Literatura: “Filho de Jesus”, de Denis Johnson, exibe um olhar cru e aterrador de um lado escondido do sonho americano

texto por Gabriel Pinheiro

“Examinei a grande lástima que era a vida de uma pessoa neste mundo” nos diz o narrador do conto que abre “Filho de Jesus” (“Jesus’ Son”), trabalho fundamental da literatura norte-americana do início dos anos 1990, escrito por Denis Johnson, que faleceu em 2017, aos 67 anos. Retirando o título dos versos da canção “Heroin”, do seminal disco “The Velvet Underground & Nico”, de 1967 – “When I’m rushing on my run/ And I feel just like Jesus’ son” – Johnson, nas breves 11 narrativas do volume, mira o olhar para seres que parecem à deriva, junkies e desvalidos, atrás da próxima dose. E a próxima dose sempre pode ser a última. O título é, enfim, lançado no Brasil pela Todavia Livros, com tradução da poeta Ana Guadalupe.

Encharcado, um homem não muito lúcido pega carona com um casal e duas crianças na estrada. Eles não sabem, mas o desconhecido pressente que aquele carro sofrerá um acidente. Ele, então, desperta atordoado e caminha, à procura de ajuda, com o bebê da família no colo, enquanto os demais envolvidos morrem ou agonizam. “’Não tem nada de errado comigo’ – me surpreende que essa frase tenha saído da minha boca, mas sempre tive a tendência de mentir para os médicos, como se para ter boa saúde bastasse saber enganá-los”. Noutro conto, o narrador reencontra um velho conhecido no bar. Após descontarem o cheque de auxílio do governo de um homem já morto, eles compram heroína e cada um fica com metade. A partir daí, destinos opostos se descortinam sob as vidas dos dois personagens: “Eu continuo vivo”. Hospedados com nomes falsos num hotel barato, um casal repete a mesma rotina, um looping autodestrutivo: “A gente fazia amor na cama, comia bife no restaurante, injetava no banheiro, vomitava, chorava, botava a culpa um no outro, implorava o perdão um do outro, perdoava, fazia promessas e levava um ao outro pro céu”.

“Filho de Jesus” se destaca pela construção narrativa. Aquele que nos conta as insólitas histórias do volume ora é agente das ações, está diretamente envolvido naquilo que nos descreve, ora é observador das tragédias alheias. As histórias se conectam por essa voz e pelos temas que se repetem: o abuso de drogas, a desesperança, a violência e a morte. Sendo o próprio Johnson um sobrevivente, tanto das drogas, quanto do álcool, por diversos momentos, o narrador constata que está vivo. Ou melhor, que ainda está vivo.

Se, na maior parte dos textos, a brutalidade do real se impõe sobre o olhar do narrador, o escritor deixa entrever alguns momentos de tocante lirismo, que parecem buscar luz dentro da escuridão. No meio de uma nevasca, dois personagens são surpreendidos por um drive-in em pleno funcionamento, ainda que não tenha nenhum carro parado ali para assisti-lo. “Descemos com cuidado até lá e pulamos a cerca quebrada e ficamos parados bem no fundo. (…) Astros e estrelas do cinema andavam de bicicleta ao lado de um rio, rindo com bocas gigantescas e lindas”. Noutro conto, o narrador entra num bar, onde a jukebox toca baixinho para ninguém e encontra apenas uma mulher. Eles dançam, conversam, se beijam. “Depois beijei a sua boca inteira, minha boca e sua boca aberta, e lá dentro a gente se encontrou”.

Denis Johnson tem uma prosa econômica, são poucos os elementos que compõem as narrativas de “Filho de Jesus”. Mas o clima é construído de maneira exemplar. Com pouco, Johnson traz um olhar cru e aterrador para um lado escondido – mas que se esconde em plena luz, está ali, apenas evitamos não ver – da sociedade norte-americana nas últimas décadas do século XX. Há um sentimento de desolação e abandono que se reflete tanto dentro dos personagens quanto nos ambientes por onde estes circulam. O sonho americano ruiu. Mas sob seus escombros, existe uma possibilidade de reconstrução. “Eu nunca tinha pensado, nunca tinha sequer imaginado, que houvesse lugar para gente como nós”.

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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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