Cinema: “Dançando no Silêncio” trafega entre a dor e a beleza na hora de retratar os sonhos de diferentes mulheres da Argélia

texto de Renan Guerra

Com direção da cineasta franco-argelina Mounia Meddour, o longa “Dançando no Silêncio” nos conta a história de Houria (Lyna Khoudri), uma jovem bailarina que trabalha como faxineira para tentar ajudar sua mãe (Rachida Brakni), que é dançarina e também sua professora de dança. Entre o trabalho em hotéis e os ensaios de balé, Houria troca experiências ao lado de sua amiga Sonia (Amira Hilda Douaouda), que sonha em emigrar para a Europa e poder investir de forma mais profunda em sua carreira de bailarina. Algumas noites da semana, Houria aposta em rinhas de bodes com o intuito de juntar dinheiro e comprar um carro para sua mãe. Em uma dessas noites, ela é perseguida, sofre um forte trauma e fica sem voz, além de algumas sequelas em seu corpo. Essa experiência traumática coloca Houria em contato com outras mulheres que também passaram por situações de trauma e a faz repensar sua própria relação com a dança.

É a partir desse cenário que o filme de Meddour constrói um panorama interessantíssimo sobre as experiências femininas na Argélia. O país do norte da África tem um histórico complexo, sendo colônia da França até 1962 e enfrentando uma intensa guerra civil de 1991 a 2002 que deixou um saldo estimado de 150 a 200 mil mortos – muitas dessas perdas e feridas abertas do país reaparecem em “Dançando no Silêncio”. As personagens do filme lidam com os traumas ainda não curados dessa guerra, indo desde as questões legais relacionadas aos crimes de guerra até as mortes que afetaram de forma irreparável suas vidas. Além disso, elas ainda lidam com as questões de um estado fortemente baseado no islamismo e que cerceia a vida das mulheres. No filme, a própria profissão de dançarinas dessas personagens é um estigma que persegue suas existências naquele espaço.

“Dançando no Silêncio” parte desse cenário árido para uma história em que a delicadeza e a beleza se sobressaem, especialmente quando centralizado na atuação iluminada de Lyna Khoudri. A atriz já havia protagonizado “Papicha” (2019), o filme anterior de Mounia Meddour, sobre uma jovem argelina que usava a moda como forma de resistência cultural durante a Guerra Civil da Argélia; por este papel, Khoudri venceu o César de Melhor Atriz Revelação. Khoudri, aliás, tem uma história que também é diretamente impactada pela guerra civil argelina: filha de um pai jornalista e de uma mãe violinista, ela nasceu na Argélia, mas logo se mudou com toda a sua família para a Europa, em um exílio forçado, uma vez que a profissão de seu pai era um risco de vida eminente na Argélia – tanto que se contabiliza que mais de 70 jornalistas foram assassinados enquanto cobriam esse conflito.

Lyna Khoudri é como que o coração de “Dançando no Silêncio”. É ela quem nos guia nesse caminho de sensibilidade do filme de Mounia Meddour. A dança, durante a história, se torna uma catalisador para todos esses traumas e medos represados, para todas as violências que essas mulheres passam e para tudo aquilo que lhes é negado. E tudo isso é construído através de um interessante roteiro que nos coloca cada vez mais próximos das experiências e vivências dessas personagens que vemos na tela. O saldo é um tanto quanto agridoce, claro, pois estamos falando de uma história cheia de dores e violência, mas é também extremamente emocionante ver o poder da arte em espaços que parecem dilacerados. E Mounia Meddour sabe de forma precisa filmar o que é belo sendo belo e filmar o que é horrível sendo horrível, sem romantizar ou florear as complexidades de sua narrativa.

“Dançando no Silêncio” equilibra de forma inteligente a delicadeza e a brutalidade, tudo para nos aproximar mais de histórias cheias de humanidade que poderiam passar desapercebidas por entre notícias, números e dados.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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