Entrevista: Carlos Ruas

por Leonardo Vinhas

Deus criou o mundo em seis dias, e no sétimo descansou. Carlos Ruas criou Deus, e depois disso ficou difícil descansar. Esse ilustrador de 27 anos, residente em Niterói (RJ), vem trabalhando constantemente para fazer com que sua tira em quadrinhos “Um Sábado Qualquer” (http://www.umsabadoqualquer.com/) renda mais frutos que qualquer árvore das parábolas de Jesus. Seu blog tem uma média de 45 mil acessos diários: são pessoas ávidas por saber mais sobre Deus, o capeta Luciraldo (Luci, por vergonha do nome), Adão, Eva, Caim, e todo um panteão de deuses que se reúnem em um bar. E não é raro ver essa turma interagindo com Friederich Nietzche, Oscar Niemeyer, Charles Darwin, Chico Xavier, Vinicius de Moraes e muitos outros.

Manter os deuses vivos não é fácil: além do trabalho criativo, Ruas administra a marca que criou, o que envolve o licenciamento das tiras, as plataformas online e uma loja na qual você pode comprar seu Deus de pelúcia, camisetas do Senhor que não vão agradar à maioria dos evangélicos, agendas, cadernos e muitas outras coisas. Capitalismo selvagem? Não, apenas vontade de viver do que se ama, e entender que para fazer isso é preciso pensar administrativamente. Tanto que não é raro vê-lo como personagem de pautas de empreendedorismo.

Sucesso na internet, Ruas também ganhou um bom mercado no impresso. Publicou dois livros, “Um Sábado Qualquer” (Devir, 2011) e “O Boteco dos Deuses” (Verus Editora, 2012), e já começa a preparar o terceiro. Teve ainda o privilégio de figurar na coletânea “MSP Novos 50”, que trazia artistas brasileiros dando sua versão para personagens criados por Mauricio de Sousa (Ruas fez Mônica e Cebolinha como Adão e Eva). “Foi um baita reconhecimento. Cara, eu teria feito de graça se me pedissem!”. Por telefone, o quadrinista falou com o S&Y e contou, entre outras coisas, sobre fanáticos religiosos que anteciparam um excruciante juízo final e o que seu Deus tem a ver com meteoros na Rússia.

Pelos temas que você trabalha, dá para supor que religião e mitologia são temas dos quais você sempre gostou. Há muito conhecimento de causa ali.
É um hobby que sempre tive. Além de desenhar quadrinhos, eu gostava muito de pesquisar sobre religião, mitologia, desde criança. Gostava de ver como cada religião tem sua mitologia. Se você tentar ver os últimos 5 mil anos, vai ver o que a humanidade tentava dar sua visão para a verdade, para o que é certo e as explicações para o mundo e a vida. E isso me fascinava, ver essa coisa de que aquilo que é sagrado pra um é condenável para o outro. No hinduísmo, a vaca é um animal sagrado. Já para os brasileiros, o churrasco é sagrado (risos). E eu ficava pensando: “então, o que é certo fazer?” Sempre curti isso.

Em algum momento, você teve uma religião?
Eu tive um crescimento. Claro que nesse crescimento é importante ouvir não só um lado. Minha família nunca me influenciou. Minha mãe era espírita, meu pai um ateu militante, e eu estudei numa escola católica, de freiras, onde tinha que rezar pai nosso e cantar o Hino Nacional de manhã. Para mim foi interessante esse universo, porque fiquei mais flexível. Confesso que já tive tendência para o espiritismo e para o ateísmo, mas hoje me considero agnóstico – que é o cara mais café-com-leite (risos), o que não toma partido. O agnóstico acha que essa questão da existência vai ser resolvida depois da morte, tipo “quando morrer, descubro se tem alguma coisa”. Mas consigo ser feliz sem ter as grandes respostas que a humanidade anseia: “quem somos”, “de onde viemos” etc. Cada religião dá uma resposta, vira um bingo: “Vamos girar a roleta e… essa é a resposta” (risos). Eu não esquento a cabeça com isso.

Por lidar com temas que são delicados para muita gente, você chegou a ter problemas sérios, ou a represália ficou mais no comentário chulo de internet?
Problemas sérios não tive. Sempre tem uns comentários agressivos, mas nenhum deles abalou meu emocional ou algo do tipo. Sou bem convicto da minha intenção com o blog. Não quero ofender ninguém, não quero dizer o que é certo e o que é errado. Quero criar esse debate, até uma introdução à filosofia em algum momento. Quero colocar os deuses em um boteco, bebendo e falando bobagens, todos no mesmo patamar, na mesma mesa, conversando entre eles. Deixo isso bem claro. Não escrevo isso em nenhum momento, mas acho que quem lê, entende. Acho que até quem é religioso entende bem isso. Sei que Deus e o humor dificilmente andam de mãos dadas, mas acho que consegui dar uma nivelada. Recebo e-mails de católicos, evangélicos e ateus elogiando meu trabalho. É um humor que não é ofensivo. É light, pacífico. Mas claro que sempre tem aquela minoria, aquele 1% radical que quer explodir você. Aquele cara que seria radical em um país cristão, muçulmano, o que fosse. Radical independentemente do que crê. Essas pessoas a gente deve temer. O máximo que recebi foi e-mails com conversas bem negativas. O pior de todos foi um cara dizendo que Deus ia se divertir me torturando no Juízo Final.

Já há um tempo você vem criando meios de pedir a participação dos leitores – com desenhos, ideias de temas, valendo-se de concursos. Isso é uma interação que só é possível na internet, e ela tem um lado muito bom. Mas você não teme que isso possa criar uma sensação do leitor ser “dono” dos personagens, de eventualmente travarem seu processo criativo?
Eu não vejo problema nesse aspecto, só vejo ganho. Todo mês eu penso em um modo diferente de criar interação com meus leitores. É uma coisa que o artista virtual tem que o de impresso não tem. Antigamente o artista ficava meio no anonimato, era um cara misterioso, difícil de ser encontrado. A internet faz com que não seja mais assim. Acho, inclusive, que a interação com o leitor traz cada vez mais leitores. O cara vê que o artista do qual ele tanto gosta responde, entra em contato. Aí esse mesmo cara acaba contando para os amigos, mostrando o trabalho. Acho que interação com o leitor é tudo para um artista virtual.

Suas tiras surgiram na internet, e estão todas disponíveis para download gratuito. Mas você já tem dois livros, ambos com boa vendagem. Na sua opinião, o que leva a pessoa que já leu tudo na web querer ter o livro?
É um conjunto de coisas. Primeiro, é a interação com o leitor. Ele se sente parte da família. Ok, ele tem as tiras para baixar, mas quer ter o livro. Ele é fã, quer ter o chiclete que o artista cospe no chão (risos). Outra coisa é essa do livro, do palpável. A gente quer ter o livro para mostrar para os amigos, porque fica bonito lá na estante. E tem as pessoas que não conhecem os quadrinhos, e que entram na livraria, folheiam e gostam. Recebo e-mails de pessoas que me conhecem pelos livros, o que acho engraçado. Por causa desses três motivos, consigo retorno.

Já tem planos para um novo livro?
Ontem mesmo pensei nisso. Pô, já se passou quase um ano, está na hora de fazer um terceiro. Fui olhar as últimas tiras e acho que dá para rolar um terceiro daqui a uns três meses. Não vai ser temático como “O Boteco dos Deuses”, vai ser “Um Sábado Qualquer” de novo, possivelmente chamado de “Vol. 3”. Vai seguir muito o padrão do primeiro: seleciono as tiras que mais gostei e faço algumas coisas inéditas, possivelmente uma HQ maior, como nos dois anteriores.

De onde vem sua relação com os quadrinhos?
Fui influenciado pelo meu pai. Uma coisa que valorizo muito é que ele sempre passou algo artístico pros filhos, incentivava muito isso desde cedo: aula de violão, de teclado, curso de pintura… E eu me encontrei com desenho. Meu pai era psiquiatra, mas fazia tirinhas para um jornal da cidade onde ele morava. Ele me apresentou Asterix, que foi meu primeiro gibi. Eu li muito quadrinho por influência dele. Mas só com 23 anos que vi que eu tinha facilidade para fazer quadrinhos. Formei-me em desenho industrial e fui ser designer gráfico, fiquei dois anos trabalhando numa agência de design, mas aí vi que meu dom era fazer quadrinhos. Eu levava como um hobby, porque em um país como nosso, nem pensava em levar como profissão. Como ia viver de quadrinhos? Só quando pus na internet é que vi que as pessoas gostavam, e que eu poderia viver disso. Escolhi Deus para ser o personagem principal, e daí vieram Adão e Eva, Caim, Luci e os outros. Fiquei feliz porque saiu de primeira: foi meu primeiro quadrinho sério, e funcionou.

Você era aquele tipo de moleque que ficava desenhando nas margens dos cadernos?
Eu não prestava atenção na aula (risos). O blog “recebe visita” do Einstein, do Darwin, e agora estou estudando mais matemática, biologia, estou tendo que correr atrás do prejuízo. Mas na escola não estudava nada, ficava desenhando nas carteiras, todo dia. Cresci desenhando nas carteiras. Fazia historinha com os professores, com os colegas, fazia caricatura deles, e o pessoal gostava. Todo mundo se divertia, mas eu não via o quanto isso seria valioso para minha profissão.

Parece que, para todo quadrinista, chega uma hora em que ele se cansa dos próprios personagens. Aconteceu com o Angeli, que matou o Meiaoito e a Rê Bordosa; com o Laerte, que mudou totalmente o foco de sua carreira. Sei que é difícil visualizar isso agora, mas você sente que isso pode acontecer contigo também? Ou, como o tema de “Um Sábado Qualquer” é muito amplo e rende bastante, você sente que poderá mantê-los por toda a vida e ainda trabalhar com outras coisas?
Acho que a segunda opção. Acho que nunca vou matá-los. Acredito que sempre vou continuar com eles. Claro, chega uma hora em que você fica entediado, então o que você faz é criar vertentes. O Boteco dos Deuses é uma vertente, um lugar diferente, é uma coisa distinta que me permite abordar outros temas. Sempre vão ter notícias que podem despertar interesse, um comentário sobre as coisas que estão rolando. O que está acontecendo agora é que estou querendo ter outras ideias fora de “Um Sábado Qualquer”, trabalhar outros lugares, outros temas. Mas o USQ já me toma muito tempo. Tenho duas ideias, cadernos cheios de esboços, mas tenho que ter tempo para lançar eles. Daqui a um tempo vou dividir o blog em três: USQ, Amor… Humor, e Mundo Avesso.

Uma coisa que me parece onipresente em suas tiras é o inconformismo. Mais precisamente, inconformismo contra o pensamento preguiçoso, contra chavões – sejam eles religiosos, sociais, de relacionamento.
Adoro fazer críticas. Fui surpreendido com Chico Buarque, com o que ele fazia na época da ditadura, de criticar sem fazer isso explicitamente. Acho que a melhor maneira de criticar não é mandar para aquele lugar, é camuflar. Gosto de camuflar minhas críticas. Não gosto de certezas. Não tenho problemas com a pessoa ser religiosa. Mas quando ela tem a certeza de que a verdade dela é absoluta, isso me deixa me coçando. Essa pessoa vai ter conhecimento mínimo, vai se prender no que a religião diz pra ela, aquela coisa de que se usar saia vai pro inferno. Isso me deixa muito chateado, me deixa com vontade de criticar isso.

Em alguma medida, o Deus do Laerte te influenciou?
Não conhecia o Deus do Laerte. Sério. E isso foi muito bom, porque acabou que não me influenciou. Quem lê o Deus do Laerte e o meu, vê que são coisas completamente diferentes. Claro que vão ter coisas parecidas, porque são temas bíblicos, mas todos podem ver que são caminhos bem diferentes. Quando me falaram Deus do Laerte, comprei todos os livros e adorei. Mas não botei Buda até agora por culpa dele. Seria um ótimo personagem pro Boteco: é gordinho, é faminto. Mas eu me influenciei muito pelo Buda do Laerte. Ele fez um ótimo Buda, com aquela característica de falar aqueles contos budistas, e deus fica estressado com ele. Achei sensacional, e o meu seria assim. Então não fiz. Nunca coloquei o Buda nas tiras.

Na verdade, ele aparece numa ponta na história longa sobre a busca do Paraíso, que está no livro “O Boteco dos Deuses”…
Ah, é verdade. Foi a única vez que usei o Buda. Mas é uma ponta bem ponta (risos).

Toda vez que você mostra um personagem real, não mitológico, é alguém que já faleceu. Isso é para evitar problemas legais com quem está vivo?
Não. É coincidência. Só quando a gente morre é que valorizam a gente. Os grandes nomes do momento estão mortos, e há quanto mais tempo está morto, maior é a pica das galáxias do sujeito. Mas não teria medo de colocar quem está vivo. Já fiz tira com o Silas Malafaia, e foi a que mais se propagou pelo Facebook. Eu ia fazer do Stephen Hawking, que está meio vivo (risos), mas não fiz ainda. De qualquer forma, as pessoas mortas são mais famosas.

Fora os quadrinhos – e a própria mitologia, claro – que outras mídias te influenciam?
Humor televisivo. Pra fazer não só quadrinho, mas fazer humor, você tem que entender todo tipo de humor: o político, o nonsense, o bobinho, o do Monty Python. E você tem que compreender, ter esse feeling para o humor. Sempre fui influenciado por quem faz esse humor para a TV, acho que eles dominam muito bem o ofício. Fiz teatro por dois anos, e todos os exercícios dramáticos que eu fazia eram cômicos. O humor televisivo, o humor visual, me influenciou muito. Ainda quero fazer algo para TV, e vou atrás disso. Como roteirista e como ator.

Qual é o futuro de Deus?
Acho que nem ele sabe (risos). Cara, se eu pudesse, eu levava até outros planetas. Quero expandir o blog o máximo que puder. Vou ter as versões em inglês e espanhol ativas. Eu já tinha feito, mas não cuidei, não administrei, mas agora estou querendo colocar pessoas para cuidar deles.

E para finalizar: o que seu Deus tem a dizer sobre a sucessão papal?
Pelo meu Deus, isso (papa) nem existia. Por ele, tacava um raio. Na verdade, tacou um meteoro, mas acabou acertando na Rússia (risos). Deus não sabe o que é o papado. Nem Jesus sabe. Pegaram uma única frase da Bíblia e justificaram o papado por ela. É uma criação dos homens.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell

Leia também:
– “Astronauta – Magnetar”, de Danilo Beyruth, conquista pelo traço detalhista (aqui)
– “MSP Ouro da Casa”: personagens de Maurício de Sousa ganham releitura (aqui)
– “As 100 Primeiras e Melhores Tirinhas de Andrício de Souza”, Andrício de Souza (aqui)
– ”Habibi”, de Craig Thompson, é antes de tudo uma história de amor (aqui)
– “O Paraíso de Zahra”, de Amir & Khalil, expõe um país de tirania disfarçada (aqui)
– “Pagando por Sexo”, Chester Brown, faz retrato sensível da busca por contato físico (aqui)

3 thoughts on “Entrevista: Carlos Ruas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.