Literatura: Alex Andrade cria protagonista dolorosamente verossímil em seu novo romance, “Para os que ficam”

texto por Gabriel Pinheiro

“É estranho mexer com essas lembranças, mas essas histórias parecem que estão coladas em mim, eu tento esquecê-las, mas todas as noites elas rondam os meus pensamentos, não consigo fugir do passado.”

“Para os que ficam” (2022, Confraria do Vento), novo romance de Alex Andrade, é um livro asfixiante, apresentando uma protagonista que parece mergulhar cada vez mais fundo em seus fantasmas e medos. Ana é uma mulher de meia idade que tem para si a responsabilidade de tomar conta do pai doente, após a morte da mãe. Primogênita de três, cabe à personagem o fardo na ausência dos irmãos. “Restou-me cuidar do meu pai, sozinha. Uma horda de demônios se infiltram em mim.”

O dia-a-dia com o pai é marcado pela monotonia. A rotina: acordar, o preparo do almoço, uma consulta ao médico, um exame. O marasmo e a repetição são a regra. Nos parcos diálogos com o pai, ele repete incessantemente uma mesma pergunta: “Que horas é essa?”. Como calcular o tempo quando nada parece mudar? Quando tudo parece estacionado, preso? “Para que servem as horas se estamos perdidos no tempo?”, ela questiona.

Há, ainda, um marido. Ou ex-marido. Ana o abandonou. Não para cuidar do pai, mas para tentar preservar o próprio corpo, a própria sanidade. Se a relação começa como uma possibilidade de uma reescrita feliz da própria história, pouco a pouco ela nos revela um casamento marcado pelo álcool, pelos gritos, pela violência física. Era um ciclo vicioso: a violência, o término e a reconciliação. “Eu mentia sobre as marcas que meu corpo trazia. ‘Sou muito desastrada, esbarro em qualquer coisa’.”

Alex Andrade constrói uma protagonista dolorosamente verossímil. Seu discurso é febril: entre a vigília e o delírio, Ana confronta o que há de mais sombrio e doloroso em seu passado, da infância até o casamento. Pouco a pouco tentamos colar os cacos de uma existência marcada por traumas de relacionamentos abusivos. A culpa, outro fantasma sempre a rondá-la. “Tenho rostos, vozes que trago comigo, sinais, marcas, gritos, essas dores que também não passam.”

O texto de “Para os que ficam” toma ares de fluxo de consciência, na escrita vertiginosa do escritor. Ainda que as pontuações estejam todas ali, a voz da narradora, por vezes, parece nos pedir para lê-lo ininterruptamente, numa leitura urgente, desesperada, buscando nas palavras o fôlego que sua protagonista parece ansiar para dar, de vez, as costas para o passado.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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