Cinema: Kenneth Branagh volta a focar em Agatha Christie em “A Noite das Bruxas”, com Tina Fey e Michelle Yeoh no elenco

texto por João Paulo Barreto

O ator Kenneth Branagh possui uma missão solene em sua carreira como diretor: adaptar para o cinema clássicos da literatura em língua inglesa. No decorrer de quase quarenta anos, ele levou às telas em qualidade notável de produção, roteiro e direção diversas obras de William Shakespeare, como “Henry V” (seu filme de estreia na batuta, em 1989); “Muito Barulho por Nada” (1993) e sua ‘magnus opus’ como cineasta adaptando o dramaturgo em “Hamlet” (1996), dentre outras. Além do bardo inglês, Branagh tem em seu currículo, também, uma injustiçada visão da obra máxima de outra britânica, Mary Shelley: no caso, a subestimada versão de “Frankenstein”, tendo Robert De Niro como o monstro e lançada em 1994.

Desde 2017, porém, o realizador nascido em Belfast, na Irlanda, vem se dedicando a outro símbolo da literatura oriunda do Reino Unido. “Noite das Bruxas”, seu mais recente trabalho, é mais uma de suas versões dos escritos de Agatha Christie para as telas, e que, aqui, fecha uma trilogia ao lado do excelente “Assassinato no Expresso Oriente” (2017) e do apenas mediano “Morte no Nilo”, lançado ano passado.

Baseado no homônimo “A Noite das Bruxas” (ou “Mistério em Veneza”, como também chegou a ser chamado no Brasil), livro que a grande dama da literatura policial publicou em 1969, o filme, que tem roteiro de Michael Green (autor dos dois citados acima) traz novamente Branagh no papel de Hercule Poirot, o detetive apaixonado por doces refinados, metódico no tamanho dos ovos cozidos em sua mesa de café da manhã e dono de um bigode indefectível e de um olhar atento aos mínimos detalhes. Nos seus dois casos anteriores, Poirot desvendou assassinatos em um trem cruzando o Oriente e em um barco sobre um rio do Egito. Aqui, esse olhar se volta para a bela cidade italiana famosa por suas gôndolas e canais.

Enquanto no primeiro filme, Branagh, experiente diretor teatral, teve a vantagem de poder criar sua narrativa quase que completamente se valendo do claustrofóbico ambiente dos vagões de um trem, que lhe servia como um tablado e utilizando diversos ângulos de câmera em plongèe (de cima para baixo) para trazer a locomoção nervosa e a sensação de confinamento de seus passageiros, “Morte no Nilo” teve muito de sua narrativa comprometida justamente pela necessidade de se contextualizar a história na região egípcia e precisando se valer de um constante uso de imagens digitais geradas por CGI na recriação do Egito. Assim, até o tradicional momento em que o protagonista confronta todos os suspeitos em um local fechado (no caso, um barco onde o assassinato aconteceu) e apontando todas as falhas cometidas no plano julgado indefectível por estes, o filme acaba por perder muito de seu impacto narrativo diante das reviravoltas nas várias versões analisadas por Poirot.

Em “Noite das Bruxas”, no entanto, Branagh sabe que pode contar desde o princípio com a atmosfera oriunda de um único cenário, no caso, um casarão onde uma reunião mediúnica acontece justamente na noite de Halloween, comemoração que o longa contextualiza de modo convincente para justificá-la acontecendo em uma cidade europeia nos anos pós-Segunda Guerra Mundial. E é justamente na apresentação de seu conceito visual dentro daquele único cenário e através dos símbolos da data folclórica sendo trazidos à tela de maneira artesanal e teatral (de novo, a experiência do cineasta em anos de coxia faz valer aqui seu efeito alcançado), que a obra se encontra (e encanta visualmente) logo de cara.

Neste modo artesanal de criação do ambiente teatral, as figuras advindas do carrossel de imagens e do teatro de sombras que o filme traz em seu começo, após apresentar Veneza em toda sua exuberância, parecem criar uma exata rima para o que Branagh propõe em sua abordagem dessa obra de Agatha Christie, na qual o conflito de trevas e luz se faz presente a partir dos ambientes que aquele casarão (ou palazzo, como vários personagens se referem) traz em sua arquitetura clássica.

Estabelecida sua identidade visual, cabe ao diretor, então, apresentar seus personagens, que, como de praxe nas adaptações das obras de Agatha Christie, têm em suas encarnações físicas todas as nuances até então apenas descritivas (mas tão palpáveis quanto) que a autora se especializou em criar. Assim, percebe-se a oscarizada Michelle Yeoh assumindo propositalmente uma presença canastrona no papel da Sra. Reynolds, uma suposta paranormal com poderes mediúnicos e capaz de se comunicar com o pós-vida. Do mesmo modo surge Tina Fey, que sai do habitual registro cômico que a tornou famosa, mas ainda permanece espirituosa em suas tiradas rápidas na pele de Ariadne Oliver, escritora que acompanha Poirot em sua investigação. A surpresa fica por conta do garoto Jude Hill, pequeno prodígio que repete a parceria iniciada em “Belfast” (2021), filme escrito e dirigido por Kenneth Branagh, cujo roteiro foi premiado com um Oscar.

Em um trabalho que poderia facilmente se render a sustos fáceis em irritantes ‘jump scares’ (que o trailer supervaloriza de modo desonesto, importante frisar), “A Noite das Bruxas” capta a atenção de sua audiência justamente pelo artifício literário natural aos escritos de Agatha Christie: a crescente quantidade de pistas que vão surgindo a cada passagem de página (aqui, de cenas) e que serve a Poirot (e ao público) como maneira de criar sua própria investigação. No caso do detetive, mantendo-se sempre cético diante das situações que os acontecimentos trágicos poderiam levar a uma crença em algo sobrenatural. Com uma observação sagaz sobre a necessidade da crença em algum deus, seja ele qual for, Hercule Poirot entrega uma das melhores linhas do roteiro de Green.

Mas é também neste norte que a nova adaptação surpreende, uma vez que caminha por um território que foge ao pragmatismo do detetive belga, que precisará rever seus próprios conceitos do que é ou não real naquela noite e naquela mansão aparentemente mal-assombrada, mas, claro, repleta de golpistas e vigaristas prestes a serem desmascarados.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

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