Se Rasgum 2023: Dia 2 traz Planet Hemp em alta voltagem e evidencia dilemas dos festivais brasileiros na atualidade

texto e vídeos por Bruno Capelas
Fotos de Adriely Ferreira, Liliane MoreiraMariana Almeida

Saiba como foi o Dia 1

Em seu primeiro dia, o Se Rasgum 2023 trouxe a celebração da diferença. Já na segunda noite, o sábado, 18 de novembro, a diversidade serviu como ponto de partida para evidenciar alguns dos principais dilemas dos festivais brasileiros na atualidade. A data de encerramento da 18ª edição do festival paraense trouxe o Planet Hemp em alta voltagem e uma escalação tão múltipla quanto a da sexta-feira. No cardápio, tinha pós-punk francês (Serpent), pop brasileiro alternativo (Anelis Assumpção convida Mahmundi), hardcore e crossover (Mukeka di Rato e Delinquentes), brega funk (Luisa e os Alquimistas) e até trilha sonora de motel chique (Silvia Machete). A receita não soou indigesta, mas trouxe contrastes interessantes para refletir sobre o estado atual do mercado de shows nacional, o tamanho dos espaços, a dinâmica dos feats e a convivência entre a brasilidade e uma definição mais restrita do rock.

Foto de Mariana Almeida

Levemente abatida por um almoço na Cervejaria Cabôca e pelo calor cósmico de Belém (aliviado por gentis brisas, é preciso dizer), a reportagem do Scream & Yell chegou ao Espaço Náutico Marine Club, na orla de Belém,  com sutil atraso para o início da programação – é importante que se diga que, escaldada pela noite anterior, a produção iniciou os trabalhos pontualmente no sábado. No gigante palco Devassa, o D’Água Negra, de Manaus, fazia uma mistura de jazz, neo soul e pop balançado oitentista.

Crime Caqui / Foto de Liliane Moreira

Já no menorzinho Dançum, as sorocabanas do Crime Caqui investiam no indie viajante. Num jogo de 2 ou 1, foi preciso escolher um – e vantagem para o Crime Caqui, que já avançava pela metade final de seu show com uma versão deliciosa de “Vapor Barato”, entremeada a “Glory Box”, do Portishead, aumentando a temperatura do local. “É tanto calor que é quase uma hot yoga”, brincou a guitarrista May Manão, antes de irromper em outra baladaça climática, “Feito Pra Durar”. Só não foi melhor porque o grupo sofreu com a interferência sonora dos outros dois palcos.

Aliás, vale a pena pausar por um instante para comentar a disposição geográfica do Se Rasgum: normalmente utilizado para shows de artistas grandes, como Chiclete com Banana e Emicida, o Espaço Náutico Marine Club comporta fácil de 10 a 15 mil espectadores. Com reduções estratégicas, o espaço do Se Rasgum suportaria facilmente umas 8 mil pessoas, mas recebeu (segundo o Instituto Data Scream & Yell) cerca de 2,5 mil cabeças por noite, no máximo.

Foto de Mariana Almeida

Se de um lado a medida deixou a tarefa de ver qualquer show mais que confortável e possibilitava o deslocamento rápido entre os três palcos, do outro surgiam problemas: da já mencionada interferência sonora entre os palcos à baixa densidade do público. Não foram poucos os artistas que, durante os dois dias de evento, pediram pros presentes se aproximarem do palco, buscando elevar a entropia do espetáculo. Na plateia, houve até quem sugerisse que talvez um local menor viesse bem a calhar – mas será que faz sentido dar um passo atrás? Questões, questões.

Malu Gadelha / Foto de Liliane Moreira

Depois do Crime Caqui, foi a vez de conferir o trabalho da cantora local Malu Gadelha, que trafega entre a “MPB de cantora de voz exuberante” e uma pegada pop-rock interessante. Felizmente, ao vivo Malu consegue escapar de alguns dos clichês constantes desse cruzamento, muito graças à forma como coloca sua voz entre as canções – como se pode conferir abaixo em “Retina”, com o convidado Kikito.

Na sequência, a veterana cantora carioca Silvia Machete fez uma apresentação baseada no conceito de seu último disco, “Rhonda” (2020). Mirando numa Nova York de filme de comédia e acertando no papel de professora de inglês sexy, Silvia falou francês, inglês e português, pediu ao público para “come closer, it’s the same price” e se gabou de seu talento: “Vocês devem estar pensando: ‘essa mulher canta pra caralho!’.” E canta mesmo: escudada por uma banda tarimbada e competentíssima, ela transformou o que seria um show difícil em um palco gigante numa gracinha deliciosa, passeando por jazz, soul e aquela sonoridade de motel chique que inspira muitos hormônios e aventuras.

Silvia Machete / Foto de Liliane Moreira

Houve números próprios (“Forget to Forget”) e covers bem pinçadas (“Two Kites”, um Tom Jobim maduríssimo, e “With No One Else Around”, de Tim Maia na língua de Shakespeare) com muito talento. Em sua primeira vez no Pará, Machete (“que rima com patinete, canivete…”, brincou a própria cantora) ainda teve tempo de tocar o hit “Toda Bêbada Canta” e demonstrar seus talentos clássicos com o bambolê – sem deixar a argola cair, ela foi capaz de bolar um cigarro e soltar bolhas de sabão pela boca a partir de uma taça de Martini servida pelos roadies. Doideira gostosa, abrindo o apetite para um embate maluco: carimbó raiz versus pós-punk.

No lado esquerdo do corner, no palco Dançum, o Grupo Sancari trouxe números típicos e mais de dez músicos para apresentar seu carimbó – um casal de dançarinos até se afastou da ribalta e foi para o meio da pista tirar o público para dançar, numa roda que envolveu até a organizadora do festival, Renée Chalu. Do lado direito do Espaço Náutico, no palco Coca-Cola, os franceses do Serpent faziam um show de pós-punk de cartilha, bastante enérgico e tributário aos momentos mais esporrentos do Gang of Four. Com formação de quinteto, o grupo se permitiu alguns arroubos que o Thus Love, na noite anterior, não tinha estrutura para suportar – ainda que aqui tenha valido a regra do “menos é mais”, com leve vantagem para os americanos de Vermont.

Outra separação de público aconteceu pouco tempo depois, com plateia praticamente fatiada à metade para cada lado. No palco Dançum, os capixabas do Mukeka di Rato trouxeram seu hardcore clássico e pesado, desafiando o trabalho dos intérpretes de libras – foi um show tão pesado que o grupo foi dos poucos de seu palco que não sofreu com a interferência sonora lateral. Na plateia, rodas de pogo enormes e bandeiras do MST hasteadas por uma audiência majoritariamente formada por homens héteros, numa das maiores concentrações de testosterona reunidas ao longo de todo o Se Rasgum.

Já no palco Devassa, Luísa e os Alquimistas tocaram para uma plateia repleta de mulheres e público LGBTQIA+, em um show balançado de brega-funk e com participação de convidadas locais surpresa – no meio da apresentação, Luê entrou para cantar “Garota Ligeira”, enquanto Keila subiu no final para dividir “Brega Night Dance Club” com o grupo potiguar. A disputa entre Mukeka e Luísa não era apenas uma divisão de gostos, mas também uma demonstração didática da clivagem de públicos dos festivais espalhados pelo país. Muitos deles, é interessante lembrar, nasceram pelo rock e pouco a pouco se transformaram em eventos de brasilidade ou espaço exclusivo da turma de camisas pretas (como é o caso do Abril Pro Rock, por exemplo). Nessa divisão, o Se Rasgum permanece na corda bamba de sombrinha, em uma demonstração de convivência pacífica entre as tribos – mas entender e equilibrar as demandas e vontades do público sem “trair o movimento” é um exercício delicado.

Luísa e os Alquimistas & Luê / Foto de Mariana Almeida

Essa dinâmica ficou ainda mais explícita no show seguinte do palco Dançum. Se você for a qualquer festival independente nas capitais brasileiras, provavelmente encontrará uma banda de thrash/crossover que é uma verdadeira instituição local. Em Belém, essa entidade responde pelo nome de Delinquentes, tem quase quatro décadas de atividade e um poder de comunicação exacerbado com seu público. Ao longo do show, o vocalista Jayme Katarro não perde a chance de subir nas grades e deixar quem está no burburinho berrar o refrão de canções contundentes contra a discriminação, o fascismo e o capitalismo exacerbado. “A gente estava lá em 2006 no Se Rasgum, no Parque dos Igarapés. Ter essa coisa reciclada e reconstruída é massa pra caralho”, elogiou Jayme, ao mesmo tempo em que dava uma piscadela para mostrar que festivais e cenas locais são esforços retroalimentados.

O Delinquentes ainda recebeu a participação da banda de thrash Klitores Kaos, mas Josyara já dava as caras no palco Coca-Cola. Acompanhada apenas de um baterista e uma dose razoável de programação, a cantora baiana entrou no palco com um leve atraso, mas compensou com muito carisma. Dona de uma inabalável presença de palco, Josyara foi aos poucos conquistando o público com um show calcado no repertório do disco “ÀdeusdarÁ” (2022), entremeando o belo som de seu violão e uma voz potente, mas não por isso menos charmosa.

Josyara / Foto de Adriely Ferreira

Pouco tempo depois, foi a vez de Anelis Assumpção (acompanhada de Curumin na bateria) assumir o controle do palco Devassa, em um show que começou bem marcha lenta. Em muitos momentos, as canções climáticas de Anelis eram encobertas pela conversa da plateia – um incauto até comentou que todo festival precisa de um momento relax para o públido descansar antes do final. Seja como for, é preciso ressaltar que muito do que Anelis propõe em seu trabalho não conquista o ouvinte de imediato, mas sim com o tempo, fazendo sua missão difícil em um festival tão eclético.

Anelis Assumpção / Foto de Adriely Ferreira

O show de Anelis melhorou sensivelmente com a entrada de Mahmundi em cena para cantar as suas “Qual é a Sua?” e “Versos Não”. No entanto, foi mais pra canja do que para feat: a filha do Nego Dito praticamente só participava das canções de Marcela nos refrões, pouco adicionando à mistura e evidenciando uma falha na fórmula das participações especiais, hoje tão populares nos festivais brasileiros. Será que vale a pena pagar cachê e passagem para um artista viajar pelo país e cantar três músicas no show de outro, sem grandes ensaios ou interações? E será que é nesse 2-em-1 que se forma público? Sem dúvida que há formas de fazer isso direito (um dos melhores shows do festival, de Keila com Deize Tigrona, está justamente nessa receita), mas o ponto de esgotamento pode estar mais próximo do que se imagina.

Afetado por um razoável atraso no palco, Mateus Fazeno Rock (atração do Primavera Sound São Paulo 2023) quase passou despercebido no palco Dançum – se o Delinquentes e o Mukeka di Rato reuniram ali três ou quatro centenas de pessoas, Mateus foi acompanhado por no máximo algumas dezenas de espectadores. Uma pena: mesmo chegando no final, foi um dos shows mais impactantes do festival, em uma demonstração física (com dois dançarinos no corpo de baile) e sonora (a forte voz de Mateus, acompanhada de backing vocal e DJ) impactante. Como diria ele próprio: “legal legal legal legal”.

O relógio marcava já pelas 2h da manhã quando o Coletivo Rádio Cipó subiu ao palco: formado nos anos 2000, o grupo talvez fosse a melhor opção local possível para abrir para o Planet Hemp, por suas variações e misturas de estilos que passeiam por rap, dub, reggae, hardcore e… carimbó, claro. Um dos principais responsáveis por ajudar a projetar o talento de Dona Onete, o coletivo há anos não fazia um show, o que colaborou para certa inconstância da apresentação. Não que isso fosse um problema: se o simbolismo por si só já era grande, ficou ainda maior quando o grupo trouxe ao palco a mítica figura local de Mestre Laurentino, do alto de seus 97 anos e considerado “o roqueiro mais antigo do Pará”, para encerrar sua passagem pelo Se Rasgum. Emocionante.

Muito aguardado, o Planet Hemp emergiu em Belém do Pará pouco antes das 3h da madrugada com formação completa – Marcelo D2, B Negão, Nobru (guitarra), Formigão (baixo) e Pedro Garcia (bateria), acrescidos da participação especial de Daniel Ganjaman nos teclados e programações. Felizes à beça após vencer dois Grammys Latinos, o grupo não dispensou energia desde o começo, mandando a plateia fazer uma roda gigante – em “100% Hardcore”, o pogo ganhou ares de ciranda com uma citação de “Deixa a Gira Girar”, dos Tincoãs, enquanto braços, pernas e até baldes de cerveja voavam pelos ares. No início da apresentação, dois petardos de “Jardineiros”, um dos discos mais interessantes de 2022 – “Distopia” e “Taca Fogo”, sendo a primeira introduzida por um vídeo que repassa toda a trajetória do Planet Hemp, dando à noite caráter de celebração histórica.

Planet Hemp / Foto de Mariana Almeida

Ao longo de noventa minutos, o grupo revezou clássicos e novidades, fazendo a cabeça dos belenenses entre seu lado mais suingado (“Puxa Fumo”, “Jardineiro”) e porradas hardcore (“Fazendo a Cabeça”, “Legalize Já”, “Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga”). Entre as palavras de ordem, gritos de “aquele filho da puta” (para Bolsonaro), “Marielle Presente!” (de D2) e “Palestina livre” (de Negão), além da apologia mais clássica do Brasil – em “Quem Tem Seda”, rolou o clássico Censo dos Maconheiros, com muita gente levantando o isqueiro no lugar do celular para saudar o Planet Hemp.

Foi uma hora e meia de altíssima voltagem, mostrando que os anos pesaram pouco para o grupo – será mais um dos benefícios da erva medicinal? Difícil discordar ao ver o trecho final do show, em uma sequência achapante que raros grupos possuem hoje à mão: “Contexto”, “Samba Makossa”, “A Culpa É de Quem” e… claro, a indefectível “Mantenha o Respeito”. Como diria o Peso, “a cabeça feita não marca bobeira” – e não à toa, o show acabou lá perto das 4h20 da madrugada, encerrando o Se Rasgum com precisão.

Foto de Mariana Almeida

Em duas (ou quatro noites, dependendo da sua contagem), o Se Rasgum teve em sua 18ª edição uma amostra variadíssima da grande música que se faz neste ameaçado planeta hoje em dia – um exercício excelente não só para fãs ecléticos, mas também para formação de público e expansão de consciência local. (Não à toa, uma gigante instalação artística presente entre os palcos buscava, ao mesmo tempo, denunciar o descaso ecológico com a Amazônia e pedir “mente aberta” à sociedade). Se a programação local trouxe poucas revelações dignas de nota, ao contrário do que aconteceu em outras temporadas, sendo um celeiro de novidades, o festival paraense teve poucos deslizes, que servem mais como aprimoramentos do que obstáculos. Já os acertos foram muitos, seja no lineup ou na organização, mostrando porque o Se Rasgum é uma instituição sólida do cenário independente brasileiro. Que a vida na maturidade seja tão boa quanto nos primeiros 18 anos.

Top 5 Se Rasgum 2023

Adriano Costa – Coisa Pop
1 – Planet Hemp
2 – Marcos Valle & Azymuth
3 – Keila & Deize Tigrona
4 – Mukeka Di Rato
5 – Thus Love

Bruno Capelas – Scream & Yell / Programa de Indie
1 – Keila & Deize Tigrona
2 – Marcos Valle & Azymuth
3 – Planet Hemp
4 – Terno Rei
5 – Silvia Machete

Yuri da BS – Billboard Brasil
1 – Josyara
2 – Mukeka Di Rato
3 – Marcos Valle + Azymuth
4 – Enme
5 – Max Romeo

PS: A reportagem do Scream & Yell gostaria de aproveitar ainda pra agradecer imensamente a Adriano Costa por todo o apoio e parceria. Sem ele, essa cobertura não seria possível. ❤️

Foto de Mariana Almeida

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010. 

One thought on “Se Rasgum 2023: Dia 2 traz Planet Hemp em alta voltagem e evidencia dilemas dos festivais brasileiros na atualidade

  1. Ah, cara, que massa ver o S&Y de novo por aqui cobrindo o Se Rasgum. Com a costumeira dedicação de ver todos os shows ou a maior quantidade possível no mínimo.
    Foi um festival bonito como de costume. O Se Rasgum erra pouco demais sempre.
    Valeu demais.

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