Música: Funeral, Arcade Fire

por Marcelo Costa

Um dos discos mais sensacionais de 2004 nasceu sobre a sombra da morte. Quando o septeto Arcade Fire, de Montreal, no Canadá, começou a burilar o que seria o primeiro álbum da banda, sucessivas mortes de familiares surgiam para embalar as canções que nasciam. O resultado dessa pequena tragédia entre amigos é “Funeral”, um álbum que toma o ouvinte pela mão e o leva a caminhar por madrugadas escuras de dias sombrios, que, no entanto, vislumbram manhãs ensolaradas.

Embalando essa temática lúgubre, arranjos pouco convencionais – que partem do trio básico de instrumentos do rock (guitarra, baixo e bateria) até incorporarem xilofone, harpa, piano, órgão, violino e violoncelo – que conseguem fazer as canções soarem autênticas, claro, respirando influências, mas sem parecer autocópia.

Um ouvinte preguiçoso poderia fazer a ligação da banda com o Interpol (que ainda não conseguiu sair da sombra do Joy Division/New Order) ou mesmo o Franz Ferdinand (a melhor das bandas atuais, que consegue “homenagear” várias outras bandas em seu disco de estreia, quando não três bandas em uma mesma música), o que seria tremendamente injusto. O Arcade Fire segue a escola tradicional da música popular, filtrando as influências por um prisma totalmente particular e soando, assim, novo. Na verdade, a banda fica no meio termo entre a delicadeza do Belle & Sebastian e o ruído do Delgados.

E as influências poderiam formar todo um parágrafo indo de Cocteau Twins e o Yo La Tengo dos últimos discos, passando pelo Pixies de “Bossanova”, pelo The Cure de “Disintegration” e pelo Belle & Sebastian de “If You’re Feeling Sinister”, pelo lado roqueiro dos primeiros discos do Delgados até chegar no lado baladeiro e épico do Radiohead e do Mercury Rev, ou na fonte de tudo isso: Velvet Underground e Nick Drake.

“Neighborhood #1 (Tunnels)” abre o disco com um lindo arranjo de piano e cordas. Assim que o baixo entra acompanhando a voz, gruda no peito, e te leva. Guitarra e bateria aumentam o transe. Win Butler, o vocalista, canta partindo corações (o dele, principalmente) enquanto se imagina fugindo no meio da madrugada, mas há como fugir do passado, dos amigos, da família? A letra: “And if my parents are crying then I’ll dig a tunnel from me window to yours”.

“Neighborhood #2 (Laika)” destaca a bateria, vocal por baixo na mixagem e clima dançante em uma letra que revela, novamente, conflitos familiares, com o irmão mais velho abandonando o lar, rasgando as fotos da família e arranjando briga com o pai para a vizinhança dançar ao som das sirenes dos carros da polícia. “Our older brother bit by a Vampire”, diz a letra.

“Une Annee Sans Lumiere” traz Butler dividindo os vocais com sua mulher, Régine Chassagne, canção lírica e quase romântica, que acelera no final. “Neighborhood #3 (Power Out)” segue na linha de “Laika”, com clima dançante, como se toda a “vizinhança” formasse uma grande suíte musical, que “Une Annee Sans Lumiere” acabou dividindo em duas partes (na verdade, em quatro). Butler praticamente grita: “The power’s out in the heart of man/ Take it from your heart/ Put it in your hand”. A quarta parte da suíte é “Neighborhood #4 (7 Kettles)”, mais lenta, mais evocativa, e mais sonhadora: “It’s not a lover / I want no more / And It’s not heaven / I’m pinting for”. Porém, a morte está levando os mais velhos, as bruxas e os mentirosos.

O álbum chega ao meio, e quando tudo parece perdido, envolto em sombras e brigas, surge o amor, forte e poderoso, em uma das mais belas baladas dos últimos tempos: “Crown Of Love”: “Your name is the only word, the only word that I can say”, canta Butler, sobre os vocais de Régine, encerrando a canção após ter pedido zilhões de desculpas por ter percebido que a coroa do amor caiu sobre ele. Guitarras abrem “Wake Up”, que traz o vocalista cantando: “Someone told me not to cry / But now that I’m older / my heart’s colder / and I can see that it’s a lie”.

“Haiti” é uma ode de Régine para seu país nativo, lembranças de um tempo em que o sangue ainda fervia nas veias. Ela canta em francês e inglês, e pede para que suas cinzas sejam jogadas no mar. Um piano conduz “Rebellion (Lies)”, outra música entre as melhores – música e letra – de “Funeral”. “People say that your dreams / are the only things that save ya / Come on baby in our dreams, we can live our misbehavior”, canta Butler. Para fechar, seis minutos de lirismo. É Régine conduzindo “In The Backseat”, que termina com a belíssima frase: “My whole life, I’ve been learning”. Estamos sempre aprendendo, sempre.

“Funeral” foi lançado pela Merge, mesma gravadora do Lambchop e do Magnetic Fields. É um dos discos mais bonitos de 2004, e um dos poucos álbuns recentes da música pop que consegue fugir do padrão reverencial e caricato que tanto tem marcado as dezenas de novas bandas. Fala sobre a morte, mas também de esperança, maturidade e renovação. E sobre a vida de todos nós, todos nós.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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