Ao vivo: Fito Páez lava almas e aquece corações em Porto Alegre com show “El Amor 30 Años Despues del Amor”

texto de Davi Caro
fotos de Douglas Fischer

A minissérie “El Amor Despues del Amor” (“Amor e Música: Fito Paez” no Brasil), lançada pela Netflix em abril com o objetivo de contar a história da infância, adolescência e ascensão do cantor argentino Fito Páez, tem como ponto central o lançamento do disco de mesmo nome, em 1993. Começando e terminando seus 8 episódios com o show realizado pelo artista rosarino no estádio Vélez Sarsfield, se trata de uma escolha acertada da produção. Afinal, foi quando Fito Páez marcou seu nome na história do pop rock e da música argentina (e hispânica) como um todo – até hoje, se trata do disco de música popular mais vendido no país.

A escolha para o título original da minissérie não foi a toa: as músicas do álbum “El Amor Despues del Amor” soam tão atuais quanto soavam em 1992, mesmo quando se utilizam de referências que remetam diretamente a sua época. E tanto o artista quanto o público sabem disso: a bordo da turnê “El Amor 30 Años Despues del Amor”, Fito retornou ao estádio Vélez, lotou datas consecutivas tanto na Movistar Arena de Buenos Aires quanto em outros lugares da América Latina e deu a muitas pessoas, muitas das quais descobriram mais sobre ele através da série da Netflix, a oportunidade de verem ao vivo e na íntegra um dos mais memoráveis repertórios da história da música popular latino-americana. E foi com esta turnê, e com o peso da série recentemente lançada, que Páez e sua (excelente) banda aterrissaram em Porto Alegre na chuvosa noite de sábado, para um dos shows internacionais do ano, no auditório Araújo Vianna.

Desde a entrada, percebia-se que os presentes eram fãs realmente devotos não apenas de Páez, mas de vários outros ícones da música argentina: além de camisetas que retratavam o protagonista da noite, outros ídolos, como Charly Garcia e Gustavo Cerati, também eram homenageados das estampas de inúmeras pessoas que preencheram muito bem o amplo espaço do Araújo Vianna, com destaque tanto nos bares (onde muitos degustavam cervejas, lanches e até vinhos) quanto na tenda de merchandising – que vendia, entre camisetas e discos de vinil, o livro “Infancia & Juventud: Memorias”, lançado pelo artista no fim de 2022 e no qual boa parte da série se baseou. Felizmente, grande parte destas pessoas também deram bastante atenção ao show de abertura de Esteban Tavares (ex-Fresno e ex-Humberto Gessinger), que aqueceu o público molhado pela chuva fria que caía na entrada com um show curto baseado em violão e acordeom. Para um público massivo que cantava “olé, olé, olé, olé, Fito, Fito” desde o início, foi realmente um bom começo.

Com um atraso pouco incômodo de cerca de 30 minutos, preparado o palco, as luzes se apagaram e uma prévia da já citada produção da Netflix esquentou os motores para o que vinha: as batidas eletrônicas que marcam o início da faixa título começaram a ecoar nos falantes, e o público acompanhou a plenos pulmões Fito, que cantou os primeiros versos de fora do palco antes de uma alucinante entrada junto à banda. Já demonstrando muito carisma e empolgação, Páez conduziu o público – estimado em 5.000 pessoas – em um coro invejável, sabendo que já entrava em cena com o jogo ganho. Destaque para a cantora Mariela Emme, que vem acompanhando o artista em suas turnês e não deixou a peteca cair ao longo da noite com uma performance poderosíssima.

Seguindo a ordem original do álbum representado, “Dos Dias en la Vida” deu à banda (composta por guitarra, baixo, bateria, naipe de metais e dois teclados) uma chance de brilhar e mostrar desenvoltura e capacidade técnica sem ofuscar o piano e os ótimos vocais de Fito, em excelente forma. “La Verónica” veio logo em seguida, e preparou terreno para a pedrada de “Tráfico por Katmandú” e a delicadeza melodramática de “Pétalo de Sal”, que contou com uma singela homenagem ao colaborador e amigo Luis Alberto Spinetta. “Sasha, Sissi y el Círculo de Baba” funcionou como um prelúdio ao segundo momento de catarse do show: a trinca de “Un Vestido y Un Amor”, entoada inteira pelo público; a épica “Tumbas de la Gloria”, com uma projeção de um crucifixo em chamas; e a galopante “La Rueda Mágica”, fiel à sua versão original com direito a citação de “And I Love Her”, dos Beatles.

Logo em seguida, a contemplativa “Creo” esfriou um pouco os ânimos da plateia, que se agitou mais com a faixa seguinte, “Detrás del Muro de los Lamentos”. Originalmente lançada com a participação ilustre da lendária Mercedes Sosa, a faixa mereceu um rápido comentário de Fito, que falou (em excelente portunhol) sobre como esta era a faixa mais singular dentro do repertório do álbum original, com ritmos intricados herdados de música tradicional peruana. Por isso, pediu que o público contivesse suas palmas durante o primeiro minuto da canção.

Foi realmente um choque sair do exoticismo de “Detrás del Muro de los Lamentos” para os explosivos refrãos de “Balada de Donna Helena”, com Páez chegando ao limite de seu alcance vocal atual, antes da dupla de clássicos que fecha o disco: “Brillante sobre el Mic” veio linda, reluzente e fiel ao arranjo original, e “A Rodar la Vida” contou com várias pessoas girando blusas e camisetas sobre as cabeças enquanto cantavam em alto som o triunfal refrão. Chega a ser comovente a forma com a qual o repertório de “El Amor Despues del Amor” funciona bem ao vivo, tanto em termos de arranjos (muito fiéis aos originais) quanto em termos de sequência. Os músicos que acompanham Fito também demonstram empolgação, além de um alinhamento invejável com o repertório e o líder da banda.

Nove minutos (cronometrados, conforme o telão do palco deixava claro) separaram o fim da performance do disco da segunda e extremamente bem servida parte do set: Fito retorna ao palco com guitarra em punho para uma feroz execução de “Naturaleza Sangre”, faixa homônima de seu disco de 2003. Ao invés de deixar a poeira baixar, um endiabrado Páez se senta ao piano e dá a deixa para a dobradinha com outras duas músicas-título: a brincalhona “Circo Beat” (de 1994) e a furiosa “Ciudad de Pobres Corazones” (de 1987), antes de trazer uma surpresa que, nas palavras do próprio, não havia preparado. Sozinho ao piano, Fito começa a entoar “Meu Bem, Meu Mal”, imortalizada na voz de Gal Costa, que a gravou em 1981. Por mais que não tivesse sido ensaiado, não dá para dizer que não foi bonito. E deixou o público no ponto para a imortal “Mariposa Technicolor” (também do álbum “Circo Beat) e a reluzente “Y Dale Alegria a Mi Corazon” (de “Tercer Mundo”, de 1990), com o refrão cantado repetidas vezes por todos os presentes, emocionando Fito, que agradeceu radiante aos presentes ao dar uma última saudação junto aos músicos acompanhantes. O jogo já estava ganho quando a apresentação começou, e isso não havia mudado.

Na saída, fãs emocionados continuavam a cantar, em grupo, o refrão de “Y Dale Alegria a Mi Corazon” enquanto se abraçavam, felizes tanto pelo espetáculo presenciado quanto pela chuva que, finalmente, resolveu dar uma trégua. Tirando ocasionais falhas no som do piano de Fito, o som estava muito bem equalizado, com uma banda bem ensaiada e um repertório nos cascos. Mas o destaque fica mesmo para o frontman: com trocas de roupa, danças discretas, mas empolgadas, e conduções fervorosas dos coros do público, Fito Páez demonstra uma invejável vitalidade que não denuncia suas seis décadas.

O palco é seu habitat natural, e voltar às músicas que o tornaram um pop star que atravessa gerações é claramente como voltar para casa. É uma pena o Brasil receber apenas um show desta turnê; é a oportunidade de ver um artista que, com empenho e legítimo amor à música, continua trazendo alegria à corações de muitos fãs. E deve continuar a rodar a vida de inúmeros admiradores, de curta ou longa data.

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