Ao vivo: Festejando 30 anos, Karnak toca sua obra prima quase na integra juntando música, poesia e humor em doses iguais

texto por Marcelo Costa
fotos por Polli Cavalcanti
vídeos por Bruno Capelas

Em novembro de 2012, para feliz surpresa de quem leu a Rolling Stone USA, um compilado do jornalista Ernesto Lechner listava os 10 melhores álbuns de rock latino DE TODOS OS TEMPOS. A lista abria com “Abraxas” (1970), de Santana, em 10º, e contava ainda com discos de bandas icônicas como Café Tacvba (“Rê”, de 1994), Los Fabulosos Cadillacs (“Fabulosos Calavera”, de 1997) e Soda Stereo (“Sueño Stereo”, de 1995), entre outros. Dois discos brasileiros integram a lista (afinal, somos todos latinos): a estreia d’os Mutantes (1968) e o primeiro disco do… Karnak, de 1995, apresentado assim no texto: “Uma exuberante tapeçaria de idiomas internacionais funky, o primeiro LP deste grupo de São Paulo resume a fome ilimitada do Brasil por todos os tipos de música – do reggae brasileiro aos cânticos do Oriente Médio. Uma obra-prima subestimada, do começo ao fim” (leia aqui).

Bem, listas sempre são polêmicas, e antes de polemizar a presença do Karnak daria para dizer que nem os álbuns escolhidos de Cadillacs e da banda de Gustavo Cerati são seus melhores trabalhos, mas, mais do que qualquer coisa, devemos nos prender a uma frase do texto de Lechner: “Uma obra-prima subestimada”. Isso é simplesmente indiscutível. O álbum de estreia da superbanda criada por André Abujamra após pirar o cabeção (de uma maneira boa!) num templo egípcio no começo dos loucos anos 90 é um caldeirão de sons, poesia e humor tão classudo e, ao mesmo tempo, tão pop que faz pensar como esse disquinho sem vergonha de bom não rivalizou no topo das paradas brasileiras em 1995 com Mamonas Assassinas,  “Xô Satanás” e Skank.

Lá se vão 30 anos (a banda estreou ao vivo em dezembro de 1992) e para festejar três décadas, o grupo se reuniu para uma temporada de shows no Sesc 24 de Maio, na cada vez mais degradada área central de São Paulo – enquanto o disco antológico é remasterizado para uma vindoura e merecida reedição em vinil – e nada mais oportuno do que assistir a trupe paulistaníssima ao vivo no dia do aniversário da cidade de São Paulo: “Ela está fazendo 469 anos… nós, 30. A gente chega lá”, brincou Abu em certo momento do show, que foi dividido quase que igualitariamente entre música e comédia: o show inicia com a banda entrando em silêncio no palco e atuando divertidamente ao som da cubana “KikiRiki” (na foto abaixo), para delírio da plateia.

Fiéis ao quesito “show para ver e ouvir”, os 10 integrantes do Karnak disparam ao som de “Universo Umbigo” que se emenda com “Comendo Uva na Chuva”. Sem pausa, a banda celebra Rolando Boldrin com a maravilhosa “Tem Espinho na Roseira (Drumonda)”, e impressiona a potência e a delicadeza da banda, que valorizam a poesia e a ironia de uma letra… letrada. O palco parece em permanente movimento, com todos os integrantes tocando e/ou atuando numa junção que empolga, arrepia, emociona e faz rir, como quando os integrantes conversam com o público por telepatia, uma piada besta e extremamente deliciosa – como as boas piadas devem ser. “Lee-o-dua” mantém o clima lá em cima, e a história de “Maria Inês”, do álbum “Estamos Adorando Tokio” (2000) relembra a mulher que “morreu pra se salvar” – o disco ainda cederá o hit “Juvenar” para o show.

O funk contagiante “Balança a Pança” (outra baita letra) faz ter vontade de se levantar das cadeiras do teatro e sacudir o esqueleto (lá pro final, André dirá que muito antes o público dos dois shows anteriores já tinha se levantado) e a excelência da banda é tanta que destacar um ou outro integrante seria injusto, mas como a gente não resiste, a mão pesada de Kuki Stolarski na bateria, os backings e caras de Marco Bowie, o baixo seguro de Sergio Bartolo (“o verdadeiro dono da banda Karnak”, segundo Abu), o trombone de Maestro Tiquinho (que fez um belíssimo solo), o sax e a flauta de Marcelo Pereira, a guitarra e os backings hilários do “gênio da banda” Mano Bap (que copiou o solo de Tiquinho… com a boca) e… cacete, todo mundo.

A música que deu início ao projeto e foi composta num barquinho “indo da Itália para a Grécia em 1991”, a majestosa “O Mundo”, traz ao cabo “Hymboraewqueyra”, e o tal disco elencado como o 7º melhor do rock latino de todos os tempos ainda cederá para o show “Vim Que Venha (2 hugos e 2 zambos)”, “Oxalá Meu Pai”, “Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai” e, claro, o hit “Alma Não Tem Cor”, que André Abujamra se apressa em dizer que “é minha, não é do Chico Cesar e nem do Zeca Baleiro”, mas a desconstrói como todo artista que pega birra do sucesso faz, deixando-a pálida e partida ao meio devido a um número cômico que soa mais bacana no papel do que com o público, mostrando que as gags são essenciais para a apresentação, porém se tivessem metade da duração tornariam o show muito mais ágil e funcional e delicioso (e com tempo para a execução de “Martin Parangolá”, a única faixa própria do debute ausente do espetáculo).

Ainda assim, não há como deixar um show do Karnak sem estar voando. A sensação é de que podia ainda ser muito melhor (embora queiramos tudo, tudo não podemos ter), mas do jeito que está já é possível ir pra casa e dormir sorrindo, pois as músicas são boas, a execução é impecável, a banda é incrível, o humor é afiado e André Abujamra é o tipo de cara que merece todo reconhecimento possível, mesmo que venha de uma lista pouco vista e repercutida de uma grande revista dos Estados Unidos (e do mundo), ou de um site independente de cultura pop brasileiro de alcance limitado, mas apaixonado, sincero e atento, que assim como Ernesto Lechner sabe que “Karnak”, o disco, é sim uma obra-prima subestimada. Que a gente possa comemorar 469 aniversários do Karnak… ou, ao menos, colocar o vinil para tocar na vitrolinha, um re-lançamento que já garante mais uma série de shows, e se isso acontecer só fica o pedido: não perca! NÃO PERCA.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– As fotos são de Polli Cavalcanti (@prefixopolli)! Veja mais na galeria dela no Flickr!
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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