Cinema: “Marianne & Leonard: Palavras de Amor”, de Nick Broomfield

por Marcelo Costa

A norueguesa Marianne Ihlen morreu aos 81 anos em junho de 2016; quatro meses depois, em novembro, o canadense Leonard Cohen faleceu aos 82 anos. Marianne e Leonard se conheceram nos revolucionários anos 60 e viveram um romance que começou na ilha de Hydra, na Grécia, voou até Montreal, depois Nova York, e voltou para Hydra, em um daqueles términos lentos que se arrastam por anos, mas que, para felicidade de ambos, não deixou sequelas numa amizade cumplice que durou até os últimos dias da vida de ambos.

” (“Marianne and Leonard: Words Of Love”, 2019), documentário disponível na Netflix Brasil, tenta juntar os cacos dessa complicada história de amor enquanto resume a carreira do poeta canadense, num dos poucos defeitos do filme: há muito mais Leonard Cohen que Marianne Ihlen no filme, e ainda que ele seja o artista famoso e ela a musa, seria importante para o espectador entender as motivações de Marianne, suas idas e vindas no relacionamento anterior (com o escritor Axel Jensen), a mudança para Hydra e suas escolhas posteriores.

Tudo sobre Marianne é pincelado rapidamente no filme enquanto Leonard é acompanhado como em um documentário, com os vários trechos sem relação com Marianne fazendo a ponte temporal entre o fim do relacionamento e o final da vida dos dois (e são mais de 40 anos). Para os fãs de Cohen, porém, “Marianne & Leonard: Palavras de Amor” é um prato cheio que consegue apresentar (um)a (das) musa(s) que encantou um dos grandes poetas da música pop (que escreveu para ela “Bird on the Wire”, “Hey, That’s No Way to Say Goodbye” e “So Long, Marianne”) além de pontuar os grandes momentos da carreira de Cohen.

Trata-se de um filme com foco no amor e, ainda que não traga nenhuma grande novidade para quem já conhecia a história de Cohen e Ihlen, ganha força por ser uma história contada, em grande parte, pelo próprio casal. Fotos raras da época, áudios de Marianne e Cohen e filmagens relacionadas ajudam a narrar uma história de amor que, como muitas outras, não sobreviveu a si mesma, mas, diferente da maioria, sobreviveu ao tempo. Um grupo interessante de entrevistados dá um colorido especial as lembranças dos dois biografados.

Antes de mergulhar nesse relacionamento é preciso iluminar os anos 60, “era do amor livre e do casamento aberto”, como pontua o diretor britânico Nick Broomfield (responsável também pelo ótimo documentário sobre Whitney Houston) logo no começo do filme. Ele está filmando Marianne em um passeio de barco, e conta: “Eu era um jovem de 20 anos visitando Hydra quando Marianne me conheceu. Por um tempo, me tornei um dos amantes dela. Ela me incentivou a seguir os meus sonhos e me mostrou músicas de Leonard”, ele conta.

Hydra (e as demais ilhas gregas), nessa época, era como se fosse a Paris dos anos 20 transmutada numa ilhota no meio do Mar Egeu, o lugar paradisíaco aonde artistas das mais diversas esferas se “escondiam” para criar. “Havia uma regra não escrita sobre a vida em Hydra: se você visse alguém como Leonard sozinho em um café, você não deveria importuná-lo, porque ele está ali trabalhando”, conta um entrevistado. Marianne chegou a Hydra com o marido escritor em 1957. Leonard aportou na ilha na virada de 1959 para os anos 60.

Após trair Marianne e deixá-la sozinha na ilha no primeiro semestre de 1958, Jensen reencontra uma mudada Marianne, se apaixona e casa com ela em novembro do mesmo ano. Axel, o filho, nasce em janeiro de 1960. Entra em cena Leonard, que não havia sido apresentado a ela até então, mas a convida para se juntar a um grupo de amigos para tomar sol. Logo Jensen já estaria enrabichado por outra mulher, deixando Marianne, o filho bebê e uma casa para trás em Hydra (e com Leonard).

Nick Broomfield utiliza os áudios de entrevistas de Leonard e Marianne para desenhar a rotina do casal na ilha: ele busca o ideal de escrever três páginas por dia e ela o alimenta. Eles fazem sexo, nadam nus nas águas do Egeu e se apaixonam. Ele vai lançando livros, alguns deles detonados pela crítica literária, enquanto começa a enveredar para a música, que sempre o fascinara (Cohen se apaixonou pela poesia de Federico Garcia Lorca e pelas músicas de um livro de tablaturas de canções socialistas quando tinha 15 anos).

A virada de chave acontece quando ele decide investir na carreira de compositor e conhece Judy Collins, que grava “Suzanne” – será Judy quem insiste para que ele cante suas músicas. Quando Marianne encontrou Judy Collins, anos depois, desabafou: “Você acabou com a minha vida”, conta Judy no longa. A fama, o assédio, o desastre nas tentativas de adaptar o relacionamento de Hydra em Montreal e Nova York vão minando a história de amor, e o casal começa a se afastar.

Entre os entrevistados, destaque para as falas do guitarrista Ron Cornelius e as intervenções incendiárias de Aviva Layton, que foi casada com o poeta canadense Irving Layton (influência confessa de Cohen) por 20 anos, e que explica vivamente que artistas famosos não são casados com seus conjugues, mas com seus fãs, que Suzanne (não a da música, mas a mãe dos dois filhos de Cohen) foi “implacável em prender Leonard com ela a qualquer custo”, entre outras coisas.

Do ponto em que o relacionamento de Leonard e Marianne “termina”, no começo dos anos 70, “Marianne & Leonard: Palavras de Amor” segue falando dos shows, dos discos, das turnês (por hospícios, inclusive), dos sucessos de Cohen (como “Hallelujah”) e de sua temporada em um retiro espiritual, que culminou com a descoberta, quando de sua saída já nos anos 2000, que todo seu dinheiro que estava confiado a uma amiga e manager de longa data havia sido desviado e gasto. Como sair da falência? Voltar para a estrada (você já conhece essa história, certo?).

De volta a estrada numa posição de superstar, Leonard Cohen passa por Olso com seu show e separa lugares na primeira fila para Marianne. Um rápido corte e, alguns anos depois, já na cama do hospital, Marianne avisa Leonard “que está partindo”. Ele responde rapidamente:

“Querida Marianne,

Estou um pouco atrás de você, perto o suficiente para pegar sua mão. Este velho corpo desistiu, assim como o seu também. Nunca esqueci seu amor e sua beleza. Mas você sabe disso. Não preciso dizer mais nada. Boa viagem, velha amiga. Vejo você na estrada. Amor e gratidão sem fim.

seu Leonard”

Num mundo cada vez mais dolorido em que viver é acumular tristezas, Leonard e Marianne conseguiram guardar, por toda a vida, um pouco de amor, de afeto e de amizade para o momento derradeiro. “Marianne & Leonard: Palavras de Amor” encapsula essa conquista maravilhosa para a posteridade para que todos os demais possam seguir rindo e chorando e chorando e rindo novamente… sobre tudo.

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell desde 2000 e assina a Calmantes com Champagne.

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