Ao vivo: Fito Páez arranca lágrimas de 35 mil latino-americanos nos 30 anos de “El Amor Después del Amor” em Buenos Aires

texto e vídeos por Bruno Capelas
fotos de Agustin Dusserre e Rodrigo Alonsso

Certo pensador alemão já escreveu que “a história acontece como tragédia e se repete como farsa”. Mas, às vezes, a história acontece mesmo como glória e se repete como festa. Lançado originalmente em 1992, o disco “El Amor Después del Amor” foi responsável por cravar definitivamente o lugar do argentino Fito Páez entre os maiores compositores de seu país, graças a canções como a faixa-título, “Un estido y un amor” e “Pétalo de Sal”, só para citar três. Com participações de nomes como Luis Alberto Spinetta, Charly García, Gustavo Cerati, Andrés Calamaro e Mercedes Sosa (!), o álbum teve dez singles em quinze faixas e levou Fito a uma turnê de mais de 120 datas pela América Latina, encerrada em abril de 1993 com dois shows históricos em Buenos Aires, no estádio José Almafitani, campo do Vélez Sarsfield. Trinta anos depois e já sem os mesmos cabelos de outrora, Fito voltou à velha casa para dois concertos, com entradas praticamente esgotadas, clima de celebração e, vá lá, um cheirinho de nostalgia.

A trilha sonora antes do segundo espetáculo, realizado no domingo (2 de abril), dava bem o tom da coisa: petardos do classic rock da lavra de Faces, Eric Clapton, Elton John e Peter Frampton animavam a entrada de pelo menos três gerações de portenhos, uns com cabelos brancos e outros mais novos do que o próprio disco. Na plateia VIP, recheada de cadeiras de plástico, atendentes levavam os espectadores até seus lugares e, visando uma módica gorjeta, chegavam até a enxugar os assentos após a chuva fina que caiu sobre a capital argentina durante a tarde do domingo.

Foto de Rodrigo Alonsso

Contribuía ainda para o clima familiar a ausência de bebidas alcóolicas no bar, que só oferecia refrigerantes (a 800 pesos ou R$ 10, na conversão pelo “dólar blue”, um dos vários câmbios paralelos usados no país), energéticos, hambúrgueres, panchos e até um singelo torrone por módicos 100 pesos (R$ 1,30). Enquanto isso, a loja oficial do concerto trazia vários modelos de camiseta (a 4 mil pesos, cerca de R$ 50), discos de vinil, CDs, livros e até mesmo um simpático bonequinho de biscuit do cantor (3 mil pesos/R$ 39). Para deixar a expectativa ainda mais em alta, até a Netflix fez sua parte: exibiu o trailer da minissérie “El Amor Después del Amor”, que vai contar a vida do cantor de Rosário a partir de 26 de abril.

Iniciado com protocolares quinze minutos de atraso, o show começou já em alta octanagem com o trio de canções que abre o álbum. Primeiro veio a incrível “El Amor Después del Amor” e seu excelente refrão “nadie puede y nadie debe / vivir sin amor”. Depois, a divertidíssima “Dos Días en la Vida”, que homenageia a dupla dinâmica Thelma e Louise. Para fechar a trinca, “La Verónica”, que contou com a participação da cantora local Nathy Peluso – uma convidada que, a despeito de seu talento vocal, fez a canção ganhar contornos exagerados. Faz parte: nem todo mundo que chega para festa no começo entende como dançar.

Fito e Nathy Peluso / Foto de Rodrigo Alonsso

Na sequência, Fito inverteu a ordem do dia: se no ano passado o repertório da turnê incluía a execução de “El Amor” na íntegra para depois passar a outras paragens do repertório do artista, dessa vez o argentino preferiu serpentear pelo álbum e por sua obra. Assim, rolaram paradas nos anos 1980 – a charmosa balada “11 y 6”, com luzes de clima romântico – e 2000 – com o rockão “Naturaleza Sangre”, originalmente um dueto com Charly García, e “Te Aliviará”, balada que teve a participação de Fabiana Cantillo, ex-corista do bigodudo e ex-mulher de Páez.

Charly, de cuja banda Fito Páez fez parte no início dos anos 1980, não foi o único grande homenageado da noite: ao mergulhar novamente no repertório do disco de 1992, o rosarino fez questão de lembrar Luis Alberto Spinetta ao tocar “Pétalo de sal”, uma balada bonita e estranha, na melhor acepção da palavra. Ao contrapor os dois mestres, Fito mostrou porque talvez seja o compositor que melhor conseguiu unir a obra de Charly (dionisíaco, caótico, político e desbragado) e Spinetta (apolíneo, místico, psicodélico e, por vezes, angelical) em uma só construção. Mais que isso, Fito mostra que não há contradição ou rivalidade entre os dois, mas sim uma relação de forças que só tem a somar para quem colocar ouvidos à disposição. E talvez não haja melhor jeito de convencer quem não conheça Fito a embarcar nessa onda do que com “Un vestido y un amor”, que arrancou lágrimas dos presentes com sua descrição tão bela e simples do que é se apaixonar – “te vi, eu não buscava nada e te vi”.

Foto de Agustin Dusserre

E por falar em forças, ainda sobrou espaço para uma homenagem ao recém-morto Ryuichi Sakamoto, que não só criou música, “mas também uma demonstração do espírito humano”, nas palavras de Fito Páez. Para marcar sua passagem, o rosarino atacou o piano com o talento inato de quem não aprendeu a ler partituras, mas tirava peças clássicas de ouvido enquanto aprendia piano, unindo temas compostos por Sakamoto para filmes de Almodovar, Bertolucci e, claro, o clássico “Merry Christmas Mr. Lawrence”, unindo essa pequena suíte à sua “Bello Abril”.

Também lembrados de maneira vigorosa com “Tumbas de la gloria” foram os veteranos, os mortos e aqueles que se mataram após combater na Guerra das Malvinas, conflito entre Inglaterra e Argentina cujo início completava 41 anos bem na data do show – antes do início do concerto, aliás, o público se animou a pular e pular cantando um grito de guerra cuja letra dizia “quem não salta é inglês”. Outra menção ao conflito, uma das maiores estupidezes cometidas pela ditadura de Videla e Masera, apareceu em “No bombardeen Buenos Aires”, clássico de Charly García que surgiu num medley com “Nadie es de nadie”.

Foto de Rodrigo Alonsso

Com mais de uma hora de show, os momentos altos se intercalavam com passagens menos inspiradas – o longo medley de “Sólo los chicos / Nada más preciado / Gente sin swing / Tercer mundo / Yo te amé en Nicaragua” teve peso roqueiro além do necessário, assim como a participação caótica de Hernan Coronel em “Ey, You”, em que os arranjos de metais se sobrepuseram. Foram dois momentos em que a festa pareceu sair um pouco do clima, deixando o público bem apagado.

O mesmo, felizmente, não se pode dizer do hit “Circo Beat” ou da baladaça “Al lado del camino”, dois pontos altos do final do show, que nem mesmo o som embolado e com volume mais alto que o necessário do José Almafitani conseguiu estregar. Ao voltar para o repertório de “El Amor”, Fito mostrou mais uma vez a força do disco, com petardos como a já citada “La rueda mágica”, “Brillante sobre el mic” e a empolgante “A rodar mi vida”, que encerrou o set normal com a participação do histórico guitarrista David Lebón – membro de bandas como Pescado Rabioso, Billy Bond y la Pesada del Rock and Roll e Serú Giran.

Fito e David Lebón / Foto de Rodrigo Alonsso

Já teria sido mais que suficiente, mas havia mais: ao retornar para o bis, o cantor rosarino apresentou a sua “Cable a la tierra” com um tempero diferente, usando a base de “Boys Don’t Cry”, do The Cure – no fundo, as projeções faziam os presentes pensarem na passagem do tempo ao exibir imagens de Fito ainda de cabelo, óculos azul e sem barba, diretamente dos anos 1980. Depois, vieram mais hits: “Dar es dar” e, claro, a inesquecível power pop “Mariposa Tecknicolor”, que trouxe não só uma chuva de papel picado, mas também lágrimas emocionantes em meio à chuva de verdade que começava a cair em Buenos Aires. Já molhados de emoção, suor e água, ainda deu tempo de entoar um dos maiores cantos de estádio do rock en español: “Y dale alegria a mi corazón”, cujo coro durou minutos e minutos, enquanto Fito e sua banda agradeciam os aplausos, em um verdadeiro momento “gracias a Dios nací em latinoamerica”.

Ao final da noite, com mais de 35 mil pessoas presentes, restava uma sensação: a de um enorme pertencimento a esta coisa incrível chamada música – algo que não tem fronteiras, por mais que certos ouvidos deem as costas a grandes melodias. “Este não é um concerto de uma trajetória. É onde chegou uma parte da música popular argentina, em busca de qualidade e de contar o tempo que vivemos. Com amor, precisão, arte, estúdio e sala de ensaio. E muita rua, claro. Isso não é a consagração de ninguém, isso é de todos nós, literalmente”, disse Fito Páez enquanto o papel colorido caía em “Mariposa Tecknicolor”, em um discurso que merece ser ouvido em outras partes deste pequeno continente chamado América. Que a festa continue e siga se repetindo.

Foto de Agustin Dusserre

PS: Nos próximos meses, a turnê de “El Amor Después del Amor” continua pela América Latina e pela Espanha, com uma parada programada em Porto Alegre no começo de maio. O espetáculo do sábado em Buenos Aires também foi gravado e exibido ao vivo pelo streaming Star+. Será uma pena se São Paulo e outras cidades do Brasil só assistirem a esse espetáculo pelas telas.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

2 thoughts on “Ao vivo: Fito Páez arranca lágrimas de 35 mil latino-americanos nos 30 anos de “El Amor Después del Amor” em Buenos Aires

  1. Assisti em Porto Alegre, no sábado, foi maravilhoso, emocionante, fascinante, deslumbrante e tudo que é ante possível.

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