Cinema: Ainda que desequilibrado e muitas vezes exagerado, “Triângulo da Tristeza” é um grande filme que merece atenção

texto por Marcelo Costa

O diretor sueco Ruben Östlund pertence a uma linhagem de diretores do lado mais gélido da Europa apaixonados pelo lado podre do mundo. Como descrito certa vez nesse mesmo site, são diretores “que não existiriam se o mundo fosse perfeito. Ou, olhando por outro lado: o cinema deles só existe porque vivemos em um mundo corroído por imperfeições”. Nessa escola, Östlund tende mais aos exageros cruéis de Lars von Trier e ao sarcasmo de Roy Andersson do que a mordaz sutileza de Michael Haneke ou a poesia minimalista de Lukas Moodysson, embora aqui e ali esbarre no cinema desses quatro realizadores poderosos.

Com uma carreira iniciada nos anos 1990 com filmagens de esqui (o “surf escandinavo”) e, na sequência, dois documentários, Östlund estreou nos longas de ficção com “Gitarrmongot / The Guitar Mongoloid” (2004), um filme sobre pessoas a margem da sociedade na fictícia Jöteborg, cidade “muito parecida” com a cidade natal do diretor e a segunda mais populosa da Suécia, Gotemburgo, com uma população de mais de 1 milhão de pessoas na área metropolitana. A curiosidade aqui é que todo elenco foi formado por não atores interpretando, quase sempre, a si mesmos.

Em seu segundo filme, “Involuntary” (2009), Östlund caçoava do conformismo do povo sueco diante das instituições, das autoridades e das regras sociais. O controverso “Play”, de 2011, porém, tirou o país do conformismo relacionando raça e poder com base em casos reais. Ruben estava pronto para alçar voos mais altos, e sua primeira grande conquista foi o prêmio Un Certain Regard no Festival de Cannes de 2014 com “Força Maior”, seu quarto filme, sobre um marido que, diante de uma possível avalanche nos Alpes franceses, abandona a mulher, que fica protegendo os filhos enquanto ele foge assustado. A avalanche não atinge o local, mas cria uma questão moral na família, que o roteiro investiga de maneira interessante.

Em seu filme até então mais badalado, “The Square – A Arte da Discórdia” (2017), que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, Östlund satiriza o universo da arte contemporânea e sarreia o politicamente correto tentando desconstruir de maneira nada sutil uma sociedade construída equivocadamente, e se já dava mostras de estar perdendo a paciência com os aforismos e metaforismos do cinema (ainda que, por achar extremo, tenha abandonado a ideia de uma cena a lá GG Allin pela performance do ator vestido de macaco atacando ricaços num jantar), ele coloca quase tudo a perder no novamente premiado em Cannes “Triângulo da Tristeza” (e indicado ao Oscar de Melhor Filme, Roteiro Original e, exageradamente, de Diretor).

Dividido em três atos, “Triangle of Sadness” abre com o prólogo divertido e impecável sobre as diferenças de abordagem dos modelos numa campanha “Balenciaga /H&M”. Aqui, o roteiro já apresenta Carl (o ótimo Harris Dickinson), um modelo que (está lendo “Ulysses”, de James Joyce e), aos 24 anos, já está ficando “velho” para a profissão a ponto de, em um casting, uma das analistas sugerir que se coloque botox em seu “triangulo da tristeza”, um par de linhas entre as sobrancelhas que se destaca muito quando estamos infelizes – e, por isso, é uma das áreas mais botocadas do rosto humano.

Carl namora a influenciadora digital Yaya (a atriz Charlbi Dean, que morreu pouco antes do filme estrear, aos 32 anos, por sépsis bacteriana provocada por um traumatismo no torso), que vive um bom momento na carreira e, por isso, causa um certo desconforto na relação. No primeiro ato, o casal se desentende por algo familiar ao ator Caio Castro: quem paga a conta do jantar? Lembre-se: ela está ganhando mais dinheiro do que ele, e, acrescente aos altos, escrivão, foi ela quem o convidou para jantar num restaurante badalado dizendo que iria bancar a noitada. A questão no filme envolve poder, manipulação e gênero, e é desenvolvida muito bem, ainda que fique apagada diante dos atos seguintes.

No segundo ato, o casal está em um cruzeiro de iate de ricaços (ganho com permutas em redes sociais por Yaya), mas tornam-se quase que atores secundários: o cotidiano do cruzeiro passa a ser o personagem principal com a divisão social entre empregados e clientes totalmente escancarada tanto quanto provocações sobre capitalismo e socialismo. Östlund dispensa as alegorias e não só caricaturiza exageradamente personagens que são já caricaturais como estende uma cena grotesca além do limite com o intuito único do incomodo visual, diminuindo o impacto de boas sacadas como o da influencer que não usa as coisas que divulga, ou o casal fofo que defende a democracia lucrando com a venda de armas, ou ainda a do modelo “pobre” que dedura um funcionário (pobre) do navio que poderá perder o emprego.

No terceiro ato, derivado do segundo, Östlund recria a inversão de papeis sociais mostrando que, em casos extremos, como todos sabem, muitos milionários (e bem nascidos) seriam serviçais de seus funcionários reeditando quase que ipsis litteris a trama impagável da comédia (romântica) “The Admirable Crichton” (1957), de Lewis Gilbert, em que, após um naufrágio, um mordomo passa a ser a “nobreza” da ilha, e os integrantes da família nobre passam a ser seus súditos. Na versão de Östlund, Dolly de Leon brilha como Abigail, a chefe de limpeza do iate que, na ilha, passa a reinar manipulando a todos com seus dotes de pescadora, cozinheira e dona de um arsenal de palitinhos Stiksy, um bem que vale mais do que ouro e relógios Rolex numa situação dessas. Mais contido que o episódio anterior do filme, o final é brilhante.

No frigir de ovos cobertos com caviar, “Triângulo da Tristeza”, ainda que desequilibrado, muitas vezes exagerado e tocando em temas amplamente discutidos nas artes em geral, tem mais pontos positivos do que negativos. Östlund vai direto ao cerne da questão em seus ataques a um mundo que, sim, deu errado, pois sabe que grande parte da direita burguesa quanto da esquerda cirandeira (e toda a massa que vai com um e outro apenas por inércia) não são lá muito adeptos de metáforas, mas, ainda assim, arrisca perder parte de sua audiência com uma cena grotesca pouco se importando se as pessoas vão chegar “digerindo” (desculpe, mas foi irresistível) a história ao final do filme. Impaciente, o diretor sueco entrega novamente um quase grande filme que tropeça em sua própria vontade de voar. Quando se preocupar apenas em andar, Östlund talvez faça um filme impecável, mas é mais provável que, futuramente, ele seja banido (de Cannes e do mundinho cool do cinema) por exatamente passar dos limites naquilo que todo mundo o chamava de gênio.

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– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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