Você nunca vai fazer igual, mas o ponto de partida é sempre importante. E isso já é um conceito. Se você não tem esse conceito, não vai fazer uma coisa que tem uma referência no seu parceiro. Você convence muito as pessoas pelas referências. “Ó, isso aqui parece Rage Against the Machine”, o cara fala, “Ah, do caralho! Então ‘vamo’ em frente”. Você fala: “Isso aqui parece Luan Santana”, “Puta, meu, acho que não cabe no Sepultura”. Então, é sempre uma referência, é sempre um conceito. É uma maneira de comunicação que temos em usar referências. Acho que na música, eu tento tirar o máximo dessa referência musical e buscar essa referência musical onde não tem música.

A banda fechou contrato com a BMG. Fale um pouco da importância desse contrato para a banda e para o metal nacional como um todo.
Puta contrato! BMG aqui, Brasil, América do Sul fazendo um trabalho maravilhoso, com uma intenção e atitude que estavam faltando no mercado. Estou muito feliz de estar nessa casa, eles estão fazendo um trabalho sensacional não só aqui no Brasil, mas na América Latina inteira. Eu já fui pro México algumas semanas atrás pra fazer promoção só por causa do “Quadra”, através da BMG. Aqui no Brasil, também, fazendo um trabalho sensacional. Lógico que a gente está passando por tudo isso, esse lance do coronavírus, tudo muito parado, mas muito feliz com essa parceria. Vai ser sensacional!

Eu ia até te perguntar sobre essa questão do coronavírus, porque, infelizmente, a pandemia acabou inviabilizando a atual turnê que vocês fariam pelos Estados Unidos. Essa pandemia acabou pegando todos de surpresa. O primeiro show da turnê seria já no dia 18, correto? E ter que cancelar assim, em cima da hora, é complicado, pois toda uma logística já havia sido planejada.
A gente ia viajar hoje à noite (a entrevista foi realizada segunda-feira, 16/03), quarta-feira seria o primeiro show. Mas não é uma decisão que a gente quis tomar, não teve escolha. A gente depende de avião, aeroporto, tem um cara que estava vindo da Hungria pra fazer o som, e ele já estava proibido de entrar nos Estados Unidos, pelo menos por 30 dias. E a nossa tour não é a única, aliás, todas as turnês foram canceladas ou adiadas. Desde Pearl Jam até uma banda de hardcore. E tem que ser feito isso mesmo, porque, infelizmente, é uma situação que pode fugir do controle das pessoas, como na Itália, uma situação de emergência absurda. E o Brasil está indo nesse caminho (da Itália). Infelizmente a gente tem aqui o que a gente tem: nossos líderes, se é que pode chamar esse tipo de gente que está no governo de líder. Só criando confusão, criando desinformação, numa arrogância absurda. E é um momento que a gente precisa de educação de base, no sentido de saber se relacionar e se comunicar com as pessoas. Porque um presidente, ele é um presidente de todos, não é presidente de uma comunidade ideológica. É um presidente de todos, do ancião, dos homossexuais, dos negros, dos brancos, de todos. Então a gente precisa botar os pés no chão. A turnê vai dar prejuízo? Sim! Mas se tivesse ido ia dar muito mais prejuízo. A gente ia estar preso em um país sem poder voltar para o nosso país, ia estar em um monte de outras situações e, consequentemente, ia gastar muito mais que isso. Sem contar a segurança da própria banda, do crew e do público em geral. Então, é outro esquema, um outro mundo que a gente está vivendo hoje. E as consequências, sabe lá quais vão ser daqui pra frente, principalmente pro nosso business no entretenimento, da música, do teatro, do cinema, que depende muito de viagem, de locação, de aeroporto, de tudo isso. Enfim, vamos ver o que vai acontecer. É só falar pra população cair na real: fica em casa, dá um tempo. Pra que correr? Vamos parar um pouco.

No ano passado o Sepultura fez muitos shows pelo Brasil. Então, até por conta do coronavírus, fica uma incógnita aqui para shows da banda? E também a turnê pelos festivais europeus.
Independente do coronavírus, a gente já não ia tocar no Brasil esse ano, justamente pelo o que você falou, a gente tocou muito no Brasil nesses últimos três anos, desde a celebração dos 30 anos. A intenção era, realmente, fazer o Brasil mais para o final do ano ou talvez só em 2021. Mas, como eu disse, as coisas mudaram drasticamente, então a gente vai ver o que vai acontecer daqui pra frente. Mesmo nos festivais da Europa, vamos ver o que vai acontecer. Tem alguns meses aí até lá, junho, julho, esperamos que a coisa possa estar um pouco mais controlada e que a vida possa voltar ao normal.

Tirando a crise mundial na saúde devido ao coronavírus, a gente vem sofrendo uma crise com relação à cultura no nosso país, não é de hoje, mas vivemos uma grande crise no atual governo. Você sente isso?
Independente do governo, a cultura brasileira sempre viveu em crise. O Sepultura nunca teve nada do governo, de ajuda pra trazer equipamento, ou algum suporte pra fazer uma turnê, nada! Zero! Pelo contrário. Sempre, o heavy metal, independente da ideologia de esquerda ou direita, sempre foi visto com muito preconceito. As pessoas não entendem o heavy metal, elas têm medo de umas coisas que elas não entendem. Fobia daquilo que não sabem. O heavy metal é um estilo pacífico, é o estilo mais popular do mundo, um estilo de família, um estilo onde o fã gosta de comprar o produto oficial, ele não compra pirata. Ele mantém a cena metal forte por isso, o dinheiro vai pra banda, vai pra gravadora, vai pro book manager, vai para os empresários, vai pra quem trabalha no processo. E o fã ganha com isso, porque o sistema funciona dessa forma. O heavy metal aqui no Brasil sempre sofreu preconceito. Você vê na cultura, a música brasileira é o quê? “Capoeira, samba e mulata”. Não é só isso. O Brasil tem reggae fantástico, o Brasil tem blues fantástico, o Brasil tem heavy metal fantástico, Brasil tem o pop, tem o dub. Mano, olha esses brasileiros que estão fazendo um monte de estilo de música e não são reconhecidos pela cultura brasileira. E não é de hoje, estou falando de sempre, desde que o Sepultura começou, em 1984, ou até antes. Sempre foi assim. O Brasil teve passeata contra a guitarra elétrica, em 1967, pra você ver o nível de ideologia e conceitos de atraso cultural que esse país passa desde sempre. E a gente só tá vivendo uma consequência dessa estupidez do brasileiro nesse aspecto. Hoje a gente tem o que a gente tem por isso. Botaram idiota atrás de idiota no governo. A distribuição de ministérios sempre foi uma palhaçada política, partidária, nunca técnica. Nunca de acordo com o que o Brasil precisa. Agora que está todo mundo reclamando? Sempre foi uma bosta! Sempre! A política é uma merda, um circo, e a gente está vivendo esse circo ainda hoje. O heavy metal sobrevive porque é igual um atleta que sai da favela e vai ganhar medalha de ouro, daí, de repente, ele vira herói, mas ele sempre foi um herói. Sem apoio, sem educação, nada, ele consegue fazer as coisas, porque o brasileiro é foda. Tem brasileiro na Nasa, tem brasileiro nas mais altas partes da sociedade mundial, só não tem apoio no próprio país. E a gente está passando agora uma outra guerra ideológica imbecil, que só tá atrasando o país de uma forma absurda. Retrocesso absurdo. Mas é aquela história: o Brasil nunca foi um exemplo de cultura, porque nunca respeitou a própria cultura.

Voltando ao “Quadra”, você acredita que seja o disco mais ambicioso, variado e complexo da carreira do Sepultura?
Sim! (risos)

Por quê?
Ah, só escutar, né? Acho que são as características. Acho que você mesmo tá afirmando isso por aquilo que você ouviu, não só do disco em si, mas das pessoas. Acho que é isso, fala por si.

Quer deixar algum recado final?
Eu queria deixar um recado de conscientização e responsabilidade. Pensar no outro, pelo menos uma vez. Fica em casa, lava as mãos, faça as coisas estritamente necessárias. Respeite o próximo. Respeite o idoso, o seu vizinho, o cara que trabalha com você. Já que o governo, ninguém dá direção nessa porra desse país, seja um cidadão, seja um herói da olimpíada, por exemplo, fazendo o que você precisa fazer para o país. E espero que tudo volte o mais rápido possível e que a gente possa colocar o “Quadra” na estrada, porque a ansiedade só vai crescer, com certeza!

– Paulo Pontes é colaborador do Whiplash, assina a Kontratak Kultural e escreve de rock, hard rock e metal no Scream & Yell. É autor do livro “A Arte de Narrar Vidas: histórias além dos biografados“. A foto que abre o texto é de Marcos Hermes / Divulgação

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