Ao vivo: Lana Del Rey e Norman Rockwell – O que esperar para o Lolla Brasil 2020

Texto por Anna Beatriz Lisbôa
Fotos: Lana Del Rey Global (veja galeria)

Quem escuta o canto lânguido de Lana Del Rey entoando as baladas narcóticas que a colocaram no mapa é capaz de se surpreender com o sutil furacão de sensualidade que toma conta do palco em suas apresentações ao vivo.

O Jones Beach Theater, arena na região metropolitana de Nova York, estava lotado (com seus 15 mil lugares) no dia 21 de setembro de 2019, data da inauguração da turnê do disco “Norman Fucking Rockwell!”, que ela trará este ano ao Brasil na nona edição do Lollapalooza (3 a 5 de abril).

Naquela noite, Lana fez o megaevento parecer um show intimista. O palco foi adornado com palmeiras e árvores com frutas reais, além de um piano e um balanço, como um jardim do Éden californiano. A cantora movia-se à vontade pelo cenário: ela transformou o piano em plataforma para si e suas duas backing vocals, sentou-se nas escadas de acesso para cantar junto ao público e desceu algumas vezes às grades para tirar fotos e cumprimentar os fãs.

Durante a performance de “Change”, ela caminhou até uma das árvores, colheu um pêssego, deu-lhe uma mordida e atirou a fruta ao público em um movimento teatral. A audiência delirou. E delirava cada vez que ela dava uma baforada em seu cigarro eletrônico, floreava versos de canções conhecidas com notas mais altas ou trocava a palavra ‘kiss’ por ‘fuck’ no refrão de “Born to Die”. A mística incandescente da cantora nova-iorquina de 34 anos é difícil de resistir.

Só que a evolução da persona Lana Del Rey ao longo de uma década de carreira não ocorreu sem percalços. As primeiras aparições da artista previamente conhecida como Lizzy Grant causaram estranhamento: a rigidez de uma imagem construída para evocar a frieza reticente de uma femme fatale da era do Instagram contrastava com a natureza abertamente melodramática de seus dois primeiros hits, “Video Games” e “Blue Jeans”. O efeito foi desconcertante e a internet, confrontada com esse inclassificável mixtape de referências audiovisuais, não tardou em destilar misoginia, questionando a autenticidade e a razão de ser da artista.

“Norman Fucking Rockwell!” é o quinto disco de sua carreira e concorre a dois Grammys, incluindo álbum do ano. Nesse trabalho, as sínteses visuais e frases de efeito instigantes que marcam seu estilo de compor continuam afiadas e ganham amplitude nesse novo repertório, mais reflexivo e observacional. O título não poderia ser mais oportuno ao referenciar, com ironia cortante, o artista célebre por retratar o dia a dia do sonho americano.

A verdade é que a Lana Del Rey que subiu no palco do Jones Beach Theater pouco lembrava o glamour montado da rainha do sadcore hollywoodiano que consolidou um fandom apaixonado com hinos tão dançantes como sombrios, e que rendeu uma missa pop no Planeta Terra 2013, em São Paulo. Usando um vestido branco longo de renda, com babados e detalhes de conchas, ela projetava naturalidade e delicadeza. Os dias de sofrimento indie parecem ter ficado para trás.

Desde o início de sua trajetória, Lana Del Rey propõe uma sonoridade fortemente imagética. A dimensão cinematográfica de sua música passa pelo fetichismo da tragédia e do glamour de Hollywood, mas vai além: interessa-lhe especialmente essa peculiar mitologia norte-americana em que narrativas históricas e midiáticas se confundem e se complementam.

Não por acaso ela recorre com frequência a efeitos de sobreposição de imagem em seus videoclipes, e montagens de fluxo de consciência, misturando referências cinematográficas, publicitárias e documentais.

Alternando o grandiloquente e o mundano, seu repertório clássico consiste em uma sedutora épica de excessos, consumo, sexo, drogas e beleza. Suas canções habitam o limiar entre a vocação solar intensa da Califórnia e a fantasia noir das ruas mal iluminadas de Los Angeles.

Na novo disco, Lana mantém seu diálogo com diferentes camadas de imagem que compõem a iconografia californiana e seu próprio imaginário pessoal, exibindo maturidade como compositora. Acompanhada pelo piano de Jack Antonoff, produtor e compositor, Lana despe-se de maneirismos do pop e do hip-hop e explora novas dimensões vocais e poéticas em baladas evocativas. A melancolia continua sendo um tema importante, mas, em “Norman”, ela transborda com uma leveza que deixa espaço para eventuais sorrisos.

Em hits anteriores como “Summertime Sadness”, a melancolia vem da efemeridade do prazer proporcionado por uma noite de balada de verão e da iminência da despedida. Em “Norman”, canções como “California” e “The Greatest” projetam cenários similares, porém submersos na nostalgia de um passado recente: as coisas continuam em seus lugares, mas irreversivelmente transformadas. O movimento introspectivo sugerido por Lana, no entanto, não a desconecta do caos do mundo. “Norman” está impregnado de incêndios, catástrofe e queda de ídolos.

Diante de certo pessimismo pelo presente, ela evoca o espírito de gerações anteriores e presta homenagem aos seus heróis. A opção pelo cover de ‘Doin’ Time”, gravada originalmente pelo Sublime, é significativa nesse sentido, referenciando a cena do ska punk californiano dos anos 90. Curiosamente, é a canção mais radiofônica do disco.

O visual da cantora espelha sua evolução estética: se no passado, sua persona emulava Lolitas e pin-ups, hoje as escolhas de cabelo e maquiagem evocam o final dos anos 60 e a cena folk. Musicalmente, seu principal interesse parece ser aprofundar os laços com grandes compositores da música norte-americana. A estratégia é ousada, considerando a faixa etária de seus fãs – alguns jovens demais para terem canções de Joni Mitchell entre as mais tocadas no Spotify.

Neste show de abertura da nova turnê, ela explicou que escolheu o Jones Beach Theater como ponto de partida por ter sido o local onde viu Bob Dylan pela primeira vez (nos shows seguintes, ela iria tocar “Don’t Think Twice, It’s All Right” em três noites diferentes). Na mesma noite em Nova York, ela cantou seu cover para “Chelsea Hotel #2” (que ela gravou no álbum “Honeymoon”) com Adam Cohen, filho de Leonard Cohen, e convidou Sean Lennon para cantar a faixa “Tomorrow Never Came”, que compuseram juntos para o álbum “Lust For Life”. O momento pareceu transportar o show para um festival de folk music nos anos 60. Em outras apresentações da turnê pelos Estados Unidos, ela incorporou um competente cover de “For Free”, de Joni Mitchell, ao repertório, que seguiria no set por todo outubro e novembro (somando 20 execuções!).

Impressiona a destreza da cantora ao navegar por suas referências ao mesmo tempo em que forja um estilo singular. O diálogo com esse passado imagético da música e do cinema é frutífero, pois nunca se confina em mera exploração da nostalgia – estratégia global hoje na indústria do entretenimento.

Pelo contrário, a potência de “Norman” está justamente numa articulação poética que se permite momentos de beleza e anseio, sem entregar-se ao escapismo fácil do saudosismo. Confrontando as inquietações do presente com consciência e suavidade, trata-se de um disco que sintetiza a estranha atmosfera desse final de década, com potencial de reverberar por gerações.

– Anna Beatriz Lisbôa (@annalisboa) é jornalista cultural e crítica de cinema de Brasília, atualmente morando em Belo Horizonte. Mestre em Estudos de Cinema e Audiovisual Contemporâneos pela Universitat Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.