“84 – o álbum inglês” e “83/92 – um álbum italiano”, dois livros imperdiveis de Fabio Massari para apaixonados por cultura pop

texto de Marcelo Costa

No jornalismo cultural brasileiro em geral, e no musical em particular, o nome de Fábio Massari é uma feliz e rara unanimidade. Experimente em meio a uma conversa sobre música e jornalismo soltar o nome de Massari entre os presentes e você perceberá olhos brilhando, e isso acontece não apenas porque o Reverendo, como também é conhecido, é um profissional exemplar da área cultural, mas, sobretudo, porque sua paixão pela cultura e pela música transcendem a profissão e rendem momentos de sabedoria pop inigualáveis e de extremo deleite. Quer um exemplo? “Rumo a Estação Islândia”, livro de 2001, traz 230 páginas sobre a cena musical islandesa num período em que a internet ainda engatinhava no país, ou seja, não era muito fácil ir atrás de nomes como Saktmóðigur e Örkuml (entre muitos outros), mas só a paixão pela música explica o quanto foi (é!) legal ler Fábio Massari escrevendo sobre artistas que você não tem a mínima ideia de que existiam (e que talvez você nunca fosse ouvir).

Essa paixão pela música e pela escrita ganhou ainda mais profundidade em 2021 com o lançamento de “84 – o álbum inglês”, um volume luxuoso que, de certo modo, inicia uma autobiografia de Fabio Massari, que ganhou sequência em 2022 com a chegada de “83/92 – um álbum italiano”, e ainda aguarda os volumes vindouros dedicados a Frank Zappa (“FZ”), ao ano de 1985, ao “Álbum Irlandês” (esses três citados nominalmente em passagens dos dois primeiros volumes lançados) e sabe-se lá mais quantos. Ou seja, o Reverendo está abrindo seu baú cultural coletado em diversos lugares do planeta durante toda uma vida e compartilhando histórias, memórias, dicas musicais, de turismo, até gastronômicas além, claro, de resenhas de shows e discos, e muita curiosidade com leitores apaixonados por cultura pop.

Detalhe de “84 – o álbum inglês”

“84 – o álbum inglês” é a gênese do jornalista Fabio Massari. Aos 19 anos, após abandonar a faculdade de engenharia e buscando novos horizontes, Massari partiu para uma temporada em solo britânico. Seu destino foi Bournemouth, cidade a 170 quilômetros de Londres (duas horas de trem – nota do editor: foi também a primeira cidade que pisei na Inglaterra, vindo de Glasgow num voo ultra econômico da Ryanair) famosa por receber estudantes do mundo inteiro atrás de escolas de inglês para estrangeiros. Massari montou seu quarto general em Bournemouth e, dali, passou a desbravar a Inglaterra não só de Elizabeth II e Margaret Hilda Thatcher, mas também de Iron Maiden, David Gilmour, Elton John, Indians in Moscow, The Lotus Eaters, Motorhead, Status Quo e muitos, muitos outros.

Mergulhado na cultura musical britânica e mundial (entre os shows que Massari irá ver e relatar no livro estão muito artistas locais e também apresentações do AC/DC, de Santana, de Bob Dylan e de Ronnie James Dio, entre outros), Fabio Massari passa a circular por casas de shows (tanto locais de Bournemouth como a Upstairs at Eric’s quanto fora do circuito municipal, e vale o grifo tanto do estádio de Wembley quanto do mítico Hammersmith Odeon e o trecho dedicado deliciosamente ao Gaumont Theatre) e lojas de discos, tudo documentado com memorabilia deliciosa de época. Na introdução, Massari conta: “Exatos três anos depois de voltar dessa viagem transformadora, em outubro de 1987, comecei a trabalhar na rádio 89 FM. Este livro é uma espécie de retrato do futuro radialista quando jovem. E quando única e exclusivamente fã”.

Detalhe de “84 – o álbum inglês”

“84 – o álbum inglês” é delicioso e levemente surpreendente por revelar anos de formação do Reverendo, com destaque para bandas clássicas do rock e algumas resenhas imperdíveis (uma coisa é escrever de um show do Iron Maiden no Brasil em 2022, outra em Londres em 1984, um mês depois de “Powerslave” chegar às lojas, mamma mia) numa leitura fluida com requintes de um empolgante diário de viagem, em que a memorabilia entrega toda a paixão do jornalista por esses momentos do passado que definem o eu do futuro, fragmentos que todos nós deveríamos lutar não só para não esquecer, mas para entender a nós mesmos, e nossas escolhas.

Porém, ainda mais deliciosamente surpreendente é “83/92 – um álbum italiano”, que traz “uma certa Itália” de família, mas, também, de “bons sons – e da boa (contra)cultura”. Neste volume imperdível, Massari lista bandas, discos, shows, selos, livros, revistas, fanzines, programas de rádio e TV, casas de shows e, num capítulo delicioso, as lojas de discos, como a Zabriskie Point Dischi, em Milão, comandada por Massimo Guarducci, cuja loja original Fabio visitou só uma vez, mas seu pai havia frequentado mais: “No dia da minha única visita (acho que em 1983, talvez 1984), assim que comecei a me apresentar, Massimo disse que sabia quem e era e falou: os Frank Zappa estão ali” (risos). “Loja do tipo old school, meio escura, charmosamente desarrumada, com o chefe isolado na sua torre de vinis e papeis. O cheiro dos LPs pela manhã”, conclui o Reverendo.

Detalhe de “83/92 – um álbum italiano”

O período italiano de Fabio Massari traz relatos de shows de Rod Stewart em Rimini, Peter Gabriel em Ferrara, Simple Minds em Bolonha, Mudhoney, Superchunk e um antológico Jane’s Addiction em Milão, 1991, entre outros shows “internacionais”, mas “83/92 – um álbum italiano” também lança luz sobre a Liftiba, uma das maiores bandas independentes da Itália, que na época já tinha feito cerca de 300 shows e estava no “esplendor da forma, verdadeiros animais no palco”. No relato, Massari rememora dizendo que “teve balada emocionante e climão sombrio, ritmo latino, country & western, heavy metal e proto-punk. Em alguns momentos, era como se uma boa banda do Santana se metesse a fazer covers de Killing Joke”….

“83/92 – um álbum italiano” é também sobre as revistas de música Rumore, a Velvet e a Rockerilla (que, ainda na ativa, tem na sua capa de janeiro de 2023 The Smile e Beach House), sobre os selos Vox Pop Records e Materiali Sonori, sobre os livros de Tiziano Sclavi (dentre outros autores), além da arte do mestre Andrea Pazienza e uma cobertura especial do evento Dylan Dog Horror Fest, que ocupou o Palatrussardi, de Milão, em maio de 1992. E, como não poderia deixar de ser, traz uma lista imperdível de discos de cantautores, rockers, proggers, jazzniks, fusionistas, cinematográficos, psicodélicos além de destacar os dois prediletos do Reverendo (um disco de 1969 e outro de 1996). Informação cultural valiosa para quem quer conhecer uma Itália bastante particular, uma Itália como você nunca (ou)viu, a Itália de Fábio Massari.

Detalhe de “83/92 – um álbum italiano”

Tanto “84 – o álbum inglês” quanto “83/92 – um álbum italiano” são lançamentos da Editora Terreno Estranho, que também editou no Brasil livros de Jeff Tweedy (Wilco), Mark Lanegan, Lee Ranaldo (Sonic Youth), Nick Cave e, recentemente, um de Bobby Gillespie (Primal Scream). Literatura musical de altíssima qualidade.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

3 thoughts on ““84 – o álbum inglês” e “83/92 – um álbum italiano”, dois livros imperdiveis de Fabio Massari para apaixonados por cultura pop

  1. Eu fiquei com uma baita curiosidade (o livro explica?) . Como ele se manteve financeiramente durante esse tempo? Paitrocinio? Não sei se é porque minha origem familiar é humilde, mas sempre sou levado a pensar nessas coisas de ordem prática. Ele abandonou a faculdade e se mandou pra Inglaterra. Mas como isso foi possível na época que permitiu ter grana pra viver tanta coisa? Sempre me pego pensando nisso.

    1. Me bateu a mesma curiosidade! E, como trabalhando na 89, nessa época, ela teria grana para fazer esses rolês todos? Historicamente sabemos que a rádio paga mal e ele ainda não era um nome no mercado. Fiquei curiosa com o livro e todas histórias, quero ler!

  2. Desculpa dar pitaco, mas parece obvio que o cara e a familia tem grana al~em deles serem da Italia, em algum lugar fala do pai comprando disco numa loja italiana que o Massari foi comprar depois. Mas isso faz alguma diferença? O cara não pode ser um bom jornalista se tiver grana? Ter origem humilde faria dele um jornalista melhor? Fui educado musicalmente pelo Massari assistindo ao Lado B da MTV, acho o cara muito foda, e achei estranho esse interesse pela questão finaceira…

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