Psicodália 2019: A expansão do amor, do respeito e da diversidade

Textos, fotos e vídeo por Rafael Donadio e André Donadio

Ah, o Psicodália! Mais uma vez, eu e meu irmão, André Pinto Donadio, levamos a Pinto’s Comunicações para festejar e documentar cinco dias de Carnaval nesse lindo evento (relembre a cobertura de 2018). Há dez anos, a organização do festival Psicodália ergue uma verdadeira cidade na Fazenda Evaristo, em Rio Negrinho (SC), e esse mundo paralelo abriga cerca de 6000 pessoas em cinco “bairros”: os campings Casa das Máquinas, Terreno Baldio, Secos & Molhados, Mutantes e Tutti Frutti. Ali tem mercearia, cozinha comunitária, restaurantes, banheiro com diversos chuveiros, feiras, bazares, bares, teatro, cinema, espaços para oficinas, lago e muita natureza.

Os 50 shows do festival acontecem em três palcos: o Palco do Lago, que abriga os shows matutinos, o Palco do Sol, que abriga os shows da tarde e se transforma em Palco dos Guerreiros para os shows que varam a madrugada, e o Palco Lunar. Neste ano, nomes como Elza Soares, Dona Onete, Hermeto Pascoal, Jorge Mautner, Tom Zé, Pepeu Gomes e tantos outros foram as estrelas do line up. Mulamba, Bike, Gali, As Iyagbás, Hurtmold, Leo Fressato, Amaro Freitas, Xenia França, Letrux, Anelis Assumpção e outros artistas contemporâneos também abrilhantaram a festa. Além de infinitas jams pelas “ruas” da “cidade”.

Não bastasse blitz ostensivas da Polícia Militar de Santa Catarina desde o ano passado, neste ano, a portaria nº 91/2018, publicada em 25/10/2018 no Diário Oficial de Rio Negrinho, proibiu menores de idade de participarem desse enorme acontecimento multicultural. Tentaram, inclusive, coagir o público presente com metralhadoras, que policiais empunhavam a procura dos pequenos. Sim, entraram com armas letais para assegurar que um festival com 18 anos de existência e 22 edições, sem um caso de briga ou overdose, não tivesse crianças brincando e correndo.

Vale ressaltar que, quando crianças ainda podiam comer, beber e absorver cultura, além de todas as estruturas terem programações voltadas ao público infantil, também existiam recreações, a Materdália e todo cuidado necessário para comportar os pequenos psicodálicos.

A resposta a essas ações desnecessárias está na alegria, atenção e gentileza que recebemos e, automaticamente, doamos ali dentro. Está no dia a dia, segundo a segundo, nesse grande laboratório humano em que respeitamos todos os corpos, cobertos ou nus. A resposta está no amor entre todos, da maneira que for, com a única regra de ser consentido. A resposta está na liberdade de ser absolutamente quem você deseja ser. Simples assim, podemos ser quem somos com a liberdade que só o amor e o respeito nos concede. A senhora do bar já me mostrou como seria o feriado logo no primeiro dia, quando fui comprar água: “Claro, meu querido! Mas tem que dar um sorriso!” É para entortar qualquer metralhadora.

E assim, com alegria e sorriso no rosto, existimos por cinco belos dias. Sobre isso, peço permissão e parafraseio Leo Fressato: Em tempos de Bolsonaro, ser psicodálico – ou ter o espírito que nos orienta – é muito rock’n’roll.

Samuca e a Selva

SEXTA (01/03)
Como sempre, organização e população nos receberam da melhor forma possível. Tudo com funcionamento impecável, graças ao trabalho diário de quase 1000 pessoas. Sem filas na entrada e pouquíssimas filas para se alimentar, tomar banho e comprar bebidas e dálias – dinheiro que rola ali dentro, com o câmbio de um para um. Todo mundo se respeitando, como se não existisse preconceito, homofobia, racismo, machismo, opressão, repressão etc.

A resposta musical àqueles armados mal amados, por sua vez, começou às 20h de sexta-feira, no Palco Lunar, com Samuca e a Selva. Continuou às 22h, numa suave e forte paulada de Amaro Freitas. Negro, nordestino, instrumentista, chegando de turnê europeia, Amaro (piano) entoou jazz com toques brasileiros ao lado de Jean Elton (baixo) e Hugo Medeiros (bateria). A diversão começou com frevo, coco, baião e gingado.

Amaro Freitas

“Senti que o público do Psicodália está todo se querendo, então acho que vai rolar uma conexão e uma troca muito boa no palco. Fiquei de cara com a estrutura do festival, com o ar e a energia, com as pessoas. Um público que está tão afim de trocar e se conectar. Realmente é uma coisa impressionante e emocionante”, relatou o pianista de Recife, minutos antes do show. Mal podia prever tamanha energia e querência que lhe aguardavam.

Continuou com Elza Soares, meia noite, no mesmo palco. Aos 88 anos, sentada em seu altar e acompanhada de uma banda de muito peso, cantou, principalmente, músicas dos últimos dois trabalhos: “A Mulher do Fim do Mundo” (2015) e “Deus é Mulher” (2018). Mulher, negra e artista, mostrou-se mais forte que nunca, entoando gritos de resistência nas letras e na conversa com o público, geralmente com palavras dirigidas diretamente às mulheres. Quem ainda não havia se emocionado, provavelmente não segurou mais as lágrimas.

Elza Soares

Patrulha do Espaço, grupo fundado em 1977, abriu o Palco dos Guerreiros, realizando o último show da turnê de despedida. Com músicas que relembram as quatro décadas de carreira da banda, o baterista e fundador da banda Rolando Castello Júnior se apresentou ao lado de outros três grandes músicos, que representam duas formações históricas da Patrulha. Alegraram os fãs mais assíduos e apresentaram músicas importantes das década de 1970 da cena rock’n’roll brasileira.

Ainda no Palco dos Guerreiros, os paulistas da Hurtmold se apresentaram às 4h. Rock, punk, funk e jazz, cozidos por mais de 20 anos no estúdio El Rocha, foram responsáveis pela última borbulhada no cérebro de quem ainda estava acordado. Fui um deles. Depois de toda essa marretada instrumental, acalmei os ânimos no Saloon, com cerveja e muita conversa com Galego Teixeira, guitarrista londrinense da banda De um Filho, De um Cego e dono do estúdio Audio13. Amanheceu e meu dia terminou.

SÁBADO (02\03)
Sábado chegou e o sol esquentou a barraca logo cedo. Não fosse ele, provavelmente não teria forças para iniciar o novo dia. O esquema era o mesmo de anos passados: água na cara, barrinha de cereal e chiclete para enfrentar os primeiros shows, que começam às 10h. A beleza do Palco do Lago, a energia do público e a potência das apresentações é o café da manhã que chega para dar uma fortalecida. Algumas águas batizadas, cervejas e um pulo no lago dão o reforço no amanhecer.

Gali foi a primeira. Enquanto vivemos uma possibilidade de novo mundo, um verdadeiro acontecimento/ experiência/ utopia, pessoas se descobrem e artistas se transformam. Depois de alguns anos se apresentando como Camila Garófalo, a compositora, cantora e instrumentista paulista agora se encontra na personagem Gali, que carrega as raízes do interior, de Ribeirão Preto (SP). Nem mulher, nem homem, nem bicho, esse novo personagem canta a temática da mulher lésbica e da desconstrução da questão de identidade de gênero. Entende que as raízes estão muito mais internas, e as conduzem cada vez mais em sua caminhada.

Gali

Nesse primeiro show da jornada, Gali (violão, viola caipira e voz) veio acompanhada de Erica Silva (baixo), Theo Charbel (guitarra e backing vocal), Bia Cervellini (violino e teclado) e Larissa Conforto (bateria e SPDx). Juntas, trouxeram moda de viola, roda caipira, “música de fazenda” e rock. “Foi surtante estrear no Psicodália. Psicodália tem tudo a ver com Gali: é fazenda, é roots. Quando vim para o festival no ano passado, como jornalista, lembro-me de ter falado: ‘meu sonho é tocar aqui’. Estamos tocando um ano depois, com banda completa”, explica, emocionada.

Também celebrando raízes, no encontro das tradições africanas com a cultura popular brasileira, o quarteto de Paraty (RJ) As Iyagbás cantou e dançou no ensolarado Palco do Lago. Transmitiram toda energia para a plateia, que se preparou para a musicista argentina Soema Montenegro. Com muita poesia, ela tocou a selva, os índios e todos os ancestrais sul americanos.

Sofia Viola

Às 14h, o gaúcho de Passo Fundo Irmão Victor subiu ao Palco do Sol. Psicodelia nonsense e experimentalismo abriram o caminho da tarde. Sozinha no palco, empunhando apenas sua guitarra e seu charango, a argentina Sofia Viola, deu um show à parte: “Eu sou latino-americana da América do Sul, mas, hoje em dia, com os problemas de fronteiras, problemas políticos, diferenças sociais, uma situação delicada, não me afeta ser argentina, chilena, mexicana ou outra nacionalidade, me sinto parte deste continente”, relatou Sofia, depois de um show forte e político.

Ela não só representou os povos latino-americanos, muito lembrados durante todo festival, mas também representou a mulher, com músicas que falam diretamente do poder feminino, de assédios, menstruação e outros temas relevantes, muitas vezes tabus. “O retrocesso é mundial, não só na América Latina. A música e a arte vem exatamente para mostrar que não há sexo, não há cor, não há religião, não há raça. Eu acredito que no futuro não haverá nem homem nem mulher nem azul nem rosa (direto para a Damares), será tudo uma centrífuga multicolor. Me anima muito ver as mulheres com peitos de fora e todos se vestindo da maneira que querem, sem se importar com o que é imposto lá fora, e aceitando as diferenças de cores e corpos”, pontuou Sofia.

Tom Zé

Tudo pronto para o mestre Tom Zé. O baiano atrasou alguns minutos para ensaiar a música que fez exclusivamente para o festival: “A gente se espalha / Aqui no Rio Negrinho / é a Psicodália / No Rio Negrinho eu remelexo / quem quiser eu deixo (…) O rio é batizado”. Foi confuso, parecia que não iria sair, mas deu tudo certo, mesmo sem compreendermos exatamente a música.

Comemorando 50 anos do primeiro álbum da carreira, “Grande Liquidação” (1968), Tom Zé embalou grandes clássicos: “São São Paulo”, “Glória”, “Namorinho de Portão”, “Não Buzine Que Eu Estou Paquerando”, “2001”, entre outros. Um deleite tropicalista, que quase esbarrou em um nervoso momento. Tom Zé achou que o estavam “expulsando”, quando ouviu a passagem de som no Palco Lunar e pensou ser o começo de uma apresentação. Tudo resolvido no final e a noite estava aberta para Xenia França.

Xênia França

Primeira a se apresentar no Palco Lunar naquele sábado, Xenia continuou trilhando, assim como no disco de estreia da carreira solo, “Xenia” (2017), um caminho poderoso e também de tomada de consciência sobre o poder da mulher negra. Ovacionada música a música, Xenia comemorou o aniversário em cima do palco, com “Feliz Aniversário” cantado a todos os pulmões pelos milhares de psicodálicos. A cantora foi às lagrimas, e, como resposta, recebeu um a um os fãs que foram na saída do backstage para abraçá-la, conversar e tirar foto.

Norte e Nordeste embalaram os últimos shows do Palco Lunar. Primeiro com a apresentação dos pernambucanos do Cordel do Fogo Encantado, bradando a liberdade do último disco, “Viagem ao Coração do Sol” (2018) e os clássicos dos primeiros trabalhos, sempre com a potência da poesia de cordel, do teatro e de uma percussão hipnotizante. A performance do vocalista Lirinha, como sempre, um show a parte.

Cordel do Fogo Encantado

A “rainha do carimbó chamegado” foi a responsável por fechar o Palco Lunar, no sábado, à meia noite. Aos 79 anos, com dois discos, “Feitiço Caboclo” (2012) e “Banzeiro” (2016), além de um single, “Festa do Tubarão” (2019), Dona Onete mostrou jovialidade e simpatia de dar inveja a qualquer um. Com o ritmo típico dos caboclinhos do interior, de brancos, negros e índios, a paraense mostrou ao Psicodália a cara e a história do Pará e da capital Belém.

Agora era a vez do Palco dos Guerreiros receber as crônicas de uma São Paulo (SP) caótica, a partir da simbiose entre o pós-punk oitentista e o samba soturno e paulistano de Paulo Vanzolini. Kiko Dinucci subiu ao palco às 2h e apresentou o primeiro trabalho solo da carreira, “Cortes Curtos” (2017). Músicas rápidas e diretas que nos levam a enxergar cenas do cotidiano da maior cidade da América Latina. Foi um soco no estômago de quem estava aguentando firme e forte. Foi também um combustível, uma chacoalhada na cabeça, para continuar de pé para a catarse nunca decepcionante da Bandinha Di Dá Dó. Gaúcha, a banda de palhaços realiza uma purificação da alma e do corpo com um punk rock circense. Eu sei que foi bom porque sempre é, e era audível e perceptível lá da minha barraca, mas dessa vez o meu dia terminou muito antes do sol raiar.

DOMINGO (03/03)
Perdi o show do meu conterrâneo de Maringá (PR), Nanan, o primeiro do Palco do Lago, mas consegui descer para presenciar uma “matilha de cadelas raivosa em coro”. O trio curitibano Horrorosas Desprezíveis, formado por Amira Massabki (compositora e guitarrista), Jo Mistinguett (sonoplasta e baixista) e Patricia Cipriano (atriz e vocal) pode ser definido como “palhaças sapatômicas”, como bem disse Luiz Gabriel Lopes, que se apresentaria em breve no mesmo palco. Punks teatrais e com uma impressionante presença de palco, as Horrorosas entoaram o canto “Eu vim do futuro e lá só tem sapatão”, que seria ouvido diversas vezes dali pra frente.

Para quem já tinha se batizado no lago e/ou em outras águas ali do palco, a cabeça estava a mil. Prontos para entrar em transe e subir a montanha para ficar mais perto do céu com o som dos paulistas da Bike. Com três discos lançados, o quarteto finalizou a manhã deste domingo psicodá(é)lico com lisergia, muitos loopings – infinitos na cabeça de muita gente – e uma bem equilibrada dose de distorção.

Bike

“Esse festival, pelos que a gente tocou no Brasil até agora, é o mais legal. Completamente independente, clima bom, som bom, galera bem de boa, parece que estão preocupados apenas em ficar de boa e não em outras coisas que a gente vê em ‘festivais de grife’. Aqui não tem ninguém com celular na mão, e não porque não pega sinal, mas também não tem ninguém registrando, está todo mundo aqui mesmo, presente. Para nós foi super bom. A nossa sonoridade combina muito com o Psicodália”, relatou, realizado, o vocalista e guitarrista da Bike, Julito Cavalcante.

Da República Democrática do Congo, radicado em Florianópolis (SC), Glorie Ilonde desembarcou no Psicodália com uma talentosíssima banda de afrobeat e transmitiu sua arte musical desenvolvida a partir da sua origem, raiz e ancestralidade. Em dialeto ingala, francês e português, Ilonde realiza uma conexão entre dois lugares que, apesar de distantes, encontram entre si elementos culturais bastante comuns. Para quem se perde nos distintos dialetos, encontra-se na tradução dos gestos corporais do multiartista. Para quem ainda não havia atingido, essa apresentação foi mais um passo para a libertação mental e corporal.

Alzira E & O Corte

E se, mesmo assim, não atingiu, o que eu duvido muito, ali estava Alzira E e o projeto Corte. Com disco homônimo lançado em 2017, o projeto encabeçado por Alzira (voz e baixo) traz Marcelo Dworecki (baixo e guitarra), Nandinho Thomaz (bateraria), Cuca Ferreira (sax barítono e flauta) e Daniel Gralha (trompete e flugel).

Não me arrisco a eleger uma só rainha dentro daquele mundo. São várias, são todas. Muitas sobem ao palco, outras trabalham na limpeza, no Biodália – gestão ambiental que trabalha com banheiro seco, composteiras e lixo zero – na produção, na segurança, na técnica, na alimentação, no backstage ou no público. Mas ali, às 16h, no Palco do Sol, foi a vez da artista sul mato-grossense de 61 anos brilhar. Inovando desde os tempos de parceria com Itamar Assumpção, Alzira deu aula e brindou ao festival.

Quando alguém perguntou a ela se queria que segurasse o copo, enquanto conversávamos, de pronto respondeu: “Não, eu bebo, estou vivendo”. “Estou sentindo essa receptividade (do público) e essa coisa atemporal. Aqui as pessoas não estão ligadas nas redes, isso faz muita diferença. As pessoas aqui são todas sensíveis, são todas artistas e interessadas em coisas novas. Senti que a apresentação do Corte passou uma coisa nova para as pessoas. Acho que fomos muito bem compreendidos e respeitados. É isso que a gente quer fazer, ver essas músicas não conhecidas, músicas que não são padrões, nem de MPB, nem de nostalgia, nem de porra nenhuma, e as pessoas curtindo. Me interessou desde sempre essa minoria, e ver essa minoria aumentar é uma grande vitória. O Psicodália é uma espécie de troféu para essa vitória”, disse Alzira.

E completou: “Nesse momento (político e social brasileiro), tem que fazer mesmo, para chocar mesmo, para bater nas pessoas dizendo que não vamos nos conformar com a mesmice nem com o enquadramento, porque não somos destinados a isso. Somos liberdade, somos arte, queremos criar. Viva o Psicodália!” E eu, com uma felicidade de criança estampada no rosto, brindei com a rainha.

Dali em diante o que viesse era lucro. O corpo, o coração e a cabeça estavam completamente de braços abertos. E quem vinha? Azymuth! São mais de quatro décadas de “samba doido”: mistura ele?trica de jazz espacial com funk pesado e ritmos folclo?ricos tradicionais brasileiros. Não fosse o tempo de estrada desse trio, diria que foi tudo feito para o Psicodália. Ali, a bateria de Ivan “Mamão” Conti, o contrabaixo de Alex Malheiros e os teclados de Kiko Continentino levaram todo mundo para onde a cabeça guiava, com pé no chão e mente nas estrelas.

Azymuth

Esse careca só assiste show, observa o mundo psicodálico e conversa com as pessoas? Não come? Não toma banho? Não vai ao cinema? Não vai ao teatro? Confesso que até então eu comia um lanche aqui e outro ali, quando minha cabeça lembrava aquilo que o batismo das águas me fazia esquecer: a fome. O primeiro banho foi só nesse momento mesmo, corri para o chuveiro logo depois do show do Azymuth. Cinema e teatro estavam ao lado da minha barraca. Enquanto tomava uma cerveja com os amigos e meu irmão, escutava um filme ou uma peça de teatro aqui e acolá. Oficinas, passei apenas para conhecer. Com essa quantidade de shows bons é difícil fazer tudo. Trabalhando, então? Impossível.

Enfrentei uma pequena fila no banheiro, me perdi todo na volta para a barraca, enquanto desviava, no escuro, dos fios e procurava uma luz que me guiasse. Para ir é fácil, você passa um pouco do labirinto feito de barbantes, lonas e varais, olha para cima e vê a luz. A luz do banheiro nos guia. E na volta? Quando você olha para cima é só barraca e mais barraca. Uma grande aventura. Foi assim que acabei perdendo o primeiro show de domingo do Palco Lunar, Lucinha Turnbull.

Às 22h, eu estava limpo e a postos para Pepeu Gomes no Palco Lunar. Apresentando o primeiro trabalho solo da carreira de cabo a rabo, “Geração de Som” (1978), o guitarrista baiano não agradou a todos. Alguns reclamavam que foi apenas uma aula de solos quase automáticos, desanimada, outros que era uma pegada muito anos 1980 (apesar do lançamento no final dos anos 1970) – partindo do princípio de que ser dos anos 1980 é depreciativo. A questão é que, aparentemente, a maioria da plateia não arredou pé e se manteve acesa, empolgada e dançando durante a execução das doze faixas que compõem o álbum. Não chegou nem perto de apagar a luz dos psicodálicos, que aguardavam ansiosos os chilenos da Chico Trujillo.

Com um vocalista apelidado por mim mesmo de “Papai Noel Tropical”, a banda comemorou 20 anos de estrada no Psicodália. Na mistura de cumbia, reggae, ska e rock, os integrantes criam a chamada “nova cumbia chilena” e colocam a plateia para dançar. Daquela forma que se dança no Psicodália: do jeito que for, do jeito que quiser e sentir. A música vem e você só se mexe e levanta poeira. Até às 2h eu aguentei no Palco dos Guerreiros, assistindo a orquestra de música popular Trabalhos Espaciais Manuais, do Rio Grande do Sul. Meu último suspiro de domingo, embalado pelo samba, pelo funk, pelo rock’n’roll e pelo jazz. Um lindo e agradável boa noite.

Pepeu Gomes

SEGUNDA (04/03)
A segunda-feira de Carnaval começou com um grande ícone do Psicodália: Plá. O músico curitibano que perambula pelas “ruas” em quase todas as edições, com o violão, discos e todos seus apetrechos, foi o primeiro a se apresentar no Palco do Lago, com banda e tudo. Recebeu abraços de muita gente e foi ovacionado.

Diego Perin, ex-Banda Gentileza, foi o próximo. Subiu ao palco com o seu “otimismo reverso”, explicado, basicamente, como: apesar de tudo estar uma merda, tudo está bem. Com o EP “Cabresto” lançado no ano passado, o paulista radicado em Curitiba apresentou músicas de um trabalho a ser lançado. Sentiu-se “pisando em uma utopia”, não achou lugar melhor para apresentar as novas músicas, muito influenciadas por Belchior.

“Quando ele (Belchior) fala que palavras são como navalhas e não pode querer cantar como convém, sem querer ferir ninguém, aquilo me atinge de uma forma que é como uma voadora na nuca. As pessoas se apegando ao que foi, esquecendo de viver o presente. Cantar isso aqui no Psicodália é muito especial”, relata o músico.

Diego Perin

Depois de um pouco mais de um ano que pisou nos palcos do festival, com a banda Graveola, o mineiro Luiz Gabriel Lopes encerrou o Palco do Lago de segunda-feira. Rapaz brasileiro, latino-americano com influências do reggae, MPB, muita poesia, natureza e a vivência da estrada, das caminhadas, da vida e de outras vidas. Acompanhado por Juninho Ibituruna (bateria), Téo Nicácio (baixo) e Zazá Bertolini (flauta transversa), Luiz entregou um show para clarear definitivamente o dia.

Plena segundona e o line up não guardava nenhum descanso. O curitibano Leo Fressato abriu o Palco do Sol logo depois de Luiz, já com um recado aos velhos saudosos que reclamavam da falta de rock: “Em tempos de Bolsonaro, ser veada é muito rock’n’roll, queridas”. Com composições que cantam os amores e desamores de Leo com os “boys”, o músico faz seu ato político embalado por bolero, cumbia, intensa performaticidade e um diálogo íntimo e provocativo com o público. Apesar de algumas músicas antigas, Leo também apresentou o novo projeto, “Louco e divertido”. “Cansei de fazer música para os outros, então fiz o refrão e o disco para mim, porque sou louca e divertida”.

Leo Fressato

“Eu tenho a teoria de que as pessoas não gostam de cor. Você começa a colocar muita cor, começa a chegar polícia, é incrível. A polícia odeia cor. Esse (entrarem com metralhadoras) é um jeito deles pressionarem o festival, justamente por ele ser libertário, porque a gente está vivendo tempos em que as coisas querem ficar rígidas outra vez. A gente está dizendo: “não, não estamos falando de rigidez, estamos falando de maciez, de alongamento. A gente vai alongar as coisas, a gente vai chegar mais longe. A capacidade de olhar para o mundo aumenta com o Psicodália. E se eles vêm, a nossa resistência é sorrir, é tocar, é continuar fazendo um festival lindo”, argumenta Leo, sempre presente no Psicodália, seja como artista, público ou ajudando na organização.

A banda Escambau, também de Curitiba, chegou com o pé na porta no Palco do Sol. Com dois grandes nomes do rock do Sul, Giovanni Caruso e Maria Paraguaya, não faltou paulada com músicas incisivas e diretas ao momento político e social brasileiro, e de toda a América do Sul. As letras recebiam o complemento das conversas de Caruso com o público. Mandou Bolsonaro para todo lugar possível, sempre seguido de aplausos. E ainda salientou: “Não deixem as pessoas lá do poder dizerem que o nosso povo é uma merda nem que somos a culpa do Brasil estar do jeito que está. Eles que são uns merdas. Nosso povo é lindo, o povo brasileiro é maravilhoso!”

Anelis Assumpção

Para finalizar a tarde e se despedir do sol quente de segunda-feira, Anelis Assumpção continuou representando a vanguarda da música de São Paulo, com vocais sensuais e arranjos irreverentes, pitadas de dub, afrobeat e grooves brasileiros. Homenagens a Bob Marley, músicas em português, inglês e espanhol colocaram todos para dançar ao som dos trabalhos “Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa” (2011), “Amigos Imaginários” (2014) e “Taurina” (2018).

Com sucessos que não acabam mais, o filho do Holocausto Jorge Mautner, subiu ao Palco Lunar, às 20h, ao lado de Bem Gil (guitarra), Mãeana (vocal), Bruno Dillulo (baixo) e Rafael Rocha (bateria). Quase como em uma relação familiar, os músicos contemporâneos ali não só homenageavam o grande mestre, mas também o acompanhavam e o auxiliavam em todas as canções. Errando letras, perdendo o timing ou cantando com letra em mãos, Mautner mostrou o que é um artista. A cada intervalo, era ovacionado da forma mais forte e encantadora possível: “Jorge! Jorge! Jorge! Jorge!” Contou histórias, entoou marchinhas e se deleitou com um público jovem cantando “Maracatu Atômico”, “Lágrimas Negras” e “Cinco Bombas Atômicas”. A emoção tomou conta de todos.

Hermeto Pascoal

Quando saiu, eu só conseguia imaginar o encontro dele com a próxima atração daquele palco, Hermeto Pascoal. Provavelmente, uma conversa digna de se guardar para a prosperidade. E enquanto eu esperava, com máquina fotográfica pronta, no vão entre o palco e o público, surge uma galinha. No Psicodália as pessoas também se fantasiam, inclusive imprensa. Ao me ver rindo com a cena de uma galinha gigante com uma máquina, ela me olhou e cacarejou: “É nóis que avoa!!”

E lá veio Hermeto, alagoano de 82 anos capaz de tirar som de qualquer coisa ao alcance das mãos, dos pés e da boca. Já no início, com problemas no teclado, mostrou do que é capaz. Não parou a música, apenas se levantou e se dirigiu ao outro lado do palco, tomou o assento do outro tecladista e continuou tocando. Só voltou para o seu posto quando os próprios músicos da banda arrumaram o problema, ainda na música de abertura.

E assim continuou o mago, por uma hora, regendo uma super banda e apresentando algumas das centenas de músicas que compõe há décadas. Jazz para fritar os já fritados e samba, forró e baião para embalar os mais empolgados – e talvez fritados. Na plateia, só contemplação, comoção e muita dança.

Abayomy Afrobeat Orquestra

A poeira continuou levantando no show animado dos pratas da casa, os paranaenses da Confraria da Costa. Essa foi minha hora de tomar outro banho, dessa vez sem fila, com a mesma aventura da volta. Às 2h, estava eu preparado para os cariocas da Abayomy Afrobeat Orquestra, no Palco dos Guerreiros.

Criada há dez anos, a banda nasceu durante uma reunião de músicos cariocas para um show de homenagem ao nigeriano Fela Kuti. Com o show “Afrobeat, Afrontas e Lacrações”, as homenagens ao africano continuam, misturadas às músicas de Gilberto Gil, Jorge Ben, Chico Science e Nação Zumbi e canções dos dois trabalhos do grupo (“Abayomy”, 2012, e “Abra Sua Cabeça”, 2016). Além de Monica Avila (sax alto) outra mulher subiu ao palco, a baterista e percussionista Larissa Conforto. Foi afrobeat para descarregar as energias e dar tchau à segunda-feira de alma lavada.

TERÇA (05/03)
Não fui capaz de levantar para o Palco do Lago neste último dia de Psicodália. Não assisti Nã, Cao Laru e Ramona and The Red Vipers. Fui direto para o Palco do Sol, às 14h, assistir ao “antivanguardismo atradicional pseudorevolucionário” da banda paulista Culto ao Rim. Uma beleza sem fim, daquelas bem barulhentas que desgraçam a cabeça. Uma psicodelia que não está só nas distorções, mas no comportamento. Nas máscaras, nos discursos, no baterista soprando um brinquedo com sons estranhos ou batendo a cabeça com capacete no tom, repetidas vezes, no ritmo da música. Uma “esquizodelia” completa. Mexeu com o cérebro, o coração e os rins de todos.

Às 16h, ainda no Palco do Sol, mais uma representante baiana no Psicodália: Aiace. Desde os 16 anos se apresentando nas noites de Salvador (BA), Aiace participou e tocou com grupos e artistas importantíssimos na sua caminhada musical: Orquestra Afro Sinfônica, Gerônimo, Mateus Aleluia (Tincoãs), Lazzo Matumbi, Munir Hossn, Luiz Brasil, Mou Brasil, Sertanília e muito mais. Assim foi a apresentação, misturando elementos da música popular brasileira, jazz e elementos do universo pop e rock, sem esquecer as raízes ancestrais afro-baianas. Como todas as mulheres que se apresentaram no festival, foi ovacionada.

Para fechar com chave de ouro o Palco do Sol do Psicodália 2019, o carioca Hamilton de Holanda se apresentou com seu bandolim de dez cordas, acompanhado de Guto Wirtti (baixo) e Thiago da Serrinha (percussão e bateria). Virtuosismo, balanço e alegria. São 37 anos de estrada e 33 lançamentos. Muitas premiações e álbuns consagrados. Enquanto consagrávamos aquele show, a primeira e única chuva do festival chegou. Suficiente para dar uma alagada na barraca e destruir o gazebo, mas também suficiente para lavar a alma e molhar os pensamentos. Veio bem a calhar.

Depois da apresentação, Hamilton saiu do backstage e foi acompanhar os outros shows ao lado dos psicodálicos. Era abraçado efusivamente por muitos fãs deslumbrados. Conversou com todos, tomou algumas cervejas e foi para o Palco Lunar acompanhar o show da banda progressiva Bacamarte, com participação da cantora Jane Duboc.

Os cariocas da Bacamarte não seguraram muito a minha onda, mas foi uma apresentação para os fãs do rock progressivo, os habitantes raízes do Psicodália. Logo vieram os dois shows mais aguardados daquele palco: Mulamba e Letrux. Ambos com participação de Larissa Conforto, talvez a artista que mais subiu ao palco neste ano. Em três deles, inclusive.

Mulamba

Depois de muito elogiadas na edição anterior, as meninas da Mulamba não deixaram por menos e fizeram ainda melhor. Força, potência, resistência e emoção embaladas por teatro, música e dança. Cacau conseguiria carregar a apresentação nas costas, mas ali ela é “apenas” um dos suportes da banda. A vocalista ainda conta com cinco fortes artistas, que ajudam a levantar alto o espetáculo. As pausas que acontecem no meio de toda essa explosão não são para relaxar, tocar uma balada, dar um respiro. As pausas entre uma interpretação e outra são para fortalecer ainda mais o grito feminista e dar espaço para a diversidade, como na presença de mulheres e funcionários do festival, celebrando em cima do palco, ou mulher pedindo namorada em casamento. Uma cena mais intensa que a outra.

Quando realmente existe uma pausa para respirar é para enfrentar outra porrada. Escritora, atriz e cantora, Letrux já avisa há dois anos, “bota na cabeça que isso aqui vai render”, na canção “Vai Render”. E rendeu. Na entrega do show “Em Noite de Climão” foram altas doses de disco music e new age, altas doses de Madonna, altas doses de astrologia e conversa com o público.

O ponto alto e derradeiro do que seria, para mim, o Psicodália 2019 foi a participação da banda Mulamba. Acrescentando mais vermelho ao cenário da Letrux, as integrantes da banda curitibana incendiaram o Palco Lunar na interpretação da música “Que Estrago”. Até mesmo a Letrux se perdeu depois da destruição. Respirou fundo, tomou um gole de água e continuou. Dali para frente foi só dançar pianinho, até onde minhas pernas aguentavam, e esperar o fim. O sol nasceu leve e preguiçoso na quarta-feira de cinzas. O corpo pedia para voltar para a vida normal, enquanto a mente pedia para continuar por ali. Mas não teve jeito, foi preciso levantar morada e voltar ao velho mundo.

Mulamba & Letrux

E este é o único momento triste do Psicodália, a hora de ir embora. Religar a internet e perceber, com uma olhada de alguns minutos nos jornais e redes sociais, que o Brasil continua dando passos largos para trás. Perceber que o desrespeito e a violência para com as diversidades continua. Perceber que preconceito ainda existe. O machismo ainda existe, da forma mais escrota e violenta.

O olho lacrimeja não mais de alegria e emoção, e sim de tristeza. Mas, como já dito, ali dentro pessoas se descobrem e se transformam. Ali dentro, 6000 pessoas praticam a expansão do amor, do respeito, da diversidade, da compaixão. Dali, essa amplificação continua para todos os cantos do Brasil e do mundo. Dali, saímos cada vez mais rock’n’roll e psicodálicos, mais prontos para enfrentar tempos sombrios. Dali, nasce a cada ano uma nova forma de convivência. Que as crianças retornem e que o Psicodália se torne cada vez mais existência e menos resistência.

– Rafael Donadio (Facebook: rafael.p.donadio) é jornalista maringaense…

5 thoughts on “Psicodália 2019: A expansão do amor, do respeito e da diversidade

  1. “Que as crianças retornem e que o Psicodália se torne cada vez mais existência e menos resistência.” Arrebentou – psicodália é viver o seu mais sincero “eu “, é pura liberdade, e liberdade é tudo. Parabéns por me fazer voltar aqueles maravilhosos dias e até o ano que vem! S2

  2. Muita ênfase à polícia no início do texto entristeceu meu coração. Em 5 dias de tempo bom, dar muita ênfase às poucas nuvens é desmerecer o poder do sol.
    Depois de alguns parágrafos o texto volta a refletir a verdade do festival, o amor.
    Viva o Dália!

  3. Na segunda feira os shows não acabaram no abayomy, teve Picanha de Chernobill encerrando o palco dos guerreiros, um show vibrante, cheio de energia que nem sequer foi citado

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