A “segunda vinda” de Black Alien e o pagotrap em ascensão: os ecos do Festival Clandestino, em Salvador

Texto e vídeos por Nelson Oliveira
Fotos de Mare Luna Femiani

Março de 2020 foi fatídico para o Brasil. Foi naquela época que o país começou a sentir os primeiros efeitos da pandemia de Covid-19 e viu o calendário de shows presenciais ser suspenso para evitar aglomerações e conter a disseminação do vírus. No dia 14 daquele mês, o Flow Festival foi o último evento de grande porte que aconteceu em Salvador antes de as casas de espetáculo fecharem as portas por mais de um ano e meio. O seu headliner foi Black Alien, que voltou aos palcos no Trapiche Barnabé, no coração da capital baiana, no mesmo lugar em que fizera a sua última apresentação pré-pandêmica. Um retorno redentor como o de Jedi, tal qual o experiente rapper fluminense cita em “Na Segunda Vinda”.

No último sábado, 18 de dezembro, o Trapiche Barnabé recebeu a primeira edição do Festival Clandestino, que leva o nome da homônima marca de gin soteropolitana, lançada no evento. No intuito de trabalhar com uma proposta similar ao do já citado Flow, a produção convidou Black Alien e deu espaço a tendências fortes na cena local. Além da já consolidada Afrocidade, o line-up do festival contou com os DJs Manigga e Pivoman, além de Freelion e Gibi: em comum, todos eles utilizam, em alguma medida, o pagode baiano como referência em seus trabalhos.

Manigga e Pivoman

Por volta das 18 horas, Manigga e Pivoman começaram a comandar as picapes com o Baile Quebradaum, projeto que existe desde 2019 e promove a mistura de sonoridades jamaicanas com gêneros como o afrobeat, o kuduro e o bahia bass. E aqui cabe parêntese e até flashback.

Em 2014, a coletânea “Bass Culture Bahia“, que teve a participação de produtores e DJs como Mauro Telefunksoul, RDD e Mahal Pita, lançaria as bases do que viria a fazer a cabeça de boa parte da juventude baiana nos anos seguintes. Ao fundirem gêneros típicos do estado, como samba reggae, axé music, arrocha e pagodão, a batidas eletrônicas e bastante graves, abriram os caminhos para uma cena que se fortaleceu. Atualmente, um dos subgêneros oriundos desse caldeirão é o pagotrap, cujos expoentes são Àtooxxá, TrapFunk & Alivio, Nêssa e o pinkboy Yan Cloud.

Manigga e Pivoman voltariam a animar o público durante os intervalos entre os shows, mas, cerca de uma hora após sua primeira participação, deram lugar a Freelion e Gibi – respectivamente, DJ e MC, que têm uma parceria de longa data e, além de já terem gravado EPs e singles em dupla, costumam se apresentar juntos. Apesar do uso às vezes excessivo de clichês do trap, como o auto-tune, o duo fez um show romântico e dançante, que agradou ao público.

Os presentes já estavam por dentro do repertório recheado de pagotraps, que incluía faixas como “Amando Ela”, “Domingo” e “Diga-me” – esta última, com beats envolventes, é uma parceria com Duquesa, Salamanka e Tainã Troccoli. Ainda houve tempo para uma palhinha de MCDO, vocalista da Afrocidade, em “Baby Te Liguei”, hit da banda de Camaçari.

Afrocidade

Não demorou muito e o grupo baiano subiu completo ao palco. A apresentação seria uma das primeiras da Afrocidade desde o lançamento do EP “Afrocidade na Pista”, no qual a banda gravou canções que já eram conhecidas do público com arranjos diferentes dos quais vinha trabalhando ao vivo – o álbum, inclusive, teve a produção do já citado Mahal Pita.

Apesar da nova roupagem dada a algumas músicas e de um trecho prolixo no final do show, o formato de performance já consolidado pela banda – e aprovado pelo público – não foi alterado. Assim, a Afrocidade alternou entre as aconchegantes “Baby Te Liguei” e “Tô Pra Onda”, os pagodões politizados “As Mina Para o Baile”, “Eu Vou No Gueto” e “Tá Mó Barril” e as sonoridades de influência jamaicana em “Aduba” e “Arrocha Dub/Bala e Fogo”. A apresentação poderia até ser definida como morna pelo alto padrão que a big band colocou para si própria, mas a carga de energia que o grupo coloca no palco é tão grande que mesmo uma exibição mediana consegue superar os melhores espetáculos de artistas badalados.

Black Alien

Para encerrar a noite, Black Alien subiu ao palco notoriamente aliviado por retornar às atividades. A tensão e a sanha de sobrevivência presentes no – então recém-lançado – álbum “Hello Hell: Abaixo de Zero” (melhor disco de 2019 no Scream & Yell), que estavam à flor da pele nos momentos iniciais da pandemia, quando ele se apresentou no Trapiche Barnabé, pareciam se aplacar. E aparentavam se reduzir pelo fato de um ciclo complicado, de pausa forçada, ter sido encerrado para Gustavo Ribeiro justamente na mesma cidade e no mesmo espaço em que ele se iniciara. Ele absorvia as boas vibrações e, tal qual cita em “Que Nem o Meu Cachorro”, era o agora.

Black Alien começou a sua apresentação com “Mister Niterói” e, descontraído, interagiu com o intérprete de libras que transmitia suas rimas. Também abraçou calorosamente um fã que furou a segurança e subiu no palco para homenageá-lo. Dominante, Gustavo fez o que dele se esperava: emendou uma pedrada atrás da outra, lembrando que tantos outros jamais serão.

Mesmo acompanhado apenas de um DJ, Black Alien preencheu com maestria o antigo casarão colonial – que, como bem lembrou MCDO, da Afrocidade, havia sido palco da morte de muitos escravos africanos no passado. Ressignificando o Trapiche Barnabé, ao longo de cerca de 1h30, Gustavo fez um de seus muitos grandes shows, impulsionado por um público que cantava todos os versos com galhardia.

Além de apresentar todas as faixas de “Hello Hell: Abaixo de Zero”, com destaque para “Área 51”, “Vai Baby” e “Carta Pra Amy”, o rapper incluiu os hits de “Babylon By Gus Vol. 1 – O Ano do Macaco”, de 2004, no repertório. Dessa forma, “Na Segunda Vinda”, “Caminhos do Destino”, “Perícia na Delícia”, “Babylon By Gus” e “Como Eu Te Quero” completaram a lista de músicas que integraram o show. Outra vez, Black Alien comprovou que, quando um artista pode se gabar de ter um conjunto tão sólido para trabalhar, nada é mais cativante do que fazer o simples.

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. 

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