Fragmento de perfeição no mundo pop

Texto e Fotos: Marcelo Costa

Verão em Londres. Os relógios marcam mais de 30 graus, e como lembrou um jornal vespertino destes distribuídos gratuitamente na porta do metrô, nem assim os motoristas desligaram o aquecimento dos “double decker bus”, aqueles famosos ônibus vermelhos de dois andares que povoam o imaginário gringo e uma canção dos Smiths. A empresa que controla o transporte público londrino acusou um problema nos geradores, e assim se fez a sauna.

Como diria Joe Strummer, Londres ferve, e não só por causa do calor do tão aguardado verão e dos problemáticos aquecedores dos ônibus. Há um motivo especial: uma das bandas britânicas mais importantes das duas últimas décadas está quebrando um silêncio de seis anos e 55 mil pessoas marcham para rever o mito ao vivo em dois dias de shows no Hyde Park, um dos maiores parques da cidade.

O metrô está lotado e mais parece um desfile de semana de moda com camisetas de bandas de rock, cores de cabelo e trajes de verão. As duas estações de metrô que atendem ao parque estão com as catracas abertas visando evitar a muvuca que um número tão grande de pessoas juntas no mesmo lugar possa causar. Coisa de quem já vem fazendo eventos desse porte já faz mais de 40 anos.

A fila no caixa eletrônico da estação é enorme. Fãs compram de tudo: água, suco, batatinhas. Cambistas correm pra lá e pra cá oferecendo por 150 libras os ingressos que custavam 50 nos revendedores oficiais, e que haviam se esgotado semanas antes do show. Uma menina de cabelo amarelo, saia xadrez e tatuagem descolada chora um desconto, e consegue pegar um par de ingressos por 200 libras (cerca de 600 e poucos reais). Todos sorriem.

Os dois shows no Hyde Park eram para ser os primeiros da volta do Blur, mas eles saíram fazendo pequenos apresentações de aquecimento para 200 pessoas e aceitaram o convite do badalado e enorme Glastonbury, para fechar uma das noites do festival. Isso não impediu que os mais de 110 mil ingressos evaporassem e, no dia do show, as bilheterias só atendem credenciamentos e convidados, mas por 100 libras se dá um jeitinho.

A entrada para o local do show é de fácil acesso e não tem filas. São quase 14h, e o roteiro promete apresentações de uns tais de Golden Silvers mais Crystal Castles e Foals. A banca de camisetas oficiais fatura uma nota e as filas para beber a cerveja dinamarquesa Tuborg e três variantes de sidra – a moda do momento em festivais de rock na Europa – crescem. O sol está lá no alto e os termômetros marcam 32 graus.

Os Golden Silvers abrem o dia e vão embora deixando a certeza de que precisam amadurecer muito. O Crystal Castles foi bem mais interessante, apesar da jovem vocalista Alice Glass exagerar no cliche e na pose. Ela parece (ou faz o possível para parecer) uma Amy Winehouse de terceira categoria, mas tem presença de palco. Desfila sua meia-calça desfiada, se joga na galera e diverte. A temperatura continua subindo.

No intervalo, pequena pausa para pesquisar um prato de comida decente. A opção escolhida é um hambúrguer caprichado com um pouquinho de salada e muito catchup. Me sinto em um festival no Brasil, mas volto a realidade na hora da sobremesa: um belo sorvete de chocolate que se mantém congelado debaixo do sol de quase 35 graus. Hora de abastecer de cerveja e encarar o Foals, que foi elogiado no Planeta Terra 2008, mas que pareceu deslocado no Hyde Park. Melhor procurar uma sombra.

São quase sete da noite – com sol a pino – quando o Blur dá as caras. Seis anos no mundo pop são uma eternidade, mas parece que o quarteto sobreviveu bem ao tempo. Eles começam com “She’s So High” e emendam de cara “Girls and Boys” sem pausa pra falação. O local vira uma festa daquelas em que você não acredita estar presente. O repertório é generoso com hits e o público canta tudo.

Damon Albarn sorri olhando a multidão de pessoas, oferece “Beetlebum” ao sol e relembra que o local já presenciou uma passeata de dois milhões de pessoas contra a guerra do Iraque. “E vocês viram o que aconteceu”, provoca. Em outro momento, conta que morou um bom tempo perto do Hyde Park, e que foi em suas idas e vindas ao local que surgiu a idéia para “Parklife”, a canção, que traz ao palco Phil Daniels (o ator do filme “Quadrophenia”) para uma versão simplesmente arrasadora da música.

Há espaço para canções de todos os álbuns da banda. “There’s No Other Way” da estréia com “Leisure” (1991); “Chemical World”, “Sunday Sunday”, “Advert”, “Popscene” e “Oily Water” de “Modern Life Is Rubbish” (1993); metade das 16 faixas do aclamado “Parklife” (1994); “Country House” de “The Great Escape” (1995); “Death of a Party” de “Blur” (1997); “Trimm Trabb” e as encantadoras (e os grandes momentos da noite) “Coffee & TV” e “Tender” de “13” (1999); e apenas “Out of Time” (com Albarn solando ao violão) de “Think Thank” (2003) num total de 25 músicas.

Damon Albarn e Graham Coxon sorriem um para o outro em vários momentos da apresentação, mas não trocam uma palavra, um abraço, um elogio sequer. Há certa distância entre os dois, e isso felizmente não atrapalha o show, que é impecável no que diz respeito à parte instrumental, com Alex James (baixo) e Dave Rowntree (bateria) construindo o terreno para que o guitarrista desfile riffs portentosos e o vocalista entretenha a audiência.

Já no bis, o vocalista comenta sorrindo e exibindo sua prótese de ouro no maxiliar superior: “Sou um sortudo por ficar tanto tempo parado e voltar para isso”. Uma batida desajeitada na caixa da bateria faz o público enlouquecer, e ‘uhus’ são ouvidos aqui e ali até o riff violento de “Song 2” flutuar na atmosfera como serra elétrica cortando o ar. No alto, o céu azul sem nenhuma nuvem está mais escuro, e uma lua branca sobe às costas do palco. O show termina em um segundo bis com Albarn desejando “Enjoy the summer” ao final de “The Universal”. Perfeito.

A saída não poderia ter sido mais tranqüila, e logo um ônibus encosta, superlota, e segue seu caminho noite adentro. O show deixa de ser presente e se transforma em objeto, afinal, assim que a banda colocou os ingressos à venda, um email ofertava ao comprador do ticket o áudio da noite – em MP3 de 320k – por 10 libras ou 15 libras o CD físico duplo (28 se você quisesse os dois shows). Assim nasceu “All The People – Blur Live at Hyde Park”, CD/MP3 que permanece à venda na Blur Store (http://blur.sandbag.uk.com), e será comercializado apenas ali.

Foram dois shows especiais, e embora o futuro da banda seja incerto, o Blur cumpriu seu dever naqueles dois dias de julho: divertiu 110 mil pessoas com um show impecável cujo registro em áudio (ótimo, mas um pouco abafado em alguns momentos devido à correria da mixagem) não traz todo o calor do verão londrino, o gosto da pilsen dinamarquesa, e nem o sabor das batatas fritas gordurosas afogadas em catchup, mas dá uma pequena idéia do que aconteceu no Hyde Park e deixa a certeza de que momentos assim são raros fragmentos de perfeição na imperfeição do mundo pop. Esse foi. Agora aguardemos o próximo.

Tracklist das duas noites
CD 1:
01. She’s So High
02. Girls & Boys
03. Tracy Jacks
04. There’s No Other Way
05. Jubilee
06. Badhead
07. Beetlebum
08. Out Of Time
09. Trimm Trabb
10. Coffee & TV
11. Tender

CD 2:
01. Country House
02. Oily Water
03. Chemical World
04. Sunday Sunday
05. Parklife
06. End Of A Century
07. To The End
08. This Is A Low
09. Popscene
10. Advert
11. Song 2
12. Death Of A Party
13. For Tomorrow
14. The Universal

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Marcelo Costa é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne

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Leia também:
– “Think Tank”, faixa a faixa, por Marcelo Costa (aqui)
– “Best Of Special Edition”, do Blur, por Marcelo Costa (aqui)
– Diário de Viagem Europa 2009, por Marcelo Costa (aqui)

9 thoughts on “Fragmento de perfeição no mundo pop

  1. “And if a double-decker bus
    Crashes into us
    To die by your side
    Is such a heavenly way to die
    And if a ten-ton truck
    Kills the both of us
    To die by your side
    Well, the pleasure – the privilege is mine”

    Isso é que é amor!!!

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