Entrevista: Stephan Pastis

por Leonardo Vinhas

Sabe a “crise dos 30”, quando você acha que jamais vai conseguir se libertar das armadilhas que você mesmo criou para si? Stephan Pastis conseguiu vencê-la de um modo que muitos invejariam: abdicou da carreira que escolheu na faculdade, e que o aborrecia, para viver integralmente de sua arte – que, ainda por cima, lhe rendeu fama (pelo menos em 13 países desse planetinha) e fortuna. Pastis, se você não sabe, é o criador da tira Pearls before Swine (“Pérolas aos Porcos”), uma obra mordaz e divertidíssima.

O cartunista, hoje com 45 anos, vinha exercendo carreira na advocacia quando, motivado pelo desconforto com a profissão e inspirado pelas palavras de um amigo que logo viria a falecer, decidiu buscar meios para publicar os personagens que vinha desenvolvendo em tiras amadoras. Um encontro em um café com Charles Schulz (criador de Peanuts, ou Turma do Minduim, ou “Snoopy”, para os “leigos”) em 1996 também teve influência em sua decisão, já que o veterano lhe deu uma visão bastante real das benesses e dificuldades da carreira de cartunista. Assim, no ano 2000, os esforços de Pastis encontraram resultado na distribuidora de quadrinhos United Features, que começou a publicar Pearls before Swine em seu site. A resposta positiva deu a Stephan os primeiros espaços em jornais e, dali em diante, a história se multiplica para o que hoje são 700 jornais publicando Pearls em 13 países diferentes, além de 14 coletâneas de tiras, várias edições especiais e calendários, e uma enorme variedade de merchandising (de pelúcias a camisetas).

Pearls before Swine, como muitas HQs, é protagonizada por seres antropomórficos. O eixo central de personagens envolve o Rato, o Porco, o Bode, “o” Zebra, o Pato Sentinela e uma infinidade de crocodilos (os nomes estão em tradução livre, já que não há versão oficial em português). Ao redor deles, coadjuvantes do reino animal aparecem com maior ou menor frequência, como Andy, o cachorro acorrentado; Snuffles, o gato que esconde armas de destruição em massa; e os leões machos que se tornam amigos do Zebra. O curioso é que todos estes seres vivem em meio aos humanos, e também junto a outros animais “não-antropomórficos” – ou seja, que não falam nem pensam. Some ao absurdo doses altas de humor negro e metalinguagem; referências à música pop, cinema e TV; e um ritmo enxuto e viciante nas tiras; embale tudo com o traço simples e carismático de Pastis e você tem uma receita de sucesso – pelo menos, uma que funciona para seu criador.

É na dose desses elementos que Pearls before Swine se destaca. Há pouca novidade na concepção da tira. Na verdade, há muitas coisas que já vimos em vários outros lugares: para ficar em um exemplo, a relação entre o Rato e o Porco, com suas personalidades contrapostas, é um elemento clássico, quase clichê, da ficção (vide o Gordo e o Magro, os filmes policias de Hollywood etc). Outras “fórmulas” podem ser identificadas lá e cá, mas a personalidade e o humor de Pastis fazem toda a diferença.

A questão musical, em si, é um caso parte. Basta ver alguns títulos de livros (“Sgt. Piggy’s Lonely Hearts Club Comic”, “50,000,000 Pearls Fans Can’t Be Wrong’, ‘The Ratvolution Will Not Be Televised”) para notar que Pastis têm ótimas referências. Mas a influência vai além, e não raro as canções pop acham seu caminho direto nas falas dos personagens, quando não são o mote exclusivo da piada. E é por aí que começamos nosso papo.

São muitas os momentos em que você inclui canções e artistas em suas tiras (há uma memorável sobre o R.E.M.). É algo que vem naturalmente, ou você senta e pensa: “eu tenho que dar um jeito de colocar essa canção do Coldplay na tira, vamos ver o que sai”.
Acho que acontece porque estou sempre ouvindo música no meu iPhone quando escrevo. Música muito alta. É como escrevo. Então acho que é natural que a música esteja em minha mente enquanto crio as tiras. Além disso, acredito que humor e música têm suas fundações no ritmo, então eles funcionam bem em conjunto.

Já que falei da tira do R.E,M., deixe-me perguntar uma coisa: você já contou que a banda gostou tanto que te pediu o original, e em troca lhe presenteou com CDs, DVDs e até uma pasta de letras usada pelo Michael Stipe em turnê. Já aconteceu algo do tipo com outros artistas que você citou em Pearls?
Já aconteceu com personalidades da televisão, políticos e outros, mas acho que a única banda foi o R.E.M. Eles foram muito legais a respeito.

Me parece que Pearls foi ficando um pouco mais sombria e pesada do que o habitual, ao menos no último ano. Parece que aquele tom mais leve foi sendo deixado de lado. O que aconteceu?
Interessante. Em que sentido você acha que elas ficaram mais sombrias ou pesadas? Eu acho que ela anda menos sombria do que nos primeiros anos.

Bem, acompanhando o que está sendo publicado nos últimos meses, parece que o Rato perdeu qualquer pudor em mostrar sua misantropia, falando o que pensa com ainda mais frequência e de forma ainda mais cruel. E apareceu até um ser humano de estimação!
Isso é que é interessante sobre Pearls… Pode ser verdade… Sou tão próximo da tira que é difícil para eu notar mudanças.

Também fica a impressão que você está cada vez menos preocupado com leitores queixosos ou moralistas (Pastis já teve que lidar com a fúria de leitores conservadores muitas vezes ao longo da carreira, e chegou a ser cancelado de alguns jornais por causa dessas queixas).
É verdade. Acho que muitas das pessoas que reclamavam sobre Pearls eram mais idosas. E acho que muitas delas faleceram. Então eu simplesmente durei mais que elas.

Ao ler as liner notes em seus livros é inevitável notar que você é muito autocrítico quanto à sua capacidade como artista, quase como se você se sentisse inseguro sobre o que faz. Esses comentários são feitos só para efeitos de humor, ou você pega tanto no seu próprio pé assim?
Sou sempre inseguro sobre tudo que faço de criativo. Acho que você tem que sê-lo. Se você fica confiante quanto ao seu trabalho, você baixa sua guarda e é o seu trabalho quem sofre as consequências. O Bob Dylan tem ótimas aspas ao respeito disso, das quais gosto muito: “Um artista está constantemente no processo de tornar-se” (“an artist is constantly in the state of becoming”, na memória de Stephan, mas as palavras exatas do senhor Zimmerman são “you always have to realize you are constantly in a state of becoming”. O sentido, entretanto, não se altera).

Tendo sido advogado antes de se lançar como artista, nunca foi acometido pela sensação de não ser bom no que faz e querer voltar para a carreira antiga?
Oh, cara, eu jamais quero voltar a ser um advogado. Esse é o cenário dos meus pesadelos. Mas sim, acho que toda semana tem pelo menos um dia em que penso: “Cara, eu não sou bom nisso.” Mas esse pensamento geralmente desaparece no dia seguinte.

Muitos artistas que passam muitos anos com os mesmos personagens atravessam uma fase na qual desprezam um deles, ou mesmo todos. De Jim Davis (Garfield) aos que trabalham com super-heróis, a lista de quem já manifestou esse tipo de desconforto é enorme. Com tantos anos em Pearls, isso te aconteceu alguma vez?
Não, nunca enjoei dos personagens. Mas acho que, no meu caso, é porque eu tenho muitos deles. Nunca parei para contar, mas, se você incluir os personagens menores, deve haver pelos menos 25 personagens que posso usar a qualquer hora. E como notas em um piano, esse tanto de opções me dá muitas canções diferentes que posso tocar.

Você recebeu apoio de muitos artistas que admira ao longo de sua carreira. O caso com Charles Schulz é o mais famoso, mas há ainda Scott Adams (Dilbert) e muitos dos veteranos cujos personagens você incluiu em Pearls. Já teve a oportunidade de fazer o mesmo para algum novato batalhando por espaço?
Bem, ele certamente não era um novato batalhando por espaço, mas digo a todos que Richard Thompson (Cul De Sac) é provavelmente o cartunista mais talentoso que já encontrei, e quando a tira dele ainda estava em produção, eu fazia o possível para promovê-la.

Às vezes, as piadas de Pearls são bem norte-americanas, por fazerem referências à TV, comida ou serviços locais. Apesar disso, a tira encontrou leitores em 13 países diferentes, sem contar os que acompanham pela internet. Qual é o apelo que atrai as pessoas de outros países?
Bem, acho que há temas universais o suficiente na tira que apelam a essas pessoas, o que é ótimo. Eu tento não ser muito “americacêntrico”, mas acho que sou às vezes.

Você acha que os personagens de Pearls só funcionam no formato de tiras, ou planeja dar a eles uma graphic novel um dia?
Ando com essa ideia na cabeça há um tempo. Pode ser bacana fazer uma graphic novel, livre das restrições e regras que os jornais impõem em termos de conteúdo.

Nas liner notes do seu livro Pearls Sells Out, você diz que “The Joshua Tree” é seu álbum favorito de todos os tempos. Há alguma tira de Pearls que seja “seu Joshua Tree”?
Pode crer, é esse ou o “Astral Weeks”, do Van Morrison; “Blood on the Tracks”, do Dylan; “OK Computer”, do Radiohead; ou o “Exile on Main Street”, dos Stones Eu tenho uma porção de favoritos. Mas acho que se há uma tira da qual sou mais orgulhoso, é uma séria que fiz sobre um ônibus que explodiu em Jerusalém. Foi tão diferente do meu tom habitual. Simplesmente tenho orgulho de como ela saiu.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell

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