Esse você precisa ler: Como “A Última Caçada de Kraven” ajudou a redefinir o futuro do Homem Aranha nas HQs

texto especial de Davi Caro

Poucos heróis em qualquer mídia são tão plurais quanto o Homem-Aranha. Criado por Stan Lee e Steve Ditko nos anos 1960, o personagem se mantém um ícone pop que apela a todas as faixas etárias ou camadas sociais – basta observar os recentes e bem-sucedidos lançamentos cinematográficos centrados no personagem para entender que, seja em meio ao restante do panteão da Marvel Comics, seja na história dos quadrinhos como um todo, é muito difícil encontrar qualquer justiceiro mascarado à altura do Aracnídeo. “Spider-Man 2”, novo jogo da franquia desenvolvida pela Insomniac e disponível para o PlayStation 5, vem colecionando bons reviews e, na certa, deve expandir ainda mais a já numerosa legião de fãs que o Cabeça de Teia pode chamar de sua ao redor do mundo. Muito do que tem sido dito centra foco não apenas na inovadora dinâmica do jogo (que permite intercalar entre Peter Parker, o Homem-Aranha original, e Miles Morales, introduzido nas HQs em 2011 e recentemente alçado ao status de protagonista graças aos longas animados “No Aranhaverso”, de 2018, e “Através do Aranhaverso”, de 2023). O mesmo se estende ao principal antagonista da trama: Kraven, o Caçador.

Criado dois anos após o surgimento do herói, em 1964, o vilão, originalmente um aristocrata russo chamado Sergei Kravinoff, por muitos anos chamou mais atenção graças ao seu extravagante visual, adornado por peles de animais, e pela aura caricatural que os mesmos o conferiam. Colecionando aparições nas várias séries animadas do Aranha, Kraven levou muito tempo para ser considerado uma figura “séria” nas histórias em que figurava, sendo deixado de lado como um coadjuvante ou como um integrante menos importante do também notável Sexteto Sinistro. Tal percepção mudou, no entanto, e o personagem como ficou mais conhecido finalmente surgiu graças à “A Última Caçada de Kraven” (“Kraven’s Last Hunt” no original). Obra do roteirista J.M. DeMatteis em colaboração com o artista Mike Zeck, o arco publicado em seis partes em 1987 englobou as diferentes edições mensais do Teioso, e, mesmo hoje em dia, após tantas outras histórias e eventos memoráveis (e outros nem tanto), persiste como uma das mais célebres histórias já lançadas pela Marvel envolvendo seu principal personagem.

Desiludido e desapontado com os próprios fracassos e vendo a vida se esvair graças a problemas de saúde, Kraven toma para si um ultimato: derrotar o Homem-Aranha de uma vez por todas, quebrando seu corpo e seu espírito, ou morrer tentando. Arquitetando seu plano após o que parece ser uma alucinógena ingestão (literal) de aranhas, Kravinoff sai em busca de seu nêmesis – então ainda adornando uma variação do uniforme negro que, mais tarde, originaria o personagem Venom. Alcançando e infligindo Peter Parker com um tiro de espingarda, o Caçador decide enterrar seu inimigo e, confeccionando um manto idêntico ao do herói, opta por se provar superior ao Aracnídeo combatendo o crime. Ao longo de duas semanas, Kraven apreende criminosos usando níveis de brutalidade atípicos de seu rival, e acaba por derrotar, sozinho, o mutante homicida Rattus (que o Homem-Aranha, pouco antes, havia conseguido deter somente com o auxílio do Capitão América). Ao mesmo tempo em que as ações violentas do suposto herói passam a chamar a atenção, Parker – que, conforme é revelado, não estava morto, e sim fortemente sedado – começa sua jornada para retornar ao mundo dos vivos e limpar seu nome.

O roteiro de DeMatteis é um espetáculo à parte: mais do que construir um tenso contraste entre o bom humor típico do protagonista e a visão de mundo distorcida e insana de seu algoz, o escritor promove Kraven à posição de semi-protagonista, fazendo uso de intrigantes e perturbadores recordatórios que narram os monólogos internos do vilão suicida. Mais: o riquíssimo texto também faz uso do poema “O Tigre” (“The Tyger”), de William Blake, substituindo o animal que dá título a obra por “A Aranha”, aprofundando ainda mais os limites da loucura que conduzem Kraven em seus insanos objetivos e, mais tarde, a seu trágico final.

As artes de Mike Zeck fazem mais do que jus ao primoroso trabalho do roteirista: algumas passagens, como Kraven cercado de pequenas aranhas somente para, em alguns quadros, passar a devorá-las, ou o tenebroso retorno de Peter Parker do túmulo, onde a narrativa acontece em paralelo e praticamente à revelia do leitor (que mesmo assim consegue assimilar toda a carga dramática conjurada pela obra) são tidas como marcos na dita Era Moderna dos Quadrinhos. Com a ajuda do colorista Bob McLeod, Zeck faz escolhas de ângulos e sombras que ajudam a alinhar “A Última Caçada de Kraven” com os também notáveis trabalhos de Todd McFarlane nas publicações do Aranha. Mais do que explorar a fisicalidade inerente às aventuras do herói, a arte extende os limites do fotorrealismo, adotando escolhas estéticas que a aproximam, por vezes, do surreal.

“A Última Caçada de Kraven” recebeu aclamação imediata, mesmo restrita ao formato mensal das publicações regulares: a crítica elogiou muito as sutis reflexões sobre a essência humana por trás de todo herói – e de todo vilão. A obstinação quase animalesca de Kraven, determinado a tomar o lugar de seu inimigo com o objetivo de alcançar um significado maior para sua existência, contrasta com o abandono do Homem-Aranha, ao mesmo tempo tão poderoso e tão humano. Muitas destas discussões seriam exploradas mais a fundo nos anos seguintes, mas nunca com o mesmo requinte, ainda que as aparições de Sergei Kravinoff em diferentes mídias a partir da HQ tenham sofrido impacto direto. Um bom exemplo dessa renovação pode ser a clássica animação noventista do Cabeça de Teia, produzida pela Fox Kids a partir de 1994 (e hoje disponível através do Disney+), onde o personagem seria abordado de maneira mais séria e remodelado como um dos mais perigosos oponentes do herói; o mesmo se repetiria nas investidas animadas que se seguiram, não deixando de fora os problemas de saúde que, na história de 1987, ficaram implícitos.

Mudanças semelhantes puderam ser sentidas nas aventuras subsequentes do próprio Aranha: ainda que a trajetória do personagem já não estivesse mal servida de momentos dramáticos, o grau de seriedade das histórias abordadas dali em diante só faria aumentar, fosse com resultados aclamados (como “Tormenta”, arco de 1990 concebido pelo já citado Todd McFarlane) ou no mínimo controversos (como a infame “Saga do Clone”, que se estendeu por escandalosos mais de dois anos – entre 1994 e 1996 – fartos de inconsistências narrativas e processos criativos problemáticos e com um time criativo que, pasme, envolvia o mesmo J.M. DeMatteis). Tal tendência se prolongaria com a chegada da década de 2000, onde novas reviravoltas, cada vez mais bombásticas e divisivas, povoariam as discussões entre os aficcionados pela nona arte.

A saga seria republicada pela primeira vez no formato de graphic novel em 1989, e seria reeditada outras vezes no futuro, em versões que também incluiriam suas duas sequências: “Alma de Caçador” (que também contou com o duo DeMatteis/Zeck, lançada em 1992) e “A Caçada Sinistra” (concebida por um time de autores que incluía os talentosos Mark Waid e Dan Slott, entre outros, e publicada pela primeira vez entre 2009 e 2010).

Aclamado em sua excelente interpretação no recente lançamento para o PS5, vale lembrar que, muito em breve, Kraven também poderá ser visto nos cinemas: a Sony anunciou recentemente o filme live-action centrado no Caçador, interpretado por Aaron Taylor-Johnson (de “Nowhere Boy”) e, ao que o trailer já divulgado deixa a entender, assumindo um papel semelhante ao de um anti-herói que o distancia de seu vilanismo original – à moda das recentes adaptações de “Venom” (e, sim, de “Morbius”) às telas. Independente disso, é em “ A Última Caçada de Kraven” que o grande público pode testemunhar a história definitiva de um dos mais intrigantes antagonistas da história contemporânea, em uma narrativa que escancara a relação de um dos maiores heróis de todos os tempos com sua mortalidade: heróis e vilões, afinal, são (quase sempre), todos humanos.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo

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