Literatura: “A corneta” é uma pequena grande jóia narrativa de uma das maiores artistas surrealistas: Leonora Carrington

texto por Gabriel Pinheiro

Marian Leatherby é uma mulher de 92 anos, de audição prejudicada, que sonha em visitar a Lapônia. Ela divide seus dias entre a sua casa, onde mora ao lado do filho, da nora e do neto, e visitas ao domicílio da melhor amiga, Carmella. Enquanto a casa da amiga é um porto seguro, o próprio lar se torna um ambiente cada vez mais inóspito, na medida em que Marian parece se tornar um fardo incômodo na rotina da família. Ao ganhar de Carmella uma corneta, a protagonista volta a ter a possibilidade de ouvir com nitidez o mundo ao seu redor – escolhendo aquilo o que deseja ou não ouvir. Ao utilizá-la escondida dos familiares, ela descobre um plano secreto: ela será levada para um asilo. “A corneta“, da escritora Leonora Carrington, é um lançamento da Alfaguara, com tradução de Fabiane Secches.

Sem saída, Marian acaba sendo levada à instituição. Logo de cara, ela percebe estar diante de um empreendimento incomum. Os edifícios que compõem o asilo tem formas inusitadas. Um tem o formato de um cogumelo, o outro é um iglu, há ainda aquele com a forma de uma bota e outro estranhamente construído como um bolo de aniversário. “Era tudo tão estranho que cheguei a duvidar da precisão da minha capacidade de observação”. Mas o estranhamento não pára por aí, na verdade, esse é só o começo de uma aventura curiosa, surpreendente e que desafia aquilo que nos habituamos a identificar como a normalidade.

Uma excêntrica nonagenária, ao lado de sua corneta, é uma das maiores personagens e narradoras da história da literatura fantástica. “Como minha mente corre solta, ou melhor, para trás, nunca serei capaz de continuar com minha narrativa se não conseguir controlar essas memórias, tenho muitas delas”. Marian Leatherby se integra a um grupo diverso de senhoras idosas, marcado por uma multiplicidade de comportamentos e atitudes, dentro daquele asilo que, acreditam, seja a parada final de suas longas e respectivas trajetórias. Ali, uma série de estranhos acontecimentos parecem transformar cada dia numa nova aventura que inclui um aparentemente inexplicável assassinato e uma descida aos confins da Terra.

Leonora Carrington trabalha com um sem número de referências históricas e mitológicas no romance. Habitam as páginas de “A corneta” cavaleiros templários, o santo graal, uma mulher com cabeça de lobo – uma lobismulher -, um exército de abelhas, um carteiro imortal e uma espécie de arca de Noé que atravessa tanto mares quanto a terra. Isso para citar alguns dos elementos fantásticos que marcam a narrativa.

“Muitas de nós passamos a vida com maridos dominadores e rabugentos. Quando enfim fomos libertadas deles, passamos a ser manipuladas por nossos filhos e filhas, que não apenas não nos amavam mais como nós consideravam um fardo e motivo de constrangimento e vergonha”.

O fantástico é um terreno fértil para que Leonora Carrington trabalhe uma série de temas urgentes na época em que a narrativa é escrita – urgências que se mantém numa leitura na atualidade. Questões do feminismo, do patriarcado, a relação com a velhice e as diversas violências que uma uma vida e um corpo na terceira idade é submetido, na medida em que se torna mais vulnerável e a própria construção e divisão do poder na sociedade – onde está o poder e quem se beneficia dele. “É impossível entender como milhões e milhões de pessoas obedecem a uma coleção doentia de cavalheiros que se autodenominam ‘Governo’!”.

“A corneta” é uma pequena grande jóia narrativa, escrita por uma das maiores artistas do movimento surrealista. De construção brilhante e essencialmente onírica, essa engenhosa narrativa, apesar dos inúmeros elementos e signos que a compõem, nos convida a um mergulho em queda livre. É como um sonho, onde associações inimagináveis são criadas e ali, naquele universo restrito, fazem todo o sentido do mundo – mesmo quando o sentido signifique, por vezes, não fazer sentido algum.

“Estranho como a Bíblia sempre parece terminar em sofrimento em catástrofe. Volta e meia me pergunto como esse Deus tão raivoso e vingativo acabou se tornando tão popular. A humanidade é muito estranha e não finjo entender as coisas, Mas por que venerar algo que só manda pragas e massacres? E por que Eva é a culpada de tudo?”

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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