Olhar de Cinema 2019: Violência e paixão

 por Adolfo Gomes

É uma violência que emerge das entranhas, quase mineral. Não só dos homens – da natureza também, em sua vastidão e beleza. Estamos no deserto australiano e poderia ser no começo dos tempos. O filme em questão é “A Longa Caminhada” (“Walkabout”, 1971), do inglês Nicholas Roeg, falecido em 2018. A obra ganha relevo na instigante seleção de títulos que integra a Mostra “Olhares Clássicos”, no âmbito da oitava edição do Festival Internacional de Cinema de Curitiba.

Conhecido pela filmografia inquieta – de “Perfomance”, que trazia Mick Jagger no elenco, a “O Homem Que Caiu na Terra”, estrelado por David Bowie, passando por “O Inverno de Sangue em Veneza”, com Julie Christie e Donald Sutherland – Roeg nunca se sentiu intimidado pela estranheza das paisagens e do comportamento humano. Ao contrário, essa ecologia impetuosa dá vida ao seu cinema, sempre na fronteira entre o sublime e o grotesco.

Em “A Longa Caminhada”, ele cria um poema épico (violentíssimo, tristíssimo) sobre a falência das utopias civilizatórias, atravessando a natureza como quem se despede de um lugar já inalcançável e indiferente à sua própria extinção – um território autoimune a qualquer possibilidade de conciliação com o homem, e, por isso, exuberantemente furioso ao acolher tal fatalismo destrutivo.

É um filme de horror (não tenha dúvida!), a despeito da força solar que emprega para desbravar os caminhos, de ida e volta, entre a miragem natural e a danação urbana. No foco dessa narrativa desencantada, um casal de irmãos oriundo da cidade, que, em contato com os ritos de iniciação de um aborígene, experiencia o fôlego final de um mundo (extraterreno), bem aqui, contíguo ao nosso modo de vida. Resta a lembrança, a profunda melancolia daquele instante de comunhão com os elementos, já em definitivo encerrado num percurso de conservação, mas, acima de tudo (como paradoxal consequência), de morte.

Lirismo materialista
Outro destaque no segmento “Olhares Clássicos”, “Conhecendo o Grande e Vasto Mundo” (em inglês, “Getting to Know the Big Wide World”, 1978), da ucraniana Kira Muratova, compartilha com o filme de Roeg a mesma materialidade lírica. Um triângulo amoroso descarnado – ósseo na recusa da sentimentalidade epidérmica comum aos romances de desencontro – nos introduz ao interior lamacento e acinzentado das paixões humanas.

Filme vertical (ao contrário do que sugere o título), reduz os espaços a cada plano, de modo o estreitar nossa intimidade com as personagens. É uma história de amor sem beijos, abraços ou promessas. Muratova, cuja obra foi desenvolvida sob os ditames do realismo soviético (na antiga URSS), satura a objetividade imperativa do regime de representação naturalista até a sua desconstrução completa. Os diálogos são fragmentados (parecem começar no meio da enunciação e terminar duas ou três palavras antes do fim da sentença) e os gestos dos atores, à primeira vista, orientados por certa contenção, resultam, no final das contas, imprevisíveis, como seus movimentos em cena.

“Conhecendo o Grande e Vasto Mundo” se impõe contra a institucionalização, inclusive cinematográfica, dos sentimentos. Assenta em terra e argila as bases do que vislumbra o mais próximo da “felicidade” que possamos alcançar: estar, pura e simplesmente, com quem se ama.

– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

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