Cinema: O lisérgico “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, de Sam Raimi

texto por João Paulo Barreto

Com aquele que talvez melhor represente as excelentes escolhas de elenco para seus personagens em live action, a Marvel Studios tem em Benedict Cumberbatch, na pele da clássica criação de Steve Ditko e Stan Lee, a definição precisa do apuro visual para as transcrições de seus heróis das páginas impressas para as telas de cinema. Claro que enumerar aqui a lista de acertos que essa máquina de blockbusters (e de fazer dinheiro) tem em sua direção de casting exata na escolha de cada um de seus personagens é afirmar o óbvio. Desde a primeira escolha de 2008, com Robert Downey Jr., passando por Chris Hemsworth e Chris Evans, ao menos as adaptações de elenco dentro dessa engrenagem de filmes (que já vai chegar a 15 anos de produções ininterruptas) é algo pelo qual essa tal máquina pode se orgulhar.

Nesta continuação do bom filme de estreia de 2016, Benedict Cumberbatch parece ter, finalmente, se encontrado em sua encarnação fisicamente exata (mas que carecia de um roteiro mais apurado no filme de estreia) das páginas da dupla Lee/Ditko. Se na dualogia “Guerra Infinita”/ “Ultimato” sua presença servia mais como uma resolução para os nós temáticos do roteiro, e como suporte cômico para as tiradas sagazes e de ação do Tony Stark de Downey Jr. e do Star-Lord de Chris Pratt, e, do mesmo modo, em “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” sua presença parecia se basear mais na galhofa atrapalhada e menos na figura sábia e condizente com a de um mago, neste “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” (“Doctor Strange in the Multiverse of Madness”, 2022), o peso narrativo de sua trama parece, finalmente, transparecer em sua figura.

Claro que o peso da escrita do roteirista Michael Waldron (criador da série “Loki”, lançada este ano pelo braço televisivo da Marvel/Disney) contou bastante neste aprofundamento da ideia de realidades paralelas tanto físicas quanto mentais, uma vez que a premissa do multiverso foi um dos pontos de destaque da saga do irmão do Thor. Mas há dois outros nomes que definem o resultado surpreendente desta nova aventura Marvel: o compositor Danny Elfman e o cineasta Sam Raimi. O diretor da trilogia “Homem-Aranha” (2002-2004-2007) resgatou, aqui, muito de seu habitual mergulho no cinema de fantasia/horror que títulos de outra trilogia, a “Evil Dead” (1981-1987-1992), bem como o clássico “Darkman – Vingança sem Rosto” (1990), traziam como marcas constantes. E tal mescla de um cinema fantasioso dentro de uma temática de super-heróis, mas com um adentrar mais aprofundado em nuances psicológicas de seus personagens centrais foi algo que, nas mãos de Raimi, tornou esse exemplar de um filme da Marvel, algo que sai um pouco da cartilha vista em outras obras não tão empolgantes do estúdio.

Já Elfman, parceiro habitual de nomes como Tim Burton, e que, também, compôs a música de diversas outras obras de Sam Raimi, captou de maneira sublime a proposta sonora para definir o labirinto mental que imageticamente Raimi criou. É tanto que, em certo momento, quando no auge de sua viagem quase lisérgica nosso protagonista se vê em um embate consigo mesmo na melhor definição freudiana e cinematográfica do ID desde que o Kal-El do saudoso Christopher Reeve entrou em conflito físico consigo mesmo em “Superman III”, vemos literais notas musicais oriundas da partitura de um piano sendo utilizadas como armas mortais. E seus sons continuam, mesmo assim, a ilustrar de modo tanto diegético quanto não-diegético, aquele momento para nós espectadores. Quer um presente maior para um compositor do que este? Brincar com suas próprias criações dentro de um universo no qual sua música se torna algo palpável fisicamente? É possível imaginá-lo sorrindo ao ler este momento em sua cópia do roteiro.

Mas o que mais nos chama a atenção na proposta de Sam Raimi neste seu retorno ao universo da Marvel 15 anos depois do, digamos, curioso “Homem-Aranha 3”, é seu modo ao mesmo tempo sutil e grotesco de inserir sua marca do cinema de gênero em uma história cujo público alvo fatalmente (sem trocadilhos) vai encarar com estranheza. Em uma série de filmes como os do Universo Cinematográfico Marvel, nos quais o altruísmo de seus personagens centrais, além de seus atos incrivelmente heróicos rimam de maneira plausível com a beleza física de seus intérpretes, é de modo chocante e absolutamente bem-vindo que o que temos aqui é um cadáver em putrefação assumindo a posição de um herói que luta para impedir que uma mãe frustrada, assassina e esquizofrênica se reúna com seus filhos imaginários.

E sendo esse cadáver em putrefação a representação física do nosso próprio protagonista que também se encaixa nessa lista de qualidades citada acima, bom, digamos que a ideia “Dr. Jekyll and Mr. Hyde” contida aqui se torna tão bem-vinda quanto todas as liberdades visuais e do terror que o cineasta que criou a figura louca de Ash traz em sua bagagem. Após cartilhas seguidas à risca para agradar fãs como no parque de diversões representado pelo recente (e decepcionante) “Homem-Aranha”, é com uma recepção calorosa que esse frescor tão conhecido na obra pregressa de Sam Raimi aflora no momento certo, aqui. E, ainda, com a presença de Bruce Campbell a provar que a camaradagem hilária de mais de quarenta anos de amizade entre o próprio Ash e Raimi permanece. Tragam, agora, o Tim Burton para dirigir a adaptação cinematográfica próximo filme dos X-Men pelo Universo Cinematográfico Marvel, por favor. Nunca mais lhe peço mais nada.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.

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