Entrevista: “Quero ser uma pessoa melhor”, diz Odair José, que rememora sucessos e fracassos enquanto pensa no futuro

entrevista por Leonardo Vinhas

53 anos de carreira em uma trajetória marcada por apogeu, queda e recuperação, e uma produção celebrada e relevante. Esse conjunto de predicados se aplica para poucas pessoas, e mesmo assim são palavras que contam apenas o básico sobre Odair José de Araújo. Ele é talvez o compositor popular que melhor dialogou com o rock. Ou talvez o roqueiro que mais perto chegou de falar com as massas. Suas melodias simples e eficientes conviviam muito bem com o desejo de sofisticação e evolução que tantas vezes manifestou ao longo da carreira. Mas também é necessário lembrar que, como ele mesmo diz, boa parte da sua carreira foi sem brilho.

Isso porque a frustração com o álbum “O Filho de José e Maria” (1977) provocou um grande desvio de uma trajetória de enorme sucesso, que até então o colocava como um dos artistas mais populares do Brasil. Embora chamado de “ópera rock”, “O Filho de José e Maria” era mais um álbum conceitual sobre um Jesus contemporâneo, negro e meio queer. Se hoje isso soa ousado, imagine em plena ditadura militar! Valorizado pela nova geração como uma espécie de tesouro perdido da música brasileira, o álbum foi massacrado pela crítica e teve vendas decepcionantes, provocando um baque do qual Odair levou muitos anos para se recuperar.

Mas muitos eventos recolocaram Odair em seu próprio caminho, tanto na vida pessoal como na artística. O livro “Eu Não Sou Cachorro, Não”, de Paulo César de Araújo, foi o primeiro deles. Lançada em 2002, a obra coloca os cantores realmente populares dos anos 1970 – como Odair, Waldick Soriano, Agnaldo Timóteo e outros – sob uma ótica até então inédita de artistas que se comunicavam com a massa, e que sofreram tanto ou mais censura quanto os medalhões da MPB incensados pela intelligentsia da época.

Depois veio o celebrado tributo “Vou Tirar Você desse Lugar”, lançado pela Allegro Discos, um bom disco em parceria com Zeca Baleiro (“Praça Tiradentes”, de 2012), e uma sequência de três discos que eram, literalmente, um melhor que o outro: “Dia 16” (2015), “Gatos e Ratos” (2016) e “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio” (2019), todos mais próximos de um estética roqueira, “guitarreira”, com letras que, como nos melhores momentos de sua carreira, cutucaram a hipocrisia da sociedade brasileira.

Mas Odair quer mais. Mesmo aos 74 anos, há vontade de fazer algo diferente, maior e mais relevante. E esse disco vindouro foi o pretexto para uma longa conversa, via chamada de vídeo, com o Scream & Yell. Este repórter havia tido algumas longas conversas com Odair José antes de sua apresentação na Festa das Nações de Paraíso do Norte (PR), e aproveitou as informações para fazer uma pauta com Odair que falasse não apenas sobre questões do passado e do presente, mas sobre o porquê de uma carreira artística, sobre as lições colhidas na frustração, sobre arrependimentos e sobre detalhes que tornam a experiência musical mais prazerosa. Enfim, sobre a vida. E Odair tem muito a dizer. Senta que lá vem boas histórias.

Você lançou o “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio” em 2019, um disco no qual você colocou muito empenho, e com o qual você estava bastante satisfeito. A turnê dele estava indo muito bem até que ela foi interrompida pela pandemia. Como isso impactou sua relação com esse material? Você tem a intenção de voltar a explorar esse disco em shows ou acha que o que aconteceu foi uma fatalidade e agora é melhor deixar para trás?
Deixar para trás, não. Esse disco foi um projeto para 2019, que foi pensado em uma medida que… Na verdade, eu gosto de dizer que ele é o segundo “O Filho de José e Maria”, considerando o formato. E que será também o formato do meu novo álbum, que eu ainda não gravei, que é o “Seres Humanos”. Que formato é esse? É o de músicas que se encaixam em uma ideia única. No caso do “Filho de José e Maria”, eu falava de um personagem, no “Ouvindo Rádio…” eu falei de um local onde as coisas todas aconteciam, e nesse próximo que epretendo fazer vou falar da gente como ser humano, de um modo geral. Ou seja, vou fazer uma leitura do ser humano da forma que eu o estou vendo. O “Hibernar” foi um disco muito oportuno praquele momento. Você sabe como são as gravações de um disco: você pensa uma coisa, vai para o estúdio e, na maioria das vezes, não acontece muito bem o que você pensou. Às vezes você vai para um outro caminho, se surpreende com coisas que aparecem na hora ali no estúdio, às vezes positivamente e outras até negativamente. Mas o “Hibernar” chegou num objetivo bem próximo do que tinha sido pensado, e ia render muito no palco. Nós fizemos alguns shows antes da pandemia interromper tudo, e as pessoas estavam achando bem legal, o disco crescia bastante no palco, mas aí aconteceu o que aconteceu. Até hoje estou tocando algumas coisas do disco, qualquer música que eu coloco no setlist a banda gosta de tocar. Quando fiz “O Filho de José e Maria”, houve uma rejeição por parte do público e da mídia – de tudo, né? Uma rejeição geral, porque era diferente daquilo que as pessoas estavam acostumadas. E aí, com o “Hibernar…”, eu falei “pô, [essa rejeição] é uma coisa que a gente tem que evitar”. Você tem que lembrar que as pessoas não estão acostumadas a ver o diferente. Ao mesmo tempo, já falei várias vezes que, quando você repete fórmulas, não está fazendo arte, e sim negócios. Não estou aqui para fazer negócio, estou aqui para fazer – pelo menos no meu entender – arte. E agora, quando a gente toca as músicas do “Hibernar…”, como por exemplo, “Rapaz Caipira” ou “Fora da Tela”, as pessoas gostam. Mesmo elas tendo uma forma harmonicamente nova ou trazendo um modo diferente de dizer as coisas, as pessoas gostam. Para mim, isso já bastou.

Quando se fala nos seus discos mais recentes – “Dia 16”, “Gatos e Ratos” e “Hibernar…”, eles são sempre apresentados como uma trilogia, por causa de uma suposta identidade estética. Reconheço que, para mim, os três soam diferentes entre si. O que vejo de semelhança entre eles é um desenho de produção mais contemporâneo, a proposta mais roqueira. Mas a temática, até algumas questões estéticas, são diferentes, principalmente comparando o “Dia 16” com o “Hibernar…”. Mas de qualquer forma, você está dizendo que eles não são uma trilogia de verdade, é isso?
Não, não. Eles são uma trilogia, sim. A ligação entre “O Filho de José e Maria”, “Hibernar” e esse “Seres Humanos” é que eles têm o contexto de uma música ligada na outra. Uma ópera, né? Como se fosse uma operazinha. Mas esses três discos mais recentes são uma trilogia. Concordo com você que são diferentes, mas esteticamente há um eixo comum. Em alguns momentos, acho que é até besteira fazer mais discos, penso comigo “não vou gravar mais nada”. Quando fiz o disco “Praça Tiradentes” (2012) com o Zeca Baleiro, foi porque ele insistiu para fazermos um disco juntos, que ele queria produzir e tal. Eu falei: “Não estou a fim de gravar mais, Zeca. Já fiz muita coisa”. Ele retrucou: “Então vamos fazer mais um, que seja o último”. Fiz. E depois lancei mais três discos, e o Zeca até hoje briga comigo: “Pô, mas não era o último?” (risos) Mas eu fiz porque, quando fui para o “Dia 16”, percebi que eu poderia fazer naquele momento um disco como eu fazia no início da década de 1970: eu penso o disco, faço as canções, penso a capa e penso como vai ser gravado, como vão ser os arranjos e tudo. Aí vou para o estúdio e gravo sem ninguém se meter naquilo. Enquanto estou fazendo um disco assim, aceito às vezes que o músico, o cara que está me ajudando, dê uma ideia, mas a ideia não pode tirar o meu foco. Quando gravei e fiz sucesso, aquele sucesso muito grande lá na década de 70, foi porque me foi permitido isso, porque conquistei esse direito. Porque quando eu gravava e fazia muito sucesso, não tinha esse negócio do produtor ou da gravadora se meter. Quando isso acontece, meu trabalho deixa de ser interessante – pelo menos para mim. Do ano de 1980 para a frente, foi quando deixei as pessoas se meterem. Porque depois do “Filho de José e Maria” houve aquela rachadura, aquele terremoto, aquela fissura toda. Os dois discos seguintes eu ainda fiz pela minha cabeça, que foram o “Coisas Simples” (1978), que acho um disco muito bom e é pós-”O Filho do José e Maria”, e depois faço aquele disco da capa branca, que acho que não tem título, ou se tem, se chama “Até Parece um Sonho” (nota: na verdade, se chama apenas “Odair José”, de 1979), que teve umas músicas em trilha de novela, essas coisas. Até então, era sempre com o Azymuth. Aí, depois de 1980 para frente, eu deixei a gravadora tomar conta. Ela ia lá e contratava, porque dizia que eu era maluco, estava ficando doido, tinha umas ideias que não funcionavam, etc… Foi quando comecei a fazer discos da maneira que os produtores e as gravadoras queriam. E isso não é legal. Agora, do “Dia 16” para cá, voltei a fazer isso. E faço aquilo que me dá na telha porque me permito, porque o estúdio é meu, a grana é minha, quem faz sou eu, quem vai lançar sou eu, então… (risos)
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Quando você foi tocar em Paraíso do Norte em novembro do ano passado, conversamos e você falou que o “Seres Humanos” é “o disco que você sempre quis fazer”. Mas você acabou de dizer que houve um período em que você fazia os discos segundo a sua cabeça, e que você vem fazendo isso novamente desde o “Dia 16”. Em que sentido, então, esse novo disco vai ser diferente?
Por que eu vou para o estúdio? Aos 74 anos de idade, 53 gravando, vou para o estúdio para desenvolver aquela ideia. Não a ideia que alguém está mandando para você participar apenas como um intérprete ou coisa do gênero, ou até mesmo como um cara do mercado. No “Seres Humanos” e nos outros, a ideia é sempre passar uma conversa, uma mensagem para as pessoas. Essa é a primeira colocação: quero fazer músicas que consigam levar as pessoas a uma reflexão. Geralmente, os meus convites são para refletir sobre si mesmo, esse é o primeiro barato. O que acho é que agora vou fazer uma reflexão nova dentro do meu trabalho. Paralelo a isso, a gente vai tentar fazer uma coisa nova no jeito de gravar, de tocar. Não digo de arranjo, porque isso é algo que a gente faz muito na base da bandinha mesmo, da coisa de garagem. Evidentemente não vai trazer muita novidade, até porque o mundo todo já fez, e cada um só vai repetir as coisas à sua maneira. Mas o que me leva a achar que esse disco vale a pena ser gravado é esse pensamento da mensagem.

Ainda nesse aspecto da mensagem: em várias entrevistas do “Hibernar na Casa das Moças…”, você falou que nunca vivemos tempos tão ruins como o que então vivíamos. Passados quatro anos, temos essa ascensão do autoritarismo no mundo, um cenário econômico desolador, uma forte exploração do trabalho, toda a questão climática, uma série de coisas muito ruins. Já que o “Seres Humanos” se propõe a falar da humanidade, a refletir sobre ela, você acha que vai conseguir apontar alguma ideia de esperança pra esses tempos? Ou vai acabar sendo algo mais visceral, de desabafo e crítica, como foi “Hibernar…”?
Eu sou uma pessoa otimista. Nasci otimista e sou sempre assim, mesmo quando a coisa desanda. Mas nunca fui otimista demais. Meu otimismo é no sentido de “se não tem outro jeito, vamos encarar, e não entrar em desespero”. Mas continuo achando que tanto política tanto economicamente, o mundo está de ponta-cabeça, como digo na canção “Hibernar”. Mas será que a gente não pode dizer que o mundo está de ponta-cabeça desde a Idade da Pedra? Desde as Cruzadas? O planeta, de modo geral, não está legal. Tem coisas que me incomodam profundamente. Por exemplo: não sou contra a agricultura, mas o agronegócio… Dizem que o Brasil é o celeiro do mundo, um grande produtor de alimentos, “onde se planta tudo dá”… e tem um monte de gente passando fome? Posso estar totalmente enganado, pode ser que as pessoas que me escutem e digam que eu não entendo de nada, mas acho o agronegócio, como é hoje, um negócio que vai ser bom só para quem tem grana, malandro. Isso não está melhorando o planeta em nada. O planeta está sendo machucado constantemente, e não é só a falta de respeito pela árvore. Não há respeito pelo bicho, não há respeito por nada. O mundo tem uma preocupação muito grande com o desmatamento no mundo inteiro, mas você vê que é uma coisa que não tem muito como frear, fica só no blá blá blá, como diz aquela menina que anda pelo mundo protestando (Nota: a Greta Thunberg). Tem um lado da política que se preocupa com o ser humano, com o planeta. Inclusive acho que agora, no Brasil, foi eleito um governo que se preocupa com isso. Mas essa não é a regra, é a exceção. Não sou nem de direita nem de esquerda, eu sou a favor das coisas que acho justas, como a igualdade. Não consigo entender a desigualdade. Não aceito o cara ser a favor de um regime de governo que não tem consciência social. Se você não tem consciência social, para mim, você não serve como pessoa, não será um ser humano legal. Tudo passa pela política, pelo mundo em que nós estamos vivendo, e o “Seres Humanos” vai ser tipo um alerta. Não será apenas um desabafo, como você colocou, mas também crítica. Eu também me coloco aí como ser humano, fazendo uma crítica, mas algo assim: “Ó, presta atenção na hipocrisia da forma que você se comporta, presta atenção na ambição, no egoísmo e presta atenção, principalmente, na ‘involução’ do ser humano como pessoa”.
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Você citou o governo atual, legitimamente eleito. De alguns anos para cá, você passou a ter uma atuação mais direta com questões políticas. Sua obra sempre teve um caráter social, mas a partir do momento da prisão do Lula, você adotou um envolvimento mais direto. Tocou em vários eventos Lula Livre, disse abertamente que a prisão foi arbitrária, levou tudo isso como parte da pauta não só de entrevistas, mas também em momentos que você falava ao vivo. O que te levou a assumir essa atuação mais explícita e mais direta nesses últimos tempos?
Eu achei necessário, vamos colocar assim. Por exemplo, uma vez nós estávamos na Praça da República, em São Paulo, participando do um daqueles momentos do Lula Livre, e eu soube que a Gleisi Hoffmann teria comentado: “ah, que interessante, que engraçado né? Eu não sabia que podia contar com o Odair José e agora ele está aí, ativamente participando e tal”. Eu não estava lá, mas o meu filho Rafael (nota: também produtor dos shows de Odair) estava junto nesse momento e falou: “É que a gente só aparece quando realmente achamos necessário aparecer”… Como você disse, eu participava politicamente com as minhas músicas. Sempre bati naquilo que eu acreditava que tinha que bater. Não tinha música falando de empregada doméstica, isso nem era visto como profissão, e aí eu fui lá falar. A puta estava sendo discriminada, eu fui lá falar. A pílula anticoncepcional era vendida como coisa do diabo, eu fui lá falar. A minha função como compositor sempre foi de levar a minha opinião, mas de forma a levar o público a prestar atenção, não de pregar. Por exemplo, no caso da pílula: eu fui até o Governo Federal para tentar liberar a obra, que tinha sido proibida depois de ter sido lançada. Me disseram que tinha sido porque o governo tinha um projeto de distribuir pílulas anticoncepcionais e que minha música ia contra o projeto. Eu falei que, se deixasse a minha música tocar no rádio, o projeto daria super certo. Disse até que podiam usar a música no projeto, se quisessem. Porque eu falo pra pessoas que tem a mente mais fechada, que são mais ressabiadas com as coisas, são mais simples. Elas não têm informações aprofundadas. O que eu estava tentando dizer é que o anticoncepcional é uma coisa comum, é uma coisa apenas pra mulher ter mais liberdade do corpo. Mas não adiantou, a música continuou barrada, e mesmo proibida foi um sucesso. E o projeto deles foi um fracasso danado.

Mas voltando à questão do engajamento atual…
Então, me incomodava aquilo que eu estava vendo. Conheço o Lula desde a época em que ele apareceu na vida pública, como um sindicalista, lá por 1978. Foi mais ou menos nessa época que ele apareceu para o Brasil. Eu já tinha visto o Lula andando com Chico Buarque no Rio, em um campo de futebol onde a gente jogava, que era na fábrica da Polygram. Então eu já sabia das intenções dele, e quando ele foi eleito, fez um excelente governo. Por duas vezes. Foi excelente pro povo, pro Brasil, pra todo mundo, tanto que o Lula é respeitado no mundo inteiro. Aí, de repente, eu comecei a ver umas coisas que não batiam uma com a outra, e que indicavam que o Lula podia ser preso. E isso era justamente por uma questão política, tanto que o cara que o prendeu hoje é Senador da República, né? Você vê como a coisa era mal-intencionada mesmo. A música “Gatos e Ratos” foi feita nesse momento, nasceu dessa percepção. Eu não sabia ainda qual era o rolo, porque a coisa só foi ficar clara quando tiraram a Dilma, e ficou mais clara ainda em 2018. Então eu me envolvi diretamente porque eu acreditei naquilo. Eu acreditei que o Lula não merecia ser preso, que o Brasil estava sendo sacaneado. Eu falava uma frase no palco em todos os Lula Livres que fiz, que era: “Não podemos virar as costas para quem sempre nos olhou de frente – Lula livre!”. Até brinquei com ele em Recife, quando ele já tinha saído da prisão e a gente se cruzou no último Lula Livre com a presença dele. Nem sei se ele se recorda, era tanta coisa na cabeça dele naquele momento, mas eu disse: “Não podemos virar as costas pra quem sempre nos olhou de frente – Lula livre, Lula inocente, e daqui a pouco, Lula presidente”. Ele coçou a cabeça, disse que não sabia se ia concorrer, que era muito complicado… Mas sim, me envolvi porque eu acreditei e acredito que é a melhor coisa que podia acontecer ao país era o Lula voltar a ser livre. A prisão dele foi uma sacanagem de alguns setores da sociedade, e me lembro que eu via muito a mídia caindo nas histórias do juiz [Sergio Moro] e mostrando aquilo como se fosse uma grande verdade. Não era, era uma grande mentira, e eu peguei tudo isso como se fosse uma cruzada. Graças a Deus, deu tudo certo.

Diante disso, como foi a sensação de tocar em Brasília como uma das atrações da festa da posse?
Eu sempre acreditei que a posse iria acontecer. Toda a movimentação para que ele saísse da prisão. Ele saiu, rolou, já estava bom. Mas aí, de repente, recupera os direitos políticos. Pô, maravilha! Agora vamos ver se o cara se elege. Mas criou-se uma coisa tão forte de que o cara é ladrão, desonesto, corrupto, não sei o que. Isso é tudo inventado! Todo governo tem seus erros, o sistema tem falhas, às vezes há falhas na sua própria administração familiar. Então, quando o Lula ganhou, eu fiquei muito feliz. Nem fazia muita questão de ir tocar na posse, porque eu sabia que já tinha muita gente indo. Até comentei com o Beto [Vizzotto, prefeito de Paraíso do Norte] que eu não iria, e ele disse que eu tinha que ir, porque tinha tocado em todos os eventos Lula Livre. Então eu fui e foi muito legal. Fiquei muito feliz de ver aquela multidão feliz. Foi um momento único e bom.

Retomando as questões artísticas: os seus últimos discos tiveram a participação do seu filho, Júnior Freitas. Ele toca na sua banda há um bom tempo, inclusive. Ele chega a ser um interlocutor musical, alguém que está participando do processo criativo junto com você, ou mais um integrante da sua banda, sem tanta participação direta na concepção das coisas?
Bom você ter tocado nesse assunto. Quando fiz o “Dia 16”, liguei pro Alexandre Fontanetti [do estúdio Space Blues] e perguntei se ele estava com o estúdio disponível. Ele perguntou como eu pretendia fazer, e eu disse que não precisava de músicos, era só arrumar o estúdio e eu ia levar meu baterista e meu filho para tocar. Ele ficou: “Como assim?”. O Junior não é tanto um virtuose, mas ele toca bem vários instrumentos. Se você der um tempo para ele, ele toca qualquer coisa. Ainda não se meteu a tocar bateria, mas programa bateria, sabe tudo desses plugins da vida, ele tem uma artilharia de coisas. Então ele é importante, mas não tem uma participação direta na criação da ideia. A música, os discos, são meus. E ele também não decide como eu vou gravar, isso eu decido. Mas os músicos sempre dão ideias, dizem “por que você não faz assim em vez de assado?”. E eu os ouço, avalio, e às vezes mudo. Isso me ajuda. Eu tinha vontade de fazer esse disco agora, o “Seres Humanos”, com o Mamão (Ivan Conti), o Alexandre (Malheiros) e o Kiko (Continentino – todos integrantes do Azymuth). Pretendia ir para o estúdio para tocar com eles, e depois eu ia fazer as partes das guitarras da minha maneira. Já ia deixar a base de baixo, bateria e teclado com eles. Mas isso está ficando cada vez mais distante, mais inviável, até pela nossa idade e porque moramos em cidades diferentes. Além disso, hoje em dia as pessoas não estão muito a fim de ir para um estúdio. Quando você procura a pessoa, ela diz, “Ah, você manda para mim que eu faço aqui no meu home studio, tá?” As pessoas estão muito nessa vibe, então isso (com o Azymuth) está cada vez mais distante de acontecer. Então devo gravar esse da forma que eu gravei o “Dia 16” e o “Gatos e Ratos”, que foi com o Júnior. Ele toca contrabaixo, guitarra, teclados, até programa os metais, como foi no caso do “Gatos e Ratos”. Só que nesse eu vou usar os instrumentos verdadeiros, com os músicos de sopro que eu levo para os shows. Então, por enquanto, a ideia é fazer tudo com o Júnior e depois colocar os sopros. Quando você escreveu sobre o show de Paraíso, achei interessante que você falou que não sentia falta do Azymuth nas músicas do “Filho de José e Maria”. E é verdade. Ninguém vai esperar que o Azymuth repita no palco aquilo que está no disco. Não é do perfil deles esse tipo de coisa, eles tocam cada vez de um jeito. Vão seguir a partitura, vão fazer interpretação deles. Já quando eu toco “O Filho de José e Maria” com a minha banda, eles procuram fazer exatamente o que está no disco. Agora mesmo o Rafael tinha me dito que existe umas possibilidades para esse ano de eu fazer alguns festivais com o Azymuth tocando “O Filho de José e Maria”, como nós fizemos no Sesc em São Paulo. Fico muito feliz com a possibilidade disso acontecer, porque serão momentos maravilhosos, mas trabalhar com músico muito virtuoso é complicado, porque você pede uma coisa, mas ele não vai fazer como você quer, porque ele acha que do jeito dele é melhor. Ele não consegue entender que a ideia da música é minha, e que se ele fizer do meu jeito, chega dentro da minha ideia. E se fizer do jeito dele pode ficar muito melhor, mas não é a minha ideia, então tocar com músico virtuoso é problema. O Júnior é cuidadoso com o que ele faz. Se você disser pra ele, “Eu quero esse baixo soando igual aquele negócio do Paul McCartney”, ele vai lá e vai fazer, entendeu? Como tem um estúdio aqui em casa, possivelmente esse grosso inicial vai ser com o Junior, então sim, ele tem uma importância muito grande nesse sentido. Mas no disco “Hibernar”, o Junior estava em outra pegada, e quem fez esse papel foi o Marcos Bispo, que é o baixista da minha banda.

Voltando ao “Filho de José e Maria”, tem duas coisas sobre ele que eu queria te perguntar. A primeira: você tinha uma ideia original para esse disco, que envolviam 24 canções, muitas das quais você nunca apresentou. Sei que você é um cara que gosta de andar para a frente, mas você nunca cogitou apresentar esse disco da maneira que você idealizou, resgatando inclusive as coisas que nunca foram lançadas?
Sim, até teria vontade de fazer isso. Esse disco foi pensado como uma banda de rock, tá? Tem pessoas que falam do “Tommy”, do The Who, até minha esposa já falou isso, mas eu nem ouvia The Who direito, as referências eram outras. Eu nunca disse que era uma ópera rock, disse que era uma ópera (risos). Depois que o Azymuth entrou na jogada, virou uma ópera soul (risos). Mas a ideia inicial era uma coisa de rock mesmo. Eu tinha visto aquele sucesso enorme do disco “Frampton Comes Alive”, do Peter Frampton, um disco duplo que vendeu 20 milhões de cópias, e tinha as coisas de rock de guitarra de que sempre gostei muito, sempre segui muito os guitarristas ingleses. As pessoas estranham quando falo isso, mas eu gosto de tudo. Sempre gostei do James Gang, do Jimi Hendrix, gostava da guitarra do Jimmy Page e do Eric Clapton. Montei um grupo que ficou conhecido como grupo Pílula, por causa do sucesso da minha música. Daí desmontei essa banda, fiquei só com o Moisés, tecladista, e montei uma outra banda que tinha Antônio Pedro, que depois foi tocar na Blitz, no baixo. Essa era para ser uma banda de rock, e fiquei ensaiando essa banda num estúdio que tinha ali no Morro do Vidigal, logo na subida, por um tempão. Por seis meses fiquei ensaiando com essa banda pra essa ópera, e já com o contrato assinado na BMG. Quem contatava as pessoas nessa época era o Guilherme Araújo, então meu produtor. Fiquei ensaiando as 18 canções, mas descobri que várias delas tinham sido mutiladas pela censura, um tal de muda aqui, tira de lá… Se fosse para mudar as letras, eu não iria gravar. Então terminamos gravando 10 faixas, e fora da ordem que eu tinha pensado. O diretor que estava na BMG nessa época já não era o cara que tinha me contratado. Era o Durval Ferreira, da bossa nova, excelente guitarrista, do mesmo nível de Roberto Menescal, muito educado, muito gentil, como todo mundo da bossa nova. Ele me dobrou, dizendo que a minha banda não era legal, entendeu? Que a minha banda era uma merda e que eu tinha que gravar com o Azymuth. Então já desmontou tudo ali, já tinha o negócio da censura ter proibido as músicas, mas mesmo assim eu fui para o teatro com a banda. Eu e o Guilherme Araújo levamos esse show com a banda para o teatro e foi um fracasso, a imprensa dizia para não assistir porque era uma droga. Chegamos a fazer com o teatro todo vazio, então aquilo foi ficando muito deprimente. Na época, eu estava também cheirando todas (risos), estava meio doidão, e fiquei meio estressado com aquilo tudo. E parei. Tempos depois apareceram pessoas que se interessaram em botar isso no palco conforme eu queria. Houve interesse da TV Globo, um dos seus diretores queria transformar o disco num musical, uma Sexta Nobre, fazer ali a operazinha do “Filho de José e Maria” na íntegra, com atores, com balé, com tudo. Eu achei a ideia ótima, falei pro Guilherme negociar com eles, e ele pediu uma fortuna. Os caras responderam que, quando a coisa fosse um sucesso danado, a fortuna seria paga (risos). Eles estavam querendo ajudar, mas a coisa não rolou. Mas existe esse interesse sim, e poderia ser feito.

A outra questão é que esse disco acabou se tornando mítico, né? Tem essa mitologia que se cria em torno daquilo que fica meio proscrito. E toda essa atenção acaba eclipsando o trabalho que você fez antes, que você e boa parte do seu público consideram tão bom, se não melhores, que “O Filho de José e Maria”, como o “Assim Sou Eu” (1972) ou o disco de 1973, sem título. Chega a te incomodar que isso aconteça?
Não, não chega a me incomodar, porque aqueles discos são reais, né? Eles são reais, são muito bem-feitos. Aliás, o “Assim Sou Eu” fez 50 anos agora em 2022, e esse de 73 vai fazer 50 anos agora. Quando eu saio da CBS e vou para a Philips, gravo o “Assim Sou Eu” e saiu um disco acima da média. Estou falando do nível de coisa pop, do meu universo, não estou falando de MPB, de samba. Foi acima da média nesse meu universo pop, por isso que ele arrebentou tudo. Tem umas parcerias com o Jorge Paiva, que é um pianista do Rio de Janeiro, de bossa nova, que me procurava para fazer as letras para as melodias dele. Ele trazia aquelas melodias numa forma difícil de entender, mas a gente conseguia fazer umas coisas boas. Esse disco é muito bem-feito, tocado por grandes músicos. E o disco de 73 é um assombro, porque as 12 faixas fizeram sucesso. Com respeito ao “Filho de José e Maria”, não me incomoda que ele seja um marco, porque eu acho que eu não seria o Odair José que sou hoje se ele não existisse. Eu não seria o Odair José de verdade. E também não acho que ele apaga esses trabalhos que você citou. Ele é mais mítico, sim, mas você põe “O Filho de José e Maria” para tocar hoje, não sei se você concorda com isso, mas eu me impressiono com a qualidade da das gravações. Esse, os que você citou, e também os 1974 (“Lembranças”) e de 1975 (“Odair José”) são muito bons. Mas aí já entra o de 1976, “Histórias e Pensamentos”, que é quando eu já estava percebendo que eu estava repetindo uma fórmula, que estava fazendo a mesma coisa, e que isso não estava legal. Aí mudei.

Esses discos todos trazem mesmo um crescendo, uma identidade. Mas acho que já no de 1975 essa fórmula começava a aparecer.
Olha, só como informação: o disco de 1973 foi um dos primeiros a vender um milhão de LPs no Brasil. Isso não era normal, as pessoas vendiam no máximo 500 mil, 400 mil. Nessa época, foi feito um estudo para saber por que o disco vendeu tanto. Isso foi uma iniciativa do André Midani, que era o presidente da Philips e um cara além da curva, né? Ele botou o Nelson Motta na minha cola para ele fazer uma análise sobre o que eu pensava, o que que eu ouvia. O Nelson ficou indo pra minha casa, fuçando nos meus discos, ficava vendo os livros que eu lia, essas coisas. Conversava muito comigo. Aí o Nelson chegou a uma conclusão: que eu era um cara cabeça e tudo, mas que eu cantava muito mal (risos). O cara vendeu um milhão de cópias mas canta muito mal, então tinha que fazer umas aulas de canto (risos). E eu fui fazer. O Nelson não é bobo, né? Ele devia estar certo. Me indicaram uma professora de canto na Gávea, a dona Fernanda, uma senhora que dava aula para todos os atores da Globo. Fiz por volta de seis meses de aulas de canto com ela e aí gravei o “Lembranças”. Cara, estou cantando muito ali! Já é um disco diferente do de 1973, mas quando chega 1975, você já vê essa coisa de repetição mesmo. E em 1976 ficou mais claro ainda. Se as pessoas não tivessem implicado tanto com o meu trabalho de 1977, eu teria feito coisas maravilhosas. Mas eles implicaram tanto e, naquela época, você precisava da gravadora, não é como hoje em que eu posso vir para casa e fazer meu disco. Naquela época você precisava deles para ir para o estúdio, para lançar. Eles me atrapalharam bastante. Acabei fazendo 20 anos de coisas insignificantes.

Óbvio que isso tudo vai te dar um incômodo, um desconforto. Isso nem se fala. Mas te dá também uma sensação mais pesada, de “vida jogada fora”, de possibilidades abortadas? Ou você conseguiu chegar a algum tipo de paz com isso?
Eu diria para você que não chega a ser uma coisa que me assombra. Mas em paz, também não. Eu hoje fico olhando a minha vida mesmo, junto com meu trabalho, de 1980 a 2000… Cara, eu desperdicei tudo. Você pode dizer que tem discos desse período que venderam bem, e tem mesmo, uns que venderam 300 mil, 200 mil cópias. Eu tenho um disco de 1990 que vendeu quase 500 mil cópias. Ficou ruim? Não. Mas não tem nada a ver com nada disso que estamos conversando agora. Me perdoem as pessoas que consumiram o que eu fiz nesse período, mas são discos malfeitos. Não malfeitos no sentido musical, porque foram feitos por grandes profissionais, têm qualidade. Mas não são bem-feitos enquanto trabalho de um artista. Eles são muito fracos, e isso me incomoda bastante. A minha vida, paralela a isso, também desandou totalmente. Fiquei muito fragilizado depois do “Filho de José e Maria”. E me cobro isso hoje, diretamente. Me cobro com a minha mulher, com todo mundo. Digo: “Pô, cara, fiz besteira pra caramba, eu joguei 20, 25 anos da minha vida fora, nos quais eu poderia ter me enriquecido financeiramente”. Não sou rico, mas poderia ser bilionário hoje. Agora, isso me incomoda menos. Claro, gostaria de ter guardado um pouco mais do meu dinheiro para ter uma estrutura melhor, não ficar me desesperando às vezes, mas o que me incomoda profundamente é o negócio do trabalho em si.

Você é um compositor altamente regravado, né? Muita gente gravou suas composições em diferentes períodos da música brasileira. Teve alguma releitura de alguma composição sua que te fez pensar, “pô, esse artista trouxe uma coisa que eu não tinha visto em algo que eu mesmo fiz”? Talvez algo no tributo “Vou Tirar Você Desse Lugar”, lançado pela Allegro Discos?
Eu já me sinto mais à vontade para falar sobre isso. Você falou do tributo, e praticamente 90% do que foi feito ali me impressionou. Tipo, “porra, mas como é que pode?” Ficou muito bom. Eu soube que ia rolar esse tributo pelo Sandro Bello, da Allegro Discos, mas eu não participei de nada. Eu achava que tributo era coisa pra quem já morreu, mas disse pra ele ficar à vontade, até porque eu é que não ia proibir o cara. A ideia foi dele, ele que lançou. Esse negócio de internet estava começando, ele lançou a ideia, e as pessoas foram fazendo. Ele disse que recebeu mais de 50 gravações, e escolheu aquelas que estão lá (nota: ao todo, 18 canções). Tem Zeca Baleiro, Paulo Miklos, Pato Fu, Mombojó, Leela, um monte de coisa, me desculpem as pessoas de quem não estou lembrando. Mas são muito bons. Agora, tem um lance curioso sobre uma regravação em 1991. Aquele meu disco de 1990 tinha vendido muito, e nessa época, Leandro e Leonardo começaram a fazer muito sucesso. Até então eu não os conhecia, mas acabei cruzando com os dois em um programa de televisão, e com o empresário deles, que era o Franco (Scornavacca), pai do pessoal do KLB. Ele me apresentou os dois, e o Leandro falou que tinha vontade de regravar uma música minha, e eu disse para ficarem à vontade. Eles queriam gravar “Cadê Você”, a faixa 5 daquele disco de 1973. A faixa 5 é aquela que ninguém acredita, né? (risos)

Segundo o Sergio Sampaio, é a “Faixa Seis”.
Olha, eu poderia explicar uma coisa pro Sérgio Sampaio – conheço ele de quando ele era locutor na rádio Mauá, no Rio de Janeiro, e mais tarde o vi na sala do Raulzito (Raul Seixas). É o seguinte: a gente aprendia uma coisa com o marketing de vendas, que era sempre colocar músicas boas nas faixas 1, 3 e 6, porque eram essas que o lojista colocava a agulha para ouvir. A segunda, quarta e quinta, ele nunca ia ouvir. “Cadê Você” era uma faixa cinco, e mesmo assim eles queriam gravar. Ele me apresentou o Leonardo e ele cantou a música, mas disse que achava que estava faltando um pedaço de letra. Eu até pensei que ele tinha aprendido a música com aquelas compilações em que só toca um pedaço, mas quando ele cantou, vi que a letra estava certa (risos). Aí eles perguntaram: “Mas é só isso?” (risos)… Eu falei que era pequenininha mesmo… Aí ele me disse que precisava de uma exclusividade, que eu deveria falar com a editora para dar a eles uma exclusividade de seis meses para que ninguém mais gravasse. Não entendi o porquê, mas ok, fui lá e pedi. A editora também não entendeu (risos), mas ele, Leandro, jurava que ia estourar, o Franco também. Aí, tempos depois, eu saí com a minha esposa para ir a algum lugar, a gente andava muito ali pelo Itaim, e estávamos descendo a rua Tabapuã, acho, quando ainda tinha aquelas lojas de discos que botavam os LPs para tocar na porta – hoje em dia não existe mais esse tipo de coisa. Mas eu passei e vi o disco deles tocando, e estava ali “Cadê Você” como faixa 1. Depois aquilo começou a tocar no rádio, foi a primeira música que eles trabalharam, eles começaram a cantar na televisão, e estourou, o disco vendeu 4 milhões de cópias. Só que eu achei muito estranho o arranjo. Um compasso que não era nada daquilo, e eu fiquei meio com o pé atrás, falei: “Esse negócio não ficou legal”. E aquilo só tocando no rádio, tocando, tocando… Passou o tempo, e eu me acostumei tanto com a coisa que hoje, no final dela, eu uso um pedaço do arranjo deles. Eles mudaram, e realmente ficou muito bom.

Passou um tempo, cruzei com o Leandro, que era quem pensava o repertório da dupla, e ele disse que estava procurando músicas para gravar, e falei: “Cara, regrava outra música minha”. Eu queria que ele gravasse “A Noite Mais Linda do Mundo”, mas ele disse que estava pensando em gravar outra, uma que fiz e o Ney Matogrosso gravou, “Cante uma Canção de Amor Só pra Mim” (nota: na verdade, o título é somente “Cante uma Canção de Amor”). O Leandro era uma figura, olha onde esse maluco foi! Não sei se você conhece ela, é do disco “Bandido” (1976): “cante uma canção de amor só para mim, isso vai me ajudar a viver”… Na época, o Ney também era empresariado pelo Guilherme Araújo, que pediu que eu fizesse uma música pra ele. Passei pro Roberto de Carvalho, que era o guitarrista do Ney, e ele pegou no ato. O Leandro queria gravar aquela música, achava que ela tinha que ser regravada, já tinha falado pro Leonardo aprender ela. Mas aí logo em seguida ele morreu, não regravou e o Léo também não regravou. Agora, eu tive regravações que de princípio levei um susto. A saudosa Ângela Maria, minha amiga, regravou uma música minha daquele disco meu de 1979, que tem “Até Parece um Sonho”, foi um disco bem-sucedido depois daquele fracasso que foi “O Filho de José e Maria”, que foi uma coisa horrível… Mas, na verdade, “O Filho de José e Maria” não foi bem um fracasso. Ele vendeu mais de 100 mil cópias, mas para quem estava esperando vender 1 milhão, parar o mundo… Teve o “Coisas Simples”, que passou desapercebido, mas esse até fez sucesso, e a Angela Maria regravou “Até Parece um Sonho”. E eu fui convidado pelo produtor José Milton para ir ao estúdio da Som Livre no Rio para ouvir, e eu levei um susto (risos). Porque eu não gostei, entendeu? Fui lá à espera de uma coisa, e era outra. Eu falei que não gostei, e o José Milton ficou bravo! “Ela canta assim mesmo?”, eu perguntei, e ele respondeu que sim, aquele era o jeito dela de cantar. Bravo mesmo, sabe? Estou falando esse negócio em aberto pela primeira vez, tá? Então, esse negócio de regravação é complicado.

Tanto é que eu tenho uma pergunta um tanto delicada para você sobre isso. Dia desses, eu estava em uma loja de discos aí de São Paulo com um cara que é grande fã dos seus discos. Falamos de “Cade Você”, e ele levantou: “alguém já perguntou para o Odair sobre a semelhança entre ‘Morningside’, do Neil Diamond, com ‘Cadê Você’”? Porque as melodias são mesmo bem parecidas. Pesquisei a respeito e não achei nada te indagando diretamente sobre isso, então faço a pergunta agora: essa semelhança é intencional? Porque a canção do Neil Diamond não era tão conhecida quanto os hits dele, e inclusive o Rossini Pinto tinha feito uma versão de “I Am… I Said” para a Diana (cantora e ex-esposa de Odair), que era “Porque Brigamos”, e ficamos nos perguntando se ele não estava já no seu radar. E nessa época, tinha muitas coisas do Raul Seixas que tinham essa coisa de “parecer” com outras músicas…
Primeiro deixa eu contar uma coisa do Raul, depois eu falo do “Cadê Você”. O Raul foi meu amigo na época da CBS, e também no começo da Polygram. A gente sempre teve carinho um pelo outro, mas depois a gente se afastou, porque cada um vai para seu caminho, do seu jeito. Mas enfim, o Raul um dia virou para mim e disse: “Eu tenho uma música que estou terminando e quero que você grave”. Eu disse “claro”, mas falei pra ele correr, porque eu já estava indo para o estúdio. Mas ele não mandava, não mandava, não mandava. Cruzei com ele de novo, ele disse “estou mandando a música”, e eu falei que já estava fazendo as bases, tinha que mandar logo. Aí depois que eu já estava botando voz, chega o Chocolate, que trabalhava na manutenção do estúdio da Philips ali na Rio Branco, e me diz: “O Raul esteve aí e deixou uma música pra você”. Só que, cara, eu já estava botando voz, não dava mais pra incluir no disco. Mas é lógico que fui ouvir, e a canção era “Medo da Chuva”. (canta) “Eu perdi o meu medo, o meu medo, o medo da chuva”. Falei pra ele que era legal e tal, poderia ter gravado, gravaria com o maior prazer porque a música é boa, mas eu já estava botando voz, não ia trazer todo mundo de volta. E ele “de boa, eu gravo ela no próximo disco”, que é o disco dele de 1974 (“Gita”). E depois eu fui perceber que “Medo da Chuva” é um plágio danado! (risos)

Fico imaginando como seria “Medo da Chuva” com a primeira gravação por você! Mas voltando a “Cadê Você”…
O seu amigo tem razão. Eu tive uma época de ouvir muito Neil Diamond. Quando eu estive em Londres pela primeira vez, acho que em 1972, eu assisti a um show do Neil Diamond por lá, e trouxe um álbum dele que ele vendia nos shows. Era um álbum ao vivo que, teoricamente, seria aquele show que eu assisti. Mas é uma coisa gravada nos Estados Unidos, sei lá (nota: Odair provavelmente se refere a “Hot August Nights”, álbum duplo ao vivo gravado em Los Angeles). “Cadê Você” estava lá, quer dizer, era a música do Neil Diamond, uma bem lentinha que, se não me engano, o Moacir Franco tinha gravado uma versão em português (nota: de fato, “Ao Meu Pai”, de Moacir Franco, é uma versão de “Morningside”). Quando fiz “Cadê Você”, te confesso que não fiz uma versão e mudei. Acho que fiquei com o negócio do Neil Diamond na cabeça e de repente fiz aquilo bem ligeirinho, uma coisa rápida. Mas depois que eu fiz, achei parecida mesmo, e cheguei a comentar com o Jairo Pires, que era o meu diretor. Mostrei para ele e disse que achava que estava muito em cima, que eu estava com o pé atrás. Mas ele me disse que não, que a ideia era outra, mas eu sempre fiquei com o pé atrás porque estava muito em cima mesmo.

Pra gente encerrar: o David Bowie disse que envelhecer permite que você seja a pessoa que sempre deveria ter sido. Você é um cara que falou muito sobre arrependimentos em relação a questões de vida, de carreira. Tem o alcoolismo, a maneira como o “Filho de José e Maria” foi percebido, várias questões. Ao mesmo tempo, hoje você passa a impressão de ser um cara bastante seguro, confiante e satisfeito dentro dos caminhos que você escolheu. Então, juntando tudo isso, a pergunta é: como você espera viver esses próximos anos da sua vida, considerando tudo o que já passou?
Boa essa reflexão do David Bowie. Eu não conhecia, mas é muito boa. E é exatamente isso, a leitura é essa mesma. Na década de 1970, eu era exatamente isso que sou hoje. Evidentemente com menos conhecimento de mim mesmo, mas eu era exatamente isso que você está vendo aqui. Nesses 25 anos que eu joguei fora, se eu tivesse agido diferente, eu teria sido muito maior, teria sido muito mais útil como ser humano. A minha grande meta é sempre essa, ser um ser humano útil, ser uma pessoa que faz coisas relevantes, ou que, no mínimo, não atrapalha ninguém, não trava o andar da carruagem. Então acho que hoje estou melhor, muito melhor, e o que eu espero é que eu melhore ainda mais. Quando parei de beber, de usar droga, cruzava às vezes com algumas pessoas que me diziam que minha vida devia estar uma merda, porque eu estava careta total. Mas percebi que a coisa que eu mais prezo hoje é o equilíbrio, e isso é a primeira coisa que a bebida e a droga tiram de um sujeito. Na segunda dose de whisky, na primeira cheirada, o equilíbrio vai embora. O que menos afeta é a maconha, porque o cara fica meio molão, mas não mais que isso. Então prezo muito o equilíbrio, e espero daqui para frente ser cada vez mais equilibrado. Já estou na idade em que daqui a pouco aparece uma doença, até mesmo uma morte repentina – porque estou com 74 anos, isso é um fato do qual não tenho como fugir. Então espero que, dentro desse equilíbrio que te falei, eu seja cada vez mais um ser humano melhor, um profissional melhor, um vizinho melhor, um pai melhor, um amigo melhor, um artista melhor. Enquanto tiver condições, estarei tentando, 24 horas por dia, ser uma pessoa melhor. Vamos ver se consigo.

Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha).

3 thoughts on “Entrevista: “Quero ser uma pessoa melhor”, diz Odair José, que rememora sucessos e fracassos enquanto pensa no futuro

  1. Vinhas, vou confessar uma coisa: terminei de ler a entrevista com lágrimas nos olhos. Pela sinceridade, pela lucidez, pela humanidade que Odair José despeja em cada fala. Uma das melhores entrevistas que li em muito tempo. Em vez de dar parabéns apenas agradeço por ela

  2. Belíssima entrevista! Odair além de um grande artista é também um grande ser humano, o final comprovou isso. Fiquei um pouco chocado com o fato do “Filho de José e Maria” ter sido tão determinante para uma quebra de tesão na sua carreira musical, principalmente por ser um álbum tão bom. Os números vão sempre atrapalhar a mente artística. Espero que esse tesão por fazer coisas novas esteja reaceso na sua alma bonita!

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