Três HQs: A ideia da dicotomia Homem / Super-Homem em três histórias

texto de Lucas Reis

Alan Moore estabeleceu que o aniversário do Superman é em fevereiro na história “Para o Homem Que Tem Tudo”, de 1985. Em homenagem ao aniversário de Clark “Superman” Kent selecionamos três histórias em quadrinhos do Superman que lidam com a ideia da dicotomia Homem/Super-Homem.

“Para o Homem que Tem Tudo” *, 1985
Roteiro de Alan Moore, arte de Dave Gibbons
Antes da revolução dos quadrinhos com Watchmen, a dupla de criadores Alan Moore e Dave Gibbons já havia se unido para um trabalho com o Superman. Publicada em 1985 nos Estados Unidos na edição “Superman Annual #11” **, “Para o Homem que Tem Tudo” (“For The Man Who Has Everything”, 1985), é a visão de Moore para o Superman. Boas doses de pessimismo são tragadas pelo leitor, já que o roteirista sempre teve uma visão deveras cética do universo dos super-heróis (ao mesmo tempo que era apaixonado pelas histórias). A premissa é simples: Mulher Maravilha, Batman e Robin vão até a fortaleza da solidão para comemorar o aniversário do homem de aço. Antes de entrar, eles indicam a dificuldade de presenteá-lo, pois não é fácil encontrar algo que ele não tenha. Contudo, encontram Superman envolvido por uma planta conhecida como Clemência Negra que se nutre de seres vivos e, em troca, lhes concede seu maior desejo. E qual seria o maior sonho de alguém que é símbolo de esperança na Terra? Um super-herói que pode voar, tem super força, visão de raio-x e mais uma série de poderes únicos? Bem, seria ter uma vida normal. O sonho seria não ser o Superman ou Clark Kent, mas ser Kal-El, o Kryptoniano que leva uma vida comum. O que Alan Moore desenvolve com destreza é destacar que o surgimento do Superman parte de uma tragédia. A explosão de seu planeta natal e a morte de seus pais, de sua família e o apagamento de sua história é algo que nunca poderá ter de volta. Além de perder o passado, Kal-El perdeu também o seu futuro – ao menos, o que seria mais óbvio. Ele se torna alguém condenado a ser um símbolo, alguém maior do que as pessoas que estão ao seu lado. Um sujeito que não tem a possibilidade de errar. Superman não pode fazer escolhas, está destinado a utilizar seus poderes sobre-humanos para os outros, não tendo possibilidades de pensar em si. Alan Moore desenvolve essa imagem de Kal-El sem passado e sem futuro a partir do sonho do personagem. De maneira bem inteligente, há belas rimas visuais nas trocas de narrativas – realidade e sonho – que fazem a leitura ser mais fluida. “Para o Homem que Tem Tudo” pode ser uma história curta, mas é uma das mais instigantes já feitas sobre o Superman.]

* “O Homem Que Tinha Tudo” nas versões de 1991 e 2002 e “Para o Homem que Tem Tudo…” nas versões de 2006 e 2011
** No Brasil, foi publicada originalmente em formatinho na revista Super Powers # 21, de maio de 1991, e republicada em diversas oportunidades.


“Mais Rápido do Que Uma Bala”, 2018
Roteiro de Brad Meltzer e arte de John Cassaday
Antes de tudo, é necessária uma confissão: Brad Meltzer é meu roteirista de quadrinhos preferido. Outra confissão, John Cassaday é meu desenhista de HQs favorito. Sendo assim, quando soube que os dois uniriam seus poderes para uma pequena história na antologia da revista Action Comics em comemoração à milésima edição, o entusiasmo foi grande. O melhor de tudo é saber que os dois conseguiram entregar o que lhes foi pedido: uma excelente história de cinco páginas (a antologia foi publicada no Brasil com o título de “Superman 80 Anos – Action Comics Especial”, em 2018, pela Panini). A premissa de “Mais Rápido do Que Uma Bala” (“Faster Than a Speeding Bullet”, 2018) é simples. Superman está em disparada sob os céus de Metrópolis para alcançar uma mulher refém de um assaltante que acabou de disparar um tiro com a arma colada em seu rosto. O super-herói, então, tem de voar o mais rápido possível para tentar impedir a bala. Meltzer e Cassaday constroem um Superman absurdamente poderoso, mas limitado. Ele não sabe se vai conseguir chegar a tempo e isso o consome durante sua disparada. A Metrópolis embaçada de Cassaday representa a velocidade do super-herói para salvar a moça, mas também é a imagem das possibilidades em conseguir tal feito. No fim das contas, a refém consegue, em uma fração de segundos, atrapalhar o bandido e auxiliar o Superman a chegar a tempo. É quase um trabalho em dupla, em que o super-herói se torna um tanto dependente para conseguir realizar seus feitos sobre-humanos. Superman seria quase uma projeção dos seres humanos, do que poderiam realizar, ao menos, em conjunto. Dessa maneira, o último quadro com Superman voando calmamente banhado pela luz do sol visto de baixo para cima se torna uma projeção das pessoas sobre o que poderiam alcançar. O otimismo do Superman ganha contornos de realidade ao lidar com um caso específico para representar a relação do personagem com a população, em geral. Por fim, em um pequeno recordatório, Lois Lane destaca o grande segredo de Superman. Dessa maneira, Brad Meltzer expõe todo o seu talento como roteirista ao conseguir desvendar um personagem com tantas camadas em uma pequena história. Superman nunca foi tão humano e, por isso, tão super-herói.


Superman: Homem e Super-Homem
Roteiro de Marv Wolfman e arte de Claudio Castellini
“Superman: Homem e Super-Homem”(“ Man and Superman”, 2019 nos EUA, 2021 no Brasil) roteirizada por Marv Wolfman e desenhada por Claudio Castellini é mais uma história de fundação do Superman. Ou seja, o mito volta à origem para o leitor redescobrir como surgiu o personagem. Mesmo que não seja uma premissa realmente nova, a abordagem de Wolfman é instigante para refletir sobre o surgimento do super-herói. Há uma duradoura discussão sobre quem seria o verdadeiro alter-ego nas histórias do personagem. Quer dizer, Superman é o alter-ego de Clark Kent ou seria o oposto? Wolfman desestabiliza essa discussão e a leva para outro lugar. Clark Kent depende do Superman e vice-versa. Não há a sobreposição de uma personalidade sobre a outra. Para isso, o autor propõe uma questão interessante ao indicar que os poderes de Superman não auxiliam Clark a aspirar ser jornalista, eterna profissão do personagem. Dessa maneira, Clark não é a parte frágil do Superman, pelo contrário, Wolfman enche o super-herói de temores que o fazem quase desistir de usar o famoso uniforme. O Superman pode ser muito forte, mas é uma figura vulnerável na mesma medida. Assim como Clark Kent pode ser um amedrontado sujeito de Smallville, como pode ser um repórter corajoso que não tem medo de enfrentar a fúria do editor Perry White para realizar o sonho de trabalhar no famoso Planeta Diário. Castellini compõe muito bem as diferenças das cidades fazendo de Metrópolis um lugar cheio e movimentado, ao contrário da vazia e pacata Smallville. Essa dualidade, que vai existir no protagonista ou nas cidades pelas quais ele passa, também se revela em dois personagens que rondam o Superman: Lois Lane e Lex Luthor. Eles têm a mesma gana de serem os melhores, mas enquanto a jornalista não ultrapassa qualquer limite ético, Luthor está um vilão mais sujo do que nunca. “Superman: Homem e Super-Homem” traz boas ideias sem trair a essência dos personagens: a matéria-prima das histórias a mais de oitenta anos.

– Lucas Reis é pesquisador de cinema brasileiro. Atua como crítico de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Escreve na Revista Aurora Cine

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