O Terno ao vivo em SP: É ao lado dos amigos que Tim Bernardes soa melhor, às vezes muito melhor do que parece

texto por Bruno Capelas
fotos por Fernando Yokota

Durante séculos, a humanidade aprendeu a viver com o paradigma da escassez de recursos – não à toa, existe até um ramo da ciência (a economia) que se dedica a estudar justamente esse assunto. É uma regra que vale até mesmo pros dias de hoje: numa era cultural marcada pela abundância, a falta pode ser o elemento que mais faz a diferença. Apostar nessa ideia pode ser a fórmula para explicar tantas reuniões de bandas, tantas turnês de despedida, tanta nostalgia vendida como novidade para a “triste geração que pode tudo, quando tudo ficou tão banal”.

É o que ajuda a explicar “a maior reunião de pessoas que gostam da banda O Terno”, como brincou o baixista Guilherme D’Almeida a certa altura do show de abertura da turnê de encerramento do disco “Atrás/Além”, lançado pelo trio paulistano no longínquo ano de 2019. Mas não ajuda a resumir a força do reencontro de Tim Bernardes com os amigos Guilherme e Biel Basile, à frente de mais de 4 mil pessoas na primeira sexta-feira fria e chuvosa de um quente 2024 no Espaço Unimed, em São Paulo, com direito a ingressos mais que esgotados.

É um público que chega a surpreender quem acompanhou a carreira do Terno em seus primeiros anos – “nosso primeiro show tinha espaço pra 14 pessoas, incluindo a gente”, lembrou Guilherme a certa altura da apresentação. Mas não espanta: há cinco anos sem lançar disco ou fazer shows, e sem nem mesmo uma confirmação de que novos trabalhos virão por aí, o trio paulistano cresceu sem necessariamente precisar se movimentar demais.

Parte disso pode se explicar pela carreira solo de Tim Bernardes. Nesse período, ele não só lançou um disco novo (“Mil Coisas Invisíveis”, de 2022), como também excursionou pelo mundo tanto solo como ao lado dos Fleet Foxes – isso pra não falar em shows tributo a Gal Costa ou envio de canções para toda sorte de artistas, incluindo veteranos como Jards Macalé ou Alaíde Costa.

Algo que começou como um projeto paralelo hoje parece ter se tornado protagonista de uma carreira. Vale lembrar que o próprio cantor já havia fechado uma noite no mesmo palco na Barra Funda em 2023, sem contar as múltiplas bilheterias esgotadas no majestoso Theatro Municipal de São Paulo em duas temporadas seguidas. Não seria um exagero dizer que o vetor mudou, a ponto de que “o Tim do Terno” tenha virado “o Terno é a banda do Tim” – fenômeno parecido aconteceu na família: antes, Tim era “o filho do Maurício Pereira”, mas agora “o Maurício é o pai do Tim”, como o próprio patriarca brincou em entrevista recente ao Scream & Yell.

Mas há algo nesse crescimento que também tem a ver com o que vivemos nos últimos cinco anos e que se relaciona intrinsecamente com a obra do Terno – em especial, com o disco “Atrás/Além”, de 2019. “É um disco sobre ritos de passagem, sobre a fronteira do mistério, sobre se entender internamente na nossa geração que é uma doideira”, disse Tim a certa altura do show sobre o álbum executado na íntegra ao longo da noite. “A gente viveu o atrás e agora, depois disso tudo, chegou no além”.

Por essa perspectiva, é fácil compreender como um disco reflexivo bateu fundo no coração das pessoas durante um período de recolhimento – em especial, de um público abaixo dos 35 anos, majoritário na lotação do Espaço Unimed. É um grupo que já teve a chance de viver um bocado, mas ainda está longe do fim, e se deparou com aquele velho dilema já exibido por Neil Young em “Tell Me Why”: “when you are old enough to repay, but young enough to sell”. São dores e delícias que ecoaram na cabeça de muita gente durante a pandemia, gente que encontrou no Terno a verbalização para sentimentos que não tinha ou não sabia que tinha antes – por isso, não chega a espantar o fato de que, quando o vocalista perguntou quem estava em seu primeiro show do Terno, parte considerável do público levantou as mãos.

É também compreensível que esse período tenha levado muita gente a desenvolver certa ojeriza pelo Terno e por Tim Bernardes. Ambos parecem padecer de um sintoma que também já acometeu outra banda de vulto do Brasil que se dispôs a fazer a passagem do independente para o mainstream de forma singular: os Los Hermanos. Mais difícil é entender o porquê, mas talvez uma pista esteja no fato de que tanto os barbudos como Bernardes partam de experiências extremamente individuais para compor suas músicas, mesmo quando se dispõem (mais Tim do que Camelo ou Amarante) a falar em prol de uma geração.

Quando essa realidade se torna coletiva – e multiplicada pela caixa de ressonância da internet, independentemente da plataforma utilizada –, porém, pode gerar certo estranhamento ver uma multidão de gente jovem dizendo que “já não é assim muito de ganhar” ou que está “pegando leve”. Estranhamento esse que pode se tornar ainda maior tanto no afastamento (do tempo), na superexposição (de um cantor) ou quando tenta se tomar essa experiência muito particular e transformá-la no retrato monolítico de uma geração – algo que nunca existiu, mas que se torna um exercício ainda mais complexo em tempos de nichos, bolhas e do elogio da diversidade. É um emaranhado de ideias que pode virar perigosa teia, imobilizando muitos artistas numa armadilha.

Mas ao subir ao palco do Espaço Unimed às 22h20 do último dia 22 de março, com protocolares vinte minutos de atraso para o horário previsto, Tim Bernardes e seus companheiros parecem dizer “sem essa, aranha” para a cilada do último parágrafo. Mais que isso: ao sair de um casulo tanto autoimposto quanto movido pelas circunstâncias globais, o trio se coloca em plena vista com suas cores primárias, sem truques ou jogo de espelhos – no máximo, um quarteto de metais para enriquecer os arranjos e levar o Terno para além do formato guitarra-baixo-bateria.

O que aparece em cena ali é música, bela música, cheia de poesia e recursos apurados. Mesmo o crítico mais resistente e cheio de ideias na cabeça ao começo do espetáculo deve se render com o desenrolar da noite – a começar pelo uníssono de quatro mil vozes cantando a melodia de “A História Mais Velha do Mundo”, tão delicada quanto uma caixinha de música. Quem não é pego pelo coração, porém, tem uma chance de entrar na onda logo na sequência com a energia de “Não Espero Mais”, em que Bernardes mostra bem o resultado das lições aprendidas com Mutantes e Roberto Carlos, enquanto Biel Basile espanca a bateria com uma classe rara em sua geração.

Ver o Terno no palco é lembrar que, antes de todo o discurso em torno de Tim Bernardes, o que existe é a obra de Tim Bernardes, um dos artistas mais cheios de recursos de sua geração. É recordar que ele não só compõe muito bem, tradição que vem de berço, como é grande guitarrista (algo que se esconde em sua carreira solo) e capaz de estabelecer arranjos intrincados para evidenciar belas melodias, seja nas cordas ou ao piano. Nem sempre o público é capaz de apreciar: em momentos mais silenciosos, como na cinematográfica “O Bilhete”, um delicioso lado-B de “Atrás/Além”, a conversa dos presentes encobria facilmente a voz do cantor, a despeito do excelente trabalho de som de Gui Jesus Toledo numa casa conhecida por dar trabalho aos técnicos.

Assistir ao trio, sob as belas luzes de Olivia Munhoz, é também presenciar o trabalho de uma banda que foi capaz de absorver múltiplas influências da canção brasileira e transformá-la numa amálgama em que os ingredientes são reconhecíveis, mas o resultado é muito próprio. Que o diga “O Orgulho e o Perdão”, um transsamba com o DNA de Caetano Veloso, a raulsseixiana “Lua Cheia” ou, claro, a idílica “Minas Gerais”, eco do Clube da Esquina que foi a única ausência no repertório do show entre as canções do disco “Melhor Do Que Parece”, executado quase à íntegra pelo Terno.

Em compensação, foram poucas as músicas dos dois primeiros discos do grupo que surgiram no repertório de quase trinta canções executadas ao longo de duas horas e meia de show. Da estreia “66”, apareceram apenas a faixa-título e “Morto”, que ganhou arranjo matador com o auxílio luxuoso do quarteto de metais. Já do “disco da casinha” (o auto-intitulado “O Terno”, de 2014), foram apenas três, todas em momentos marcantes da apresentação – a começar pela baladaça “Eu Vou Ter Saudades”, uma daquelas canções que Roberto Carlos deveria gravar se um raio johnnycashiano caísse em sua cabeça.

Paulistaníssima até a última gota, “O Cinza” surgiu num momento power trio do show, quando o grupo deu folga para o quarteto de metais e enveredou por uma rota há muito não explorada. Com sete minutos de longos solos e belos efeitos de luzes, a canção serviu para lembrar que, quando quer, O Terno é uma das melhores bandas de rock (lembra dele?) do país, num improviso que ecoava tardes adolescentes ouvindo King Crimson e Black Sabbath. Na abundância de melodias delicadas que o grupo compôs na sequência, para retomar o início do texto, esta faceta psicodélica e intensa do grupo faz e fez falta.

Já “Ai Ai Como Eu Me Iludo”, além de mais um coral em uníssono, trouxe à tona a percepção de que a banda está bem consciente de seu status e sabe rir de si mesma: lá pelo meio da música, Tim Bernardes para de tocar e pergunta “ué, cadê os fogos? eu só ia voltar com o Terno se tivesse fogos, que nem no show do Paul!”, enquanto os companheiros respondem “pô Tim, você não viu no grupo que isso caiu? Todos os fogos foram pro Lollapalooza…”. Não é só uma esquete de humor engraçadinha no meio do show ou um lembrete que todo mundo tem que lidar com um grupo de WhatsApp: é também uma piscadela rápida para bons entendedores, saída da mesma pena de quem já compôs uma canção como “Eu Confesso”.

A interação entre Tim, Biel e Guilherme ao longo do show também ajuda a explicar por que essa turnê existe. Durante muito tempo, muita gente duvidou que o Terno pudesse voltar enquanto a carreira solo de Tim andasse de vento em popa. Essa ideia (olha aí, mais uma!) volta à cabeça quando se presta atenção na disposição dos músicos no palco: é Tim quem está à frente e quem conversa com a plateia durante boa parte do show, enquanto Biel e Guilherme por vezes se recolhem no segundo plano. Conforme o show se desenrola, porém, os três vão ficando cada vez mais unidos – como se ainda tocassem grudados uns nos outros no palco de um inferninho. Seus olhares brilham não só de ver “o maior show da história do Terno”, mas também que foram capazes de fazer juntar tanta gente juntos, o que até outro dia poderia parecer um sonho megalomaníaco de juventude.

Pode até soar piegas ouvir Tim apresentar Biel como “o cara mais gente boa que existe” ou Guilherme como “o maior coração do mundo”, enquanto o baixista diz um sonoro “te amo” para Bernardes, seu amigo há 22 anos. Mas talvez esteja justamente na força da amizade a explicação para que o Terno ainda exista: é ao lado dos amigos que Tim Bernardes soa melhor, às vezes muito melhor do que parece, como se mostra no balanço delicioso de “Bielzinho”, no hino de turma “Nada / Tudo” ou em uma das mais indefectíveis lovesongs do Terno, outro momento de isqueirinho/celular na mão: “Volta”, último hit do set inicial, encerrado com a dobradinha “Passado / Futuro” e “E No Final”.

Se o Terno vai de fato voltar a ser uma banda em atividade, ainda é cedo para saber – em entrevistas pré-turnê, o trio foi no mínimo críptico quando chamado a encarar a questão. Mas é interessante perceber como a ausência do grupo foi sentida ao longo de duas horas e meia de show – até mesmo quando o trio retorna ao palco para o bis em um número já típico de seu repertório, a releitura de “Um Sonhador”, famosa na voz da dupla sertaneja Leandro & Leonardo. Na sequência, foi a vez de “Melhor Do Que Parece”, uma pepita do repertório da banda que parece tão bem representar não só a dualidade da geração, mas também um sintoma dos tempos – e cabe ao leitor decidir qual verso do refrão prefere: “eu olho e vejo tudo errado” ou “faz tempo que está tudo certo”. Podia ser o fim, mas ainda faltava algo.

Pode parecer irônico ou contraditório ver um grupo crescer justamente na ausência. Ou no fato de se tornar, depois de muito tempo, uma banda “velha” – ainda que seus integrantes tenham acabado de chegar à terceira década de vida. Mas quem está rindo aqui é o próprio Terno: para fechar o maior show de suas vidas, o trio voltou justamente onde tudo começou. Em deliciosa versão à la Broadway, Tim largou a guitarra e encarnou um cantor de cabaré para dar voz à excelente piada de “66”.

Se em 2012, a canção falava que “tudo que é novo hoje em dia falam mal” e brincava que “se eu fizer muita loucura, vão dizer que eu tô maluco e ‘desse jeito você nunca vai ser muito popular”, agora os garotos do Terno riem ao som dos seus embalos quentes e loucos enquanto colocavam milhares de pessoas pra dançar. Só faltou a “dodecafonia para você”, mas talvez nem precisasse.

Quando tudo acabou, a madrugada já corria solta em São Paulo – a ponto dos guarda-chuvas não poderem se esconder no metrô dado o avançado da hora, pequeno descuido da organização num espetáculo que poderia ter começado mais cedo. Quem foi pra casa num ônibus noturno ou Uber superfaturado, porém, saiu com um sorriso no rosto e algumas certezas na cabeça. A primeira é de ter visto um grande show, numa turnê que tem tudo pra marcar o calendário deste ano no Brasil. A outra é que, a despeito da incerteza sobre um retorno em definitivo do Terno, esta é uma banda que fez falta e que merece espaço em abundância – mesmo que um emaranhado de ideias tente dizer o contrário.

SETLIST

COM QUARTETO DE METAIS
Atrás/Além (“Atrás/Além”, 2019)
Tudo O Que Eu Não Fiz (“Atrás/Além”, 2019)
Pegando Leve (“Atrás/Além”, 2019)
A História Mais Velha do Mundo // Não Espero Mais (“Melhor do Que Parece”, 2016)
Nó (“Melhor do Que Parece”, 2016)
Nada/Tudo (“Atrás/Além”, 2019)
Depois Que A Dor Passar (“Melhor do Que Parece”, 2016)
O Bilhete (“Atrás/Além”, 2019)
Deixa Fugir (“Melhor do Que Parece”, 2016)
Lua Cheia (“Melhor do Que Parece”, 2016)
O Orgulho e o Perdão (“Melhor do Que Parece”, 2016)

SÓ O TRIO
Pra Sempre Será (“Atrás/Além”, 2019)
Eu Vou (“Atrás/Além”, 2019)
O Cinza (“O Terno”, 2014)

VOLTA O QUARTETO DE METAIS
Volta e Meia (“Atrás/Além”, 2019)
Ai Ai Como Eu Me Iludo (“O Terno”, 2014)
Vamos Assumir (“Melhor do Que Parece”, 2016)
Eu Vou Ter Saudades (“O Terno”, 2014)
Morto (“66”, 2012)
Profundo / Superficial (“Atrás/Além”, 2019)
Culpa (“Melhor do Que Parece”, 2016)
Bielzinho / Bielzinho (“Atrás/Além”, 2019)
Volta (“Melhor do Que Parece”, 2016)
Passado / Futuro (“Atrás/Além”, 2019)
E No Final (“Atrás/Além”, 2019)

BIS
Um Sonhador (cover de Leandro & Leonardo)
Melhor do Que Parece (“Melhor do Que Parece”, 2016)
66 (“66”, 2012)

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/

One thought on “O Terno ao vivo em SP: É ao lado dos amigos que Tim Bernardes soa melhor, às vezes muito melhor do que parece

  1. Obrigado pelo texto preciso, pelas fotos lindas e pelos vídeos. Não pude ver este show, mas parece que vi. ❤️

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