Meu disco favorito de 2021: Lucy Dacus, por Marcelo Costa

MEU DISCO FAVORITO DE 2021 #3
“Home Video”, Lucy Dacus
escolha de Marcelo Costa

Artista – Lucy Dacus
Álbum – “Home Video”
Lançamento – 25/06/2021
Selo – Matador
Ouça: Bandcamp / Spotify / Youtube

Consta que os primeiros veículos a falarem de Lucy Dacus em 2016 foram a Spin e a Pitchfork, mas eu só fui saber da existência dela aqui no Scream & Yell, quando Gab Piumbato escreveu em março daquele ano sobre “No Burden”, o disco de estreia de Dacus, destacando sua “crueza emocional”. Como praxe, enquanto editava o texto eu ouvia o disco, que havia saído por um selo microscópico local na Virginia norte-americana e sido “adotado” pela Matador, que o relançou. O irresistível single “I Don’t Wanna Be Funny Anymore” foi uma das músicas que mais ouvi naquele ano, e, naqueles acasos que agradecemos aos céus, sete meses depois, em outubro, eu estava em Nova York sozinho por 12 dias, e Lucy se apresentaria no Bowery Ballroom abrindo para o Car Seat Headrest – os 1200 ingressos tinham se esgotado dois meses antes, e a única saída seria tentar via assessoria de imprensa: “Desculpe, Marcelo, mas a lista de imprensa também está esgotada”, foi a resposta. Lamentei, mas conformado por ao menos ter o ingresso para o show de Angel Olsen mostrando “My Woman”, parti para Nova York. Um dia antes do primeiro de dois shows sold out de Lucy/Car Seat, a assessora me escreve: “Houve uma desistência na imprensa, quer vir?”. <3

Car Seat estava badalado no momento, de forma que pouca gente nas resenhas dos sites novaiorquinos da época fala de Lucy – talvez eu tenha sido um dos poucos. “Me chamo ‘Lucy Deicus’, mas pode falar Lucy Dácus que não fico ofendida”, ela comentou assim que subiu ao palco, e “a aparente timidez percebida no disco é bem disfarçada ao vivo, e mesmo a crueza emocional fica em segundo plano, já que Lucy canta dançando fofamente enquanto distribui sorrisos e demonstra estar curtindo o momento”. Foi um bom show, mas tudo em cena deixava claro que Lucy era uma artista em evolução enquanto o Car Seat, com 13 discos nas costas, sabia muito bem o que estava fazendo ali. Pra mim, a evolução de Lucy tem relação com o encontro dela com Phoebe Bridgers e Julien Baker, após abrirem shows umas das outras e montarem o trio boygenius em 2018, que lançou só um EP de seis faixas, mas marcou mais do que os 8 discos que Ryan Adams lançou na mesma década (antes que você desista do texto, o que talvez faça no próximo parágrafo, saiba que não tenho nada contra Ryan Adams, inclusive tenho amigos que gostam).

Aqui vale um desabafo. Uns meses atrás, conversando sobre música com uma amiga jornalista para um projeto dela para a faculdade, desanquei tanto o rock masculinizado dos dias atuais que fui dormir e acordei com ressaca moral. Foi algo como “não tem coisa mais enfadonha que roqueiro velho lançando disco em 2021”, defendia o jornalista velho com seu copo de cerveja artesanal na mão. E é triste constatar que esse enfado é real, pois é preciso ser muito sem noção para dar atenção à Dave Grohl ou Bruce Dickinson ou Julian Casablancas e suas bandas mequetrefes que fazem as mesmas coisas desde a era paleozoica num momento da história em que a bola está com as mulheres – e os LGBTQIA+ (e os negros, ainda que em termos de música, a bola sempre tenha estado nas mãos dos negros). Ok, sem noção talvez seja vazio demais: o fato é que o rock e o heavy metal sempre foram coisas para menores de 13 anos (a faixa do público consumidor de cultura pop), mas com os boomers e, depois, os adultescentes é mais fácil achar gente de mais de 40 ouvindo rock e heavy metal hoje do que adolescentes inteligentes de 13 anos. E ainda que isso tudo soe um desvio do texto original, o lance é que se você tem um pinto entre as pernas e se orgulha disso, talvez você esteja ouvindo os discos errados…

O que Lucy Dacus tem a ver com tudo isso? Tudo. Porque ela, Phoebe Bridgers, Julien Baker, St. Vincent, Courtney Barnett, Angel Olsen e Sharon Van Etten (a lista é tão extensa, mas tão extensa e você pode seguir com ela nos comentários), num espectro indie, e Taylor Swift, Lorde, Adele, Olivia Rodrigo e Lady Gaga (num ambiente mainstream) estão ocupando um espaço importantíssimo na cultura pop mundial atual, ampliando o espaço das mulheres na música (e na cultura) enquanto os homens precisaram aposentar suas letras gloriosas sobre conquistas sexuais com medo do #MeToo (e de se sentirem ridículos). Ou como Lucy explica a inspiração de “Going Going Gone”, uma das boas faixas de “Home Video” (2021), meu favorito de 2021: “É sobre o ciclo de meninos e meninas, depois homens e mulheres, depois pais e filhas, e como os pais protegem suas filhas potencialmente porque, quando jovens, eles testemunharam ou perpetraram abusos e sabem que suas filhas estão em perigo, e talvez seja por isso que sejam tão protetores”. Você continua aqui?

“Home Video” (“Vídeo Caseiro”, e a tradução é importante para visualizar o terreno que Lucy explorou no álbum) é o terceiro disco dela. Filha adotiva de uma mãe que também foi adotada, Lucy fez uma extensa turnê de divulgação de seu segundo álbum, “Historian”, de 2018, e quando voltou pra cidade em que cresceu, percebeu que alguma coisa se quebrou. “Mudou o mundo ou mudei eu?”, questionaria aquele cara que cantava nos Smiths. Remexendo em diários adolescentes e olhando criticamente para o período em que cresceu em Mechanicsville, subúrbio de Richmond, na Virginia, Lucy lançou um “vídeo caseiro” que fala sobre uma amiga que namorava um cara babaca que não a tratava direito – e continuou com ele mesmo assim (“Christine”), a descoberta de si própria através do outro – e do sexo (“First Time”), a relação com um namorado que era residente em um acampamento de férias da igrega e que gostava mais de Slayer e maconha do que de Jesus (“VBS”), a fase em que as meninas se interessam por meninos e a amizade entre elas acaba (“Cartwheel”), seu relacionamento com um homem mais velho e a tentativa de soar adulta para conseguir o respeito dele (“Partner in Crime”), um amigo cuja vida girava em torno da cultura pop – inclusive a amizade deles (“Brando”), sobre ser impotente e admitir isso (“Please Stay”) e a amizade com uma amiga que foi rompida porque a mãe da amiga achava que poderia rolar algo entre elas (“Triple Dog Dare”).

A peça central de “Home Video”, porém, se chama “Thumbs”, uma canção mais antiga que Lucy Dacus chegou a tocar em shows do boygenius, incentivada pelas amigas, e mesmo em apresentações solo, mas pedia aos fãs para não gravarem e postarem, o que foi surpreendentemente atendido. Conta a história de uma vez em que Lucy acompanhou um amigo que iria se encontrar com o pai, um daqueles canalhas ausentes que exercem uma influencia assustadora sobre nós, filhos, e revela o desejo homicida da cantora, que desejaria enfiar os dedos nos olhos do homem até que eles estourassem: “Eu posso mata-lo, se você me deixar / Eu posso mata-lo, rápido e fácil”, canta Lucy para o amigo, e conclui: “Vocês dois estão conectados por uma pura coincidência (…), Mas você não deve nada a ele, mesmo se ele disser que te conhece, você não deve nada a ele”… A canção também se adapta a Dacus: “Nunca senti realmente a pressão dos laços de sangue e não conheci ninguém de quem fosse parente até os 19 anos. Meu pai biológico realmente acredita nos laços de sangue, e tendemos a não nos entender. Existe uma barreira de idioma aí; ele é do Uzbequistão, mas ele realmente não respeita meus limites, e acho que não sabia que acreditava nisso, que não devia nada a ele, até que disse isso em voz alta”, contou ao Pitchfork.

Musicalmente, “Home Video” mantém a estética indie dos dois discos anteriores, mas soma elementos que tornam o disco mais grandioso. É um disco confessional na linha de “Jagged Little Pill”, de Alanis, e “Exile in Guyville”, de Liz Phair (e talvez até mais amplo). Uma das influências percebidas, porém, é Bruce Springsteen (muitos críticos viram semelhanças entre as narrativas interioranas de “Home Video” e “The River”, cujo cerne é a trajetória tão comum de um rapaz desempregado do interior que engravida a namorada Mary e eles tem que se casar aos 19 anos), que também está ludicamente presente em uma das grandes canções do ano, “Like I Used To”, de Sharon Van Etten & Angel Olsen – um dos últimos singles de Lucy antes do álbum sair foi uma cover de “Dancing in the Dark”, que ela já tocava nos shows (incluindo aquele que caiu no colo do jornalista em Nova York), em homenagem aos aniversários do próprio Springsteen e do pai adotivo de Dacus, “o maior fã do Bruce que eu conheço”.

Apesar de “Home Video” deixar a sensação de ser um disco pesado, perturbado e amargurado, há bastante leveza melódica no álbum. Lucy Dacus também se preocupou em manter certo humor aqui e ali, e tirando “Thumbs” (que ganhou uma segunda versão, mais encorpada, recentemente – lyric video mais abaixo), o disco se revela uma boa experiência de audição para quem está disposto a ouvir quem tem algo relevante a dizer, no caso, uma jovem contadora de histórias que viu seus laços com o local de crescimento se dissolverem, e, após observar todas as mudanças pelas quais passou, resolveu compartilhar com o mundo. Ao falar sobre “Hot & Heavy”, a faixa que abre o disco e que foi o primeiro single, Dacus conta: “Grande parte da vida é se submeter a mudanças e dizer adeus, mesmo que você não queira. Agora, sempre que vou a lugares que costumavam ser importantes para mim, parece que estou invadindo o passado. Eu sei que a minha versão adolescente não me aprovaria agora, e isso é constrangedor e um pouco doloroso, mesmo que eu saiba intelectualmente que gosto da minha vida e de quem eu sou agora”.

O posto é bastante disputado, mas, para mim, Lucy Dacus é a grande contadora de histórias da atualidade.


– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne

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2 thoughts on “Meu disco favorito de 2021: Lucy Dacus, por Marcelo Costa

  1. O bom atualmente (pra quem como eu cresceu lendo revistas pré-internet é que podemos ouvir imediatamente as canções. Aí muitas vezes deparamos que os sons não chegam a ser metade do que o texto diz. Esse é um dos casos. Meia hora depois de ter ouvido já havia esquecido todas as canções. Mas entendo o paladar Indie. Mas se essa é a grande contadora de histórias atualmente, consigo entender mais o atoleiro que estamos metidos.

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