Três perguntas: Irmãs de Pau lançam “Shambaralai” buscando oferecer outro olhar sobre a visão periférica

entrevista por Renan Guerra

A dupla Irmãs de Pau é um projeto que surgiu durante o período de pandemia a partir da amizade das multiartistas Isma Almeida e Vita Pereira, de São Paulo. Isma e Vita são duas travestis negras que se conheceram ainda lá em 2014, numa ocupação estudantil, em uma escola da Zona Oeste de São Paulo. A amizade se expandiu, as trocas artisticas aumentaram e ganharam corpo a partir da música, com composições autorais que mesclam funk, hip hop e música eletrônica, em diálogos com a periferia, os corpos negros e a comunidade LGBTQIA+. Entre apresentações on-line, festivais virtuais e outras trocas em distanciamento social, as Irmãs de Pau ganharam mais força com o lançamento de seu disco “Dotadas”, em 2021. Nesse trabalho elas criaram parcerias com nomes importantes como Jup do Bairro, Alice Guél e A Travestis, artistas LGBTQIA+ que também estão formatando esses novos processos da música popular brasileira e dos gêneros da periferia.

Após esse processo, na reta final de 2022 elas lançam agora “Shambaralai”, novo single que assinala uma espécie de momento de transição na carreira da dupla. Com produção musical de Brunoso, a nova canção apresenta um som potente e dançante, repleto de beats e viradas inspiradas na música eletrônica, no rap, no funk e no trap, tudo demarcado pelos vocais cortantes de Isma e Vita. E para demarcar ainda mais esses novos territórios, “Shambaralai” ganhou um clipe que ecoa a dominação das travestis num espaço que sempre foi visto como cis, hétero e masculino: o universo automotivo.

Com direção de Mariana Borga, o clipe de “Shambaralai” mostra as Irmãs conquistando o poder sobre um desmanche de carros abandonados, invertendo a lógica de liderança daquele ambiente. A própria ideia de ocupação de espaços se estende para a equipe de gravação do clipe, composta majoritariamente por mulheres, desde elenco, direção, fotografia, arte e operação de câmera. Além disso, Vita e Isma também estiveram imersas no processo de concepção do styling, junto a Brendy e Lostea. Os figurinos do clipe foram desenvolvidos a partir das estéticas encontradas dentro das favelas e periferias brasileiras, como as roupas chavosas da Mofada e as balaclavas da Agemó.

A ideia principal das Irmãs de Pau é que esse som chegue em mais gente e apresente a sua música e as suas criações para novos públicos, abrindo caminho para o processo do segundo álbum da dupla. Todos esses signos & sonhos das Irmãs de Pau podem ser vistos na forma apaixonada e intensa com que elas constroem suas canções e na forma articulada com que falam sobre a importância de seu trabalho. E isso pode ser conferido abaixo, já que Vita e Isma responderam as três perguntas do Scream & Yell sobre esse novo momento da carreira:

“Shambaralai” marca esse momento novo após o álbum “Dotadas”, de 2021. Como vocês percebem toda essa trajetória que foi construída até aqui? As Irmãs de Pau se fortaleceram especialmente nesse processo de isolamento durante a pandemia, então acredito que do ano passado pra cá foi esse momento de encontrar os ouvintes ao vivo e vivenciar essas trocas, não?
Vita: Apesar do Brasil, nossa trajetória tem sido um marco de grandes realizações e vitórias. Óbvio que como todo artista independente sempre acontece uns bafão e precariedades que influenciam no nosso fazer artístico, mas gosto de focar nas vitórias. Foi um prazer lançar “Dotadas” no mundo, pois este álbum fala um pouco de nós e nossa quebrada. Até hoje não consigo escolher o show mais foda, desde o show que teve poucas até os que tiveram milhares de pessoas, todos foram muito importantes. Fico muito feliz de estar viajando cantando putaria.

Isma: Percebo que no início da nossa carreira o álbum “Dotadas” serviu para inspirar e fazer acreditar que tudo ainda ficaria bem, tem até um gospel motivacional no disco kkk, também falamos muito sobre as questões travestis que cercam nossas vidas, e também usamos as bases mais clássicas do funk. No momento atual estamos preocupadas em mostrar que somos além disso, que podemos nos renovar, explorar novos ritmos e falar sobre outras questões além de travestilidades, queremos nos mostrar versáteis.

Com produção do maranhense Brunoso, essa nova faixa aponta diferentes sonoridades, dos beats eletrônicos e do funk vocês vão até uma curiosa inserção de “Soco, Bate, Vira”, um clássico infantil. O que influencia vocês sonoramente, isto é, aquilo que vocês escutam em conjunto, que trocam de referências? E o que influencia vocês no dia a dia, isto é, aquilo que move vocês a escreverem, a pensarem nas canções, nas estéticas e em tudo que forma o duo Irmãs de Pau?
Vita: Ouvimos muita música e ouvimos de um tudo. Todo esse emaranhado de referências aparecem em nossos trabalhos. “Soco soco” vem desse lugar de revisitar nossa infância e colocar essas músicas em um outro contexto. Como fazemos também o “Abecedario da Putaria” na faixa “Pedagorgia”. Não temos uma regra ou fórmula de composição e criação, nós somos multiartistas e várias outras linguagens de arte influenciam nossas criações e produções. Nossas cabeças não param e gostaríamos muito de ter patrocínios e investimentos reais para lançarmos tudo que confabulamos juntas. Quando nossas ideias se juntam, formam um megazord do traveco doido.

Isma: Nossas refs vem dos lugares que frequentamos, gostamos e etc, mas também gosto de usar aquilo que eu não gosto como referência, somos corpos trans’formadores, por exemplo, as músicas evangélicas sempre me causaram um certo incômodo em nunca ver meu corpo e minha história representada ali, resultado: fizemos um gospel que fala sobre meu corpo kkk. Acho que temos que quebrar essa ideia de que apenas o que nos dá prazer nos influencia, o prazer é um lugar de acomodo e conforto também, sinto que as coisas que nos causam desconforto nos movem muito mais, dá vontade de mudar aquilo, isso gera coisas boas.

O clipe de “Shambaralai”, com direção de Mariana Borga, conversa com toda essa estética bastante atrelada a um universo masculino hétero cis dos carros e motores, mas além disso, há um cuidado estético e uma construção sólida que mistura signos periféricos, femininos e que marcam essas vivências trans no Brasil. Como foi pra vocês a construção desse videoclipe?
Vita: É importante o exercício de criar novas formas de comunicação. “Shambaralai” vem desse esforço e de uma certa forma, um feitiço também. Nessa música ainda falamos a língua que vocês compreendem, mas é de uma forma tática, pois queremos dar o ekê para conseguir o que queremos. Abordamos aquilo que não pode ser traduzido, porque se você me pergunta, o que é “Shambaralai”, não tem uma resposta, não se cabe em uma definição. Somos filhas de um processo violento da igreja e quando falo de novas formas de comunicação a gente se reinventa a partir da língua dos anjos, lançando a língua das travas/putaria das trevas.

Isma: O clipe pra mim é um outro olhar sobre a visão periférica, antes de montar o roteiro nós refletimos como a maioria dos clipes nas comunidades mostram sempre a laje, as vielas, as paredes de tijolos e etc, a partir disso decidimos trazer outro panorama, mostramos a área verde, a pedra, o céu, o campo, tudo isso mesclado com as cenas do desmanche dos carros, sem dúvidas é a minha obra preferida, eu assisto esse filme e fico em shoke, me sinto no lugar que sempre sonhei.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. 

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